Camille Émaille
Mãos oblíquas: Jazz em Agosto 2023 (dia 11, parte 1)
Chegar à Fundação Calouste Gulbenkian nunca foi tão difícil: a juntar à temperatura infernal (não é trocadilho com a jornada religiosa então em curso), o caos nos transportes públicos e um incêndio nos arredores de Lisboa. Enfim, valeram-nos os jardins miraculosos (isto vai) e o facto de o concerto das 18h30 ter decorrido no climatizado Auditório 2, bem-vindos refrigérios para corpos e mentes.
A proposta era um solo de Camille Émaille, jovem percussionista francesa, uma «traficante de instrumentos», como acertadamente lhe chamou o programador Rui Neves, não apenas pela forma como aborda os instrumentos de percussão, digamos, convencionais, aditando-lhes toda uma constelação de novas possibilidades, mas também, e porventura sobretudo, pelo seu lado de inventora dos seus próprios instrumentos.
Um kit de bateria balcanizado, gongos, sinos, chocalhos, címbalos, acessórios de origem ignota, percutidos e friccionados por um arco, baquetas de vários tipos, e pelas mãos, as mãos oblíquas de Camille Émaille, as mãos que brilham quando toca (lembrando Herberto Helder).
Émaille tanto gosta de trabalhar com a tradição, como põe em funcionamento o seu laboratório de experimentações, sempre interrogando, interrogando-se. Talvez esta abordagem telúrica e mundividente lhe venha do facto de ser oriunda da aldeia de Mercantour, nos Alpes Marítimos, não muito distante do Mediterrâneo, zona de cruzamentos civilizacionais. A formação clássica, nos conservatórios de Nice e Estrasburgo, por onde passou antes de ingressar na Academia de Música de Basileia, serviu de húmus para aperfeiçoar sensibilidades e práticas nos terrenos da música contemporânea e da improvisação.
O seu percurso tem sido feito de interpretar música alheia (de John Cage a John Zorn), mas também de solo improvisados, naturalmente singulares e irrepetíveis. O distinto rol de colaborações tem uma palavra a dizer: Peter Brötzmann, Fred Frith, Roscoe Mitchell, William Winant, Jean-Luc Guionnet ou Fritz Hauser são apenas algumas das luminárias das músicas criativas que a ajudaram a expandir horizontes. A pulsão pelo risco e pelos cruzamentos artísticos tem-na levado por colaborar com gente do vídeo, do teatro de sombras, das marionetas, da dança. E todos esses mundos parecem estar ali diante de nós, ao mesmo tempo, pela forma como tentacularmente opera a parafernália de instrumentos, espoletando sensações.
Camille Émaille faz dos materiais que convoca para estarem consigo em palco uma extensão viva do seu próprio corpo; por isso considera que um solo não é verdadeiramente um solo, na medida em que os instrumentos e outros acessórios são eles próprios fautores do que acontece, agindo como que por conta própria ou fornecendo ideias para que o ser humano presente possa organizar (ou desorganizar) a maleável matéria sonora. No solo sucinto que nos ofereceu – com cerca de quarenta minutos de duração –, a percussionista criou um mundo mágico, multiespacial e multitemporal, vibrante e intensamente orgânico, passível de ser percecionado tanto como uma relojoaria frágil e detalhada, com minúsculos pormenores a interpelar os sentidos, ou como uma construção grandiosa, de geometria em permanente metamorfose. Sons que hipnotizam e revigoram.