Ghosted, 4 de Agosto de 2023

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O fantasma de Donald Leslie, um cotovelo partido e drumming: Jazz em Agosto 2023 (dia 8)

texto: António Branco / fotografia: Jazz em Agosto – Vera Marmelo

Já com a jornada papista enxameando a cidade, chega ao Jazz em Agosto o trio Ghosted, cuja prestação acalentava naturais expetativas: a um duo que bem conhecemos a fornecer combustível rítmico para os Fire! – o contrabaixista Johan Berthling e o baterista Andreas Werliin – junta-se Oren Ambarchi, guitarrista e explorador sonoro australiano, cujo percurso se tem feito principalmente a solo, mas também de colaborações com gente distinta como Jim O´Rourke, Keiji Haino ou o próprio Berthling no álbum “Tongue Tied”, de 2015, onde experimentaram com pulsações rítmicas invulgares e drones – na aceção musical, não os 19 que foram intercetados no dia do concerto entre a Nunciatura Apostólica e o Parque Eduardo VII, a pouco quarteirões de distância da Gulbenkian.

Fé, fantasmas e demónios dão uma boa história, lá isso dão. E ela conta-se depressa: quando certo dia um jovem Ambarchi visitou a loja do avô, em Sidney, pensava levar o disco “Number of the Beast”, dos Iron Maiden; ao invés, apenas quando chegou a casa reparou que o disco que levara era nem mais nem menos do que “Live-Evil”, de Miles Davis. Se a princípio pensou que o que escutava era bizarro, aos seus ouvidos completamente caótico e sem sentido, algumas audições bastaram para que a música de Miles se tornasse uma obsessão e «abrisse portas para muitas coisas», como disse o músico recentemente à revista Uncut. E aqui chegou.

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O facto de já terem trabalhado em conjunto precisamente nos Fire! (tendo da colaboração resultado o álbum “In The Mouth A Hand” (2012) e uma digressão) exacerbou o desejo de se voltarem a encontrar em estúdio para gravar a três: e se bem o pensaram, melhor o fizeram. No final de 2018, numa gelada Estocolmo, nascia “Ghosted”, o álbum, editado no ano passado pela Drag City. Ao poder explosivo dos Fire!, os três músicos optaram por contrapor música com outras coordenadas, que desafia quaisquer linguagens e onde reina um groove circular e poderoso, misturando elementos provenientes de diferentes latitudes, geográficas e sonoras, do jazz ao rock, passando pela eletrónica experimental e por um psicadelismo intemporal.

No palco do Auditório ao Ar Livre da Fundação Calouste Gulbenkian compareceram assim três excelsos improvisadores que sem pudor transcenderam catalogações (que só servem para arrumar os discos nas prateleiras, como um dia ouvi dizer a Rodrigo Amado, que na antevéspera subira ao mesmo palco). Tudo parte geralmente de uma linha de baixo (deflagrada pelo contrabaixo ou pelo baixo elétrico) repetitiva, a que acresce uma bateria em permanente ebulição, amiúde garrida e apelando ao balanço do corpo, gerando grooves extensos e descarnados, que se sabe quando começam mas não quando e como acabam; em vez do saxofone altamente octanado de Mats Gustafsson, que, diga-se em abono da verdade, amiúde nos assalta o pensamento, temos a guitarra de Ambarchi que apenas muito raramente soa como tal (não há dedilhados ou linhas melódicas reconhecíveis de qualquer espécie), antes injetando doses controladas de uma eletrónica que cria atmosferas surpreendentes, prenhes de detalhes (papel decisivo cabe à coluna Leslie, honra lhe seja feita).

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Neste caldeirão sónico cabem motivos hipnóticos, ecos de África, crescendos catárticos, atmosferas etéreas, numa notabilíssima associação simbiótica entre as dimensões orgânica e eletrónica. A música é despojada de adornos e faz-se de um fluxo, contínuo, mais ou menos denso, que evolui paulatinamente, sem nunca explodir verdadeiramente, do qual emergem singularidades, formas efémeras tantas vezes espectrais (serão estes os fantasmas?), num cômputo a espaços luminoso, noutras enigmaticamente noturno.

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O minimalismo consequente, mas sempre em subtil renovação, do trio Ghosted, vagueou pela noite. Música que nos faz sonhar acordados, o que, no tempo que vivemos, é um bálsamo.

 

E a seguir?

Para quem gostou do concerto dos Ghosted, fica a sugestão de regressar no dia 5 às 18h30 para o solo de piano de Marta Warelis no último dia, 6, também à tarde à mesma hora, para o solo de percussão de Camille Émaille.

Agenda

04 Outubro

Carlos Azevedo Quarteto

Teatro Municipal de Vila Real - Vila Real

04 Outubro

Luís Vicente, John Dikeman, William Parker e Hamid Drake

Centro Cultural de Belém - Lisboa

04 Outubro

Orquestra Angrajazz com Jeffery Davis

Centro Cultural e de Congressos - Angra do Heroísmo

04 Outubro

Renee Rosnes Quintet

Centro Cultural e de Congressos - Angra do Heroísmo

05 Outubro

Peter Gabriel Duo

Chalé João Lúcio - Olhão

05 Outubro

Desidério Lázaro Trio

SMUP - Parede

05 Outubro

Themandus

Cine-Teatro de Estarreja - Estarreja

06 Outubro

Thomas Rohrer, Sainkho Namtchylak e Andreas Trobollowitsch

Associação de Moradores da Bouça - Porto

06 Outubro

Lucifer Pool Party

SMUP - Parede

06 Outubro

Marta Rodrigues Quinteto

Casa Cheia - Lisboa

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