Branco toca Marco Paulo
Desconstrução e reconstrução
O ciclo Moazz surgiu em 2009 e realizou-se ao longo de três anos. Depois de um longo interregno, o ciclo regressou neste ano de 2023, levando quatro concertos de jazz ao Fundão. A jazz.pt assistiu à atuação do projeto Branco Toca Marco Paulo, que junta três músicos nacionais – Pedro Branco na guitarra, Carlos Barretto no contrabaixo e João Sousa na bateria – a trabalharem uma interpretação original da música do famoso crooner português.
Nascido em 2009, o ciclo Moazz promoveu concertos regulares de jazz na cidade do Fundão, realizando-se ao longo de três anos. Numa organização da Câmara Municipal em parceria com a agência Clave na Mão, o ciclo regressou em 2023 com quatro concertos distribuídos ao longo do ano: Pedro Moreira Quinteto (27 de maio), Off On a Comet (21 de julho), Branco toca Marco Paulo (12 de agosto) e Sul (9 de dezembro). Dos quatro concertos, três foram agendados para A Moagem – Cidade do Engenho e das Artes e um deles teve lugar no Parque das Tílias. Foi precisamente o concerto no parque, ao ar livre, que tivemos oportunidade de testemunhar, com a atuação do projeto Branco Toca Marco Paulo. O guitarrista Pedro Branco é um experimentado e versátil guitarrista, conforme tivemos oportunidade de testemunhar recentemente no Jazz em Agosto (integrado no grupo de João Lencastre), além de ter revelado um bonito disco de estreia a solo (“A Narrativa Épica do Quotidiano”); tivemos também já oportunidade de assistir à estreia deste trio em Lisboa, em fevereiro de 2022 (reportagem aqui).
Este projeto de Branco trata de trabalhar uma interpretação criativa das composições popularizadas em Portugal por Marco Paulo. Sendo o popular cantor geralmente mal visto pela elite e intelligentsia cultural, este projeto musical poderia soar a brincadeira irónica; não é, o grupo trabalha mesmo música séria (“tão séria como a tua vida”, como disse McCoy Tyner, citado por Val Wilmer). O repertório assenta numa combinação entre temas do seu disco de estreia, o pouco conhecido e surpreendente “Ver e Amar” (1970), e sucessos mais populares. Para o acompanharem nesta aventura, o guitarrista promoveu um cruzamento de gerações: convidou o baterista João Sousa (seu parceiro no duo Old Mountain) e uma verdadeira lenda do jazz português, o contrabaixista Carlos Barretto – líder do trio Lokomotiv, que este ano celebra 25 anos de existência.
Quando o concerto no Fundão arrancou, pouco passava das 21h30, viam-se ainda algumas cadeiras vazias. O trio começou a atacar a canção “Lutar é Viver”, uma melodia menos conhecida, que serviu de aquecimento. A guitarra de Branco explana o motivo, a secção rítmica (sólida) de Barretto e Sousa mantém a base; e pelo meio vão-se abrindo espaços para solos, em que cada músico se vai exibindo. O trio foi progressivamente conquistando o público, que arrancou frio mas foi aquecendo ao longo da atuação. Seguiu-se a mais conhecida “Eu tenho dois amores”, num arranjo inteligente que vive no contraste entre dois momentos: uma primeira parte lenta e delicada e uma segunda parte acelerada e brusca. E aqui o público já começou a ficar seduzido e as cadeiras já estavam mais preenchidas. Quando chegou a melodia de “Sempre que brilha o sol” já o público – que tinha entrado desconfiado – estava completamente rendido.
Estas canções são na verdade uma espécie de standards do cancioneiro português (que antigamente era designada de “música ligeira”, mas entretanto essa classificação deixou de ser usada, a música deixou de ser avaliada pelo peso). São melodias que todos conhecemos e reconhecemos e assim todos vamos conseguindo perceber e acompanhar com atenção o elaborado e minucioso trabalho de desconstrução e reconstrução feito pelo trio. Seguiram-se três temas do disco de 1970: “O resto da vida”, “Amar é vencer” (com um solo de guitarra muito interessante) e “Toc toc” (com uma boa introdução pelo contrabaixo de Barretto). A qualidade técnica dos três músicos é irrepreensível e ao vivo os três revelam um ótima ligação e comunicação. A música flui com naturalidade, a essência de cada composição mantém-se, mas os arranjos são criativos e há espaço para talento individual se fazer notar.
Para a parte final da atuação ficou reservado um pacote com os sucessos mais populares: “Anita”, “Taras e Manias” (“quando você vem com essa cara...”) e “Joana” – que partiu de um arranque lento para terminar num final explosivo. O público aplaudiu com entusiasmo e o trio regressaria para um encore: “Tema para uma Canção” (outra música do disco de estreia), onde se incluiu um solo de bateria de João Sousa interessante, curto mais preciso. Como já dissemos por aqui, o trio não se limita a “jazzar” as canções, fá-lo com personalidade, respeita a base e acrescenta novos elementos. No Fundão assistimos a um excelente concerto, um jazz vivo que se alimenta de nostalgia pop para criar algo novo. É curioso ver que este projeto tem sido convidado para atuar mais vezes em espaços/festivais indie do que propriamente em “venues” de jazz; talvez esteja na altura de o “pessoal do jazz” dar uma oportunidade a este magnífico projeto.
A próxima sessão do ciclo Moazz irá acontecer em dezembro (dia 9), com a atuação do trio Sul – de Bernardo Moreira (contrabaixo), Luís Figueiredo (piano) e Bernardo Couto (guitarra portuguesa).