Palmela Wine Jazz 2023
Três dias de jazz junto ao castelo
A bonita vila de Palmela acolheu de 18 a 20 de agosto mais uma edição do seu ciclo anual de jazz, apresentando um programa dedicado a projetos nacionais. O festival contou com atuações de Sul, João Lencastre’s Communion, LUME, João Espadinha, Samuel Lercher Trio e Mad Nomad. A jazz.pt foi acompanhar este festival.
O festival Palmela Wine Jazz nasceu no castelo de Palmela, por iniciativa da câmara local, combinando a proposta cultural com a promoção dos vinhos da região. O festival mudou-se depois para o auditório do Parque Venâncio da Costa, um espaço com capacidade para receber mais público, mantendo-se perto do castelo. Realizava-se habitualmente em julho mas, em 2022, na sequência de um grande incêndio que ameaçou a vila, o festival foi então adiado para o mês de agosto; essa edição correu bem e a organização decidiu fixar a data em agosto, realizando-se este ano entre os dias 18 e 20. Com entrada livre, o festival acaba por juntar diferentes públicos: conhecedores, curiosos, interessados e também desinteressados (que estão apenas de passagem entre provas de vinho). A programação do festival tem apostado em projetos nacionais e esta 9.ª edição não fugiu à regra, com concertos de Sul, João Lencastre’s Communion, L.U.M.E., João Espadinha, Samuel Lercher Trio e Mad Nomad. Juntava-se ainda uma programação “extra”, com concertos no restaurante Bobo da Corte: Ivo Soares & Zé Soares e Jazzeca. Fomos assistir aos concertos do palco principal, naquela que foi a estreia da jazz.pt no festival palmelense.
O ciclo de concertos arrancou na noite de sexta-feira, dia 18, com a atuação do trio Sul. Este grupo reúne três músicos robustos: Bernardo Moreira no contrabaixo, Luís Figueiredo no piano e Bernardo Couto na guitarra portuguesa – os dois primeiros vindos do jazz, o terceiro oriundo do fado. Perante uma plateia bem preenchida (como aconteceu nos concertos das noites seguintes), o trio arrancou a atuação com a interpretação de “Amanhã era perfeito”, composição original de Couto – que desde logo afirma o papel central da guitarra portuguesa no som do grupo. O trio tratou de apresentar a sua música instrumental que resulta de uma mescla (pouco explorada) entre jazz, fado e tradição portuguesa. Seguiu-se “Promessas”, tema de Bernardo Sassetti, e o grupo assenta o seu trabalho nas linhas das composições, com espaço (controlado) para intervenções individuais. Moreira é um pilar, dos mais notáveis contrabaixistas do nosso país, evidenciando-se a segurança com que ataca cada nota; Figueiredo é um excelente pianista (e também um curioso compositor, sempre a explorar diferentes cruzamentos) e ao vivo confirmou os seus predicados; na guitarra portuguesa, Couto mostrou-se irrepreensível – o som marcante da guitarra flui e dialoga. Se por vezes a música cai mais para o lado do jazz, noutros momentos escorrega para o fado, como aconteceu no tradicional “Fado menor do Porto” – e que incluiu um aplaudido solo de Moreira no contrabaixo. O grupo foi interpretando os temas do seu disco de estreia, como “Daydreaming” (de Figueiredo) e “Canção para Carlos Paredes” (de Moreira), “Dona Filipa” de José Nunes e “O tamanho do mundo” (Figueiredo). Além de Sassetti, o grupo apresentou a sua versão de composições de outros dois pianistas portugueses: “Certeza”, tema de João Paulo Esteves da Silva, que o contrabaixista introduziu como “um hino a música portuguesa”; e “Coro das meninas” de Mário Laginha, com o seu ritmo vibrante (e que incluiu um solo de piano). As interpretações são inatacáveis, com muita proximidade à gravação do disco, numa música de cantos arredondados que conquistou o público de Palmela.
Para o dia de sábado foram agendados três concertos: Mad Nomad às 16h00, João Espadinha às 19h00 e João Lencastre’s Communion às 22h00. O grupo Mad Nomad teve a tarefa ingrata de tocar às 16h00 de um sábado de agosto, sob um calor abrasador. Este grupo – não confundir com o duo NoMad Nenúfar – é um projeto liderado pela vocalista Catarina dos Santos que se completa com músicos que conhecemos ligados a diferentes projetos de jazz: o pianista Óscar Graça está aqui dedicado aos sintetizadores; na bateria encontramos o versátil Luís Candeias; e no baixo elétrico está Chico Santos (substituindo Hugo Antunes, que saiu do grupo); junta-se ainda André Pinheiro, no laptop e sampling. O disco “Untamed”, editado em 2020 (crítica aqui), foi a base da atuação. O concerto abriu com ambientes eletrónicos, até que evoluiu para um groove, com a voz assumir o centro – e Catarina a mostrar-se confiante no palco. Logo na primeira canção “A mad nomad”, ouve-se a experiência de emigração da vocalista (que viveu em Londres e Nova Iorque), sendo essa uma temática transversal a vários temas. Em “Blunt solar wit” ouvimos um surpreendente excerto de “Senhor Arcanjo”. E “Columbus Day on the J” é um tema criado à volta das palavras de Maya Angelou. Instrumentalmente, ouvimos uma mescla de referências, sobretudo uma malha de eletrónica cruzada com elementos jazz; por vezes, os sons inebriantes lembram a época dourada do trip hop; por cima, a voz: muitas vezes em declamação spoken word, outras vezes em canto tradicional, passando até pelo hip-hop. Em qualquer registo, Catarina dos Santos revelava competência técnica e à vontade. Apesar da entrega do grupo, a atuação não foi memorável (também pelas circunstâncias envolventes). Se no início do concerto estava pouca gente no anfiteatro ao ar livre, no final o grupo tinha cativado várias dezenas de pessoas, que foram chegando, ficando e se mantiveram atentas.
Uma das últimas vezes que falei com o Paulo Gil foi no Hot Clube (claro). Fiquei sentado numa das mesas em frente ao palco; no seu lugar de sempre, ele meteu conversa e contou que tinha visto há dias uma jovem cantora que o deixou muito entusiasmado, com competência técnica que lhe fazia lembrar as grandes vozes do jazz. Fiquei a saber que se tratava de Marta Garrett, era essa a voz que o tinha deixado fascinado, e terá sido essa a primeira vez que ouvi falar no seu nome. E foi a cantora Marta Garrett que começou por dar voz à música de João Espadinha, que tocou no festival de Palmela às 19h00. O guitarrista e compositor trazia na bagagem o disco editado no ano passado, “Em terra alheia sei onde ficar”, onde apresenta um jazz original assente em formato de canções (abertas). Se no disco participam várias vozes convidadas, para este concerto Espadinha levou uma parte do grupo. Garrett começou o concerto a dar voz a “Intro” (que no disco é cantada por Mariana Dionísio), cumprindo com distinção. Para a teia instrumental estavam, ao lado da guitarra de Espadinha, o pianista João Pedro Coelho, o contrabaixista Francisco Brito e o baterista João Sousa. Somavam-se dois sopros, Luís Cunha no trompete e Bernardo Tinoco no saxofone tenor, que iam entrando e saindo à medida que os temas pediam. Com a música “Tempos curtos” entrou em palco o outro cantor convidado, Primeira Dama (nome artístico de Manuel Lourenço, autor do hino indie “Rua das Flores”). O grupo não teve um som perfeito, mas neste tema a voz de Primeira Dama foi particularmente prejudicada, com um som pouco claro (embora tenha melhorado ao longo do concerto). Não sendo o típico jazz instrumental, as canções são a base a partir da qual se abrem espaços para intervenções instrumentais. Com “Ciclo vicioso” juntaram-se Tinoco e Cunha, sobrando espaço para contrabaixo e piano brilharem, e a bateria de Sousa também se fez notar em duo com o piano. Um ponto alto do concerto foi a interpretação de “As Mondadeiras”, tema de Zeca Torrão: após uma demorada introdução atmosférica, as duas vozes em contraste elevaram a música num crescendo emotivo, com a guitarra do líder a amplificar o sentimento. Seguiu-se “A Revolta”, o tema mais marcante do disco, com a voz Primeira Dama a alimentar lentamente a carga dramática da canção, na dose certa; e ouvimos ainda piano e sopros em diálogo. Também se ouviu “Down the river” (tema original de Joana Espadinha, irmã do guitarrista), “Falso profeta” e “Tema para um fim” (do primeiro disco, “Kill the Boy”), antes de fechar a atuação com um curto tema final (uma versão alternativa e breve de “Tempos curtos”). A abordagem de Espadinha é diferente e atrativa, o jazz é fresco.
Na noite de sábado, pelas 22h00, atuou o grupo Communion de João Lencastre, a interpretar o disco “Unlimited Dreams”. Editado pela Clean Feed em 2021, o disco foi consagrado em 2022: foi distinguido com um prémio Play e o grupo atuou no festival Jazz em Agosto. O baterista, compositor e bandleader Lencastre juntou aqui um verdadeiro grupo allstar, onde se reúnem vários músicos talentosos da cena jazz nacional, quase sempre aos pares: os saxofonistas Ricardo Toscano (alto) e Albert Cirera (soprano e tenor), os guitarristas Pedro Branco e André Fernandes, os contrabaixistas Nélson Cascais e João Hasselberg (aqui no baixo elétrico e eletrónica); e no piano, em vez de Benny Lackner (que toca no disco), atuou João Bernardo (que conhecemos do projeto “Free Celebration”). O grupo respeitou o alinhamento do álbum e arrancou com “Clouds”, com uma entrada exploratória; o grupo agarra o tema e rapidamente as coisas aquecem, ouvimos um solo de Toscano e de seguida Branco entra em diálogo, juntando-se ainda Hasselberg; há espaço ainda para um solo de Fernandes. Respeitando a estrutura da composição, os músicos vão entrando e acrescentando ideias, numa música em permanente desenvolvimento. O segundo tema, “Insomnia”, contou com Cirera no tenor, com um solo potente a puxar por todo o grupo. Em “Mitote”, quarto tema, houve oportunidade para ouvir o sax alto de Toscano e a guitarra de Branco novamente em diálogo (dupla que funciona muito bem), apoiados por Cascais e Lencastre. Para fechar a atuação chegou a homónima “Unlimited Dreams”, com eletrónicas em destaque, e João Bernardo no piano, em atenta comunicação com contrabaixo e bateria; depois da exposição do tema, com todo o grupo muito enérgico, ouvimos ainda um momento final com solo de Fernandes. Aqui encontramos um grupo de excelentes músicos a trabalhar boas composições com uma considerável dose de liberdade e o resultado é um jazz vivo, aceso, enérgico. A meio do concerto algumas cadeiras foram ficando vazias, provavelmente pessoas que não estariam preparadas para alguns momentos de maior caos e polifonias. Ainda assim, a grande maioria do público gostou de ouvir este jazz – um jazz criativo, de agora – e aplaudiu com entusiasmo.
Na tarde de domingo, às 18h00, o anfiteatro recebeu a atuação do Samuel Lercher Trio. Mais um concerto difícil, um trio clássico de piano, de música detalhada, num espaço ao ar livre, a uma hora difícil, sob imenso calor. O trio mostrou estar bem oleado, com o piano a destacar-se pelo lirismo (será mais um discípulo, direto ou indireto, de Bill Evans). Lercher editou o disco “Ballade” em março do ano passado (que inclui clássicos da canção francesa, como “La Javanaise” de Serge Gainsbourg, “La Bohème” de Charles Aznavour e “Il n'y a pas d'amour heureux” popularizada por Georges Brassens), mas o repertório escolhido para a ocasião não passaria muito por aí. Em Palmela, o pianista apresentou sobretudo temas originais (inspirados e dedicados à família, aos filhos e à mulher). O baterista Bruno Pedroso e o contrabaixista André Rosinha eram metrónomos, a exibir precisão. E, além da ótima dinâmica de grupo, Samuel Lercher motrou a sua grande capacidade técnica. A composição “Ballade”, numa ótima interpretação, contou com um solo breve de Rosinha no final; e “Salvador”, tema interpretado a solo no piano, foi um bonito momento de travo clássico. Lercher não deixou créditos por mãos alheias. Conforme sintetizou um espetador, lacónico, no final do espetáculo: «tem umas mãozinhas que, ui ui, é mesmo pianista!».
Para encerrar o festival, atuaria à noite (21h30) o grupo L.U.M.E. – Lisbon Underground Music Ensemble, projeto liderado por Marco Barroso (composição, direção, piano e sintetizador). Em Palmela, Barroso conduziu a sua espécie de “big band contemporânea”, reunindo um leque alargado de músicos: Manuel Luís Cochofel (flauta), Paulo Gaspar (clarinete soprano), João Pedro Silva (saxofone soprano), Tomás Marques (saxofone alto), Gonçalo Prazeres (saxofone tenor), Gabriela Figueiredo (saxofone barítono), Gileno Santana, Carolina Alves e João Silva (trompetes), Rúben da Luz, Eduardo Lála e Mário Vicente (trombones), Miguel Amado (baixo elétrico) e Diogo Alexandre (bateria). A atuação arrancou com “Shroomdinger”, seguindo-se um conjunto de pequenos temas “AM Phantasies” (temas curtos que emulam sons da era dourada das big bands, num trabalho de meticuloso copy-paste de Barroso). As composições saíram sobretudo do mais recente “Las Californias” (Clean Feed), mas não só. Entre momentos pujantes de grupo e momentos de brilho individual/solos, a música do grupo desenvolve-se dentro da malha estruturada pelo compositor. E se por vezes poderá parecer que estamos na vertigem do caos, rapidamente encontramos conforto no regresso às linhas de cada composição. Em “(...)” ouviu-se um interessante solo de Gileno, seguido de diálogo dos saxofones de Marques e Prazeres, com o tema a evoluir para uma dimensão orquestral. “Astromassa” (do disco “Xabregas 10”), contou com solos arrojados de João Pedro Silva, músico natural de Palmela, a jogar em casa. Para o final ficaram reservados dois temas do disco de estreia (JACC Records, 2010): “Freestyle Boogie” (com o clarinete de Paulo Gaspar e o trombone de Ruben da Luz em destaque) e “Lux” (solo de Marques). O público aprovou a música desta big band modernaça e o grupo ofereceu um encore (“Boogaloo”).
Este festival revelou ser um evento especial, apresentando um programa musical globalmente muito interessante e conseguindo reunir muita gente, cerca de 600 pessoas nos concertos da noite – no press release pós-evento, a organização anunciou que esta foi a «melhor edição de sempre, com mais de 3 mil visitantes». Mesmo considerando que se trata de um festival com entrada livre, estes são ótimos números para um evento cultural, mostrando que há público interessado e atento na boa música.