Hedvig Mollestad
Encaixe perfeito: Jazz em Agosto 2023 (dia 4, parte 2)
O concerto que Hedvig Mollestad apresentou na Gulbenkian resulta de uma peça criada em 2019 para o festival Vossajazz 2019. É uma mudança na carreira da guitarrista que sai do seu formato mais confortável – o power trio de guitarra, baixo e bateria – para um ensemble maior (originalmente um sexteto com dois teclados; no concerto da Gulbenkian foi só com um). O disco revelou música muito boa em que os seus bons riffs de guitarra se alargam para uma instrumentação maior, com o trompete a dobrar a guitarra e dois órgãos que mantém um sabor de rock progressivo, mas na verdade alargam imensamente a abstração da música. Estamos entre as fronteiras do rock progressivo, da fusão jazzrock mas num local novo, como riffs poderosíssimos, texturas rítmicas e sonoras ricas e linhas melódicas que se colam ao ouvido instantaneamente.
As duas baterias funcionaram lindamente em conjunto, criando um mundo rítmico onde acontece imensa coisa mas que ao mesmo tempo consegue manter o passo estugado do rock com clareza. Torstein Lofthus dos Elephant9 é quem está sempre a pôr lenha na caldeira enquanto Ole Mofjell, que, para além da bateria veio com um set de percussão de orquestra digno de Emerson Lake & Palmer, adicionou mais cores à secção rítmica.
Sem um baixo a tarefa de manter uma certa estrutura fica a cargo dos dois teclados que na versão original estão à responsabilidade de Marte Eberson e Erlend Slettevoll (dos The Core, Grand General, Rune Grammofon) que não pode viajar até Lisboa. Assim a Marte Eberson ficou com a tarefa toda nos seus teclados (grandemente o órgão), com solos que só no primeiro saiu muito para fora da estrutura harmónica do tema. Nos seguintes ficou (demasiado em minha opinião) dentro da linguagem do rock.
A primeira vez que percebi que o trompete e a guitarra elétrica são perfeitos um para o outro foi em “The Saturday Boy” do disco Brewing Up With Billy Bragg de 1984. Os dois instrumentos encaixam como o arroz e o lingueirão; mas nem sempre esta ligação tem sido explorada. Hedvig usa-a magistralmente em minha opinião. Primeiro porque os põe frequentemente em voz, com os dois a tocar exatamente o mesmo. Tal como o som do piano e o da flauta de bisel alto são um casamento perfeito (Louis Andriessen, “Melodie” [1973]), o da guitarra fica deslumbrante com o do trompete (e vice-versa), criando um novo instrumento.
É Susana Santos Silva quem foi convidada para tocar trompete no disco e também, naturalmente, no concerto. Consegue fazer o que muito poucos trompetistas alcançam: tocar linhas melódicas rigorosas que dobram ou seguem paralelas à guitarra, por cima de compassos diferentes do seu, e depois solar extraordinariamente. É uma peça fundamental neste grupo.
O concerto de “Ekhidna” na Gulbenkian foi excelente, forte, ambicioso, rítmico meio mulher meio cobra como o da figura mitológica grega que dá nome a este projeto. Hevig enfatiza que “Ekhidna” que não é um álbum conceptual, mas que o tema da maternidade em tempos de crescente incapacidade em viver em harmonia com a natureza pairou no processo de composição. Ali, naquele cenário extraordinário do anfiteatro ao ar livre, nos jardins da Fundação, estas questões desaparecem momentaneamente e deixamo-nos encantar pelo prazer desta música que, ao ser tocada ao vivo ficou ainda mais livre e espontânea, melhor do que em disco.
O público gostou muito (e nó também) e aplaudiu de pé, o que obrigou a um encore com "Led Boots" de Jeff Beck. Mais um anfiteatro cheio, coisa que vai sendo habitual e que é muito bom.
E a seguir?
Para quem gostou do concerto de Hedvig Mollestad fica a sugestão de continuar a navegar pelo jazz tingido pelo rock no dia 1 de Agosto com o trio “The Attic”, no dia 3 com os “Ghosted” e o concerto de fecho, no dia 6 com Gard Nilssen’s Supersonic Orchestra