Quando o nosso mundo é o dos outros: Jazz em Agosto 2023 (dia 5)
Foi num contexto de crescentes constrangimentos à circulação e de transportes públicos transformados em babel sobre rodas que se iniciou a semana útil do Jazz em Agosto 2023.
O baterista João Lencastre regressou à Fundação Calouste Gulbenkian um ano depois de ter espantado com uma versão alargada para octeto da sua formação mais emblemática, Communion; desta feita trouxe um projeto distinto, com metade do efetivo, e no qual expande o seu lado criativo mais exploratório e imprevisível. Resultado de um percurso multímodo, Lencastre é um músico que se move com igual destreza em diferentes tabuleiros sonoros, e escutá-lo ao vivo é invariavelmente um deleite, e esta ocasião não foi exceção.
Com o seu projeto Safe In Your Own World, que conheceu edição em disco no ano passado, pela mão da Phonogram Unit, estende um já de si elástico perímetro de intervenção, quer enquanto compositor quer na condição de superlativo instrumentista. Hábil gestor de tempos e dinâmicas, é Lencastre que com labor oficinal estrutura o que acontece, ligando pontas, equilibrando discursos, apontando o caminho a trilhar.
Com o velho comparsa Leo Genovese ao piano, mestre Drew Gress no contrabaixo e Pedro Branco na guitarra elétrica (uma vistosa Flying V), Lencastre entrega-se neste quarteto a uma música que se faz de risco e ousadia, que finta lugares-comuns e que é muita coisa ao mesmo tempo, ser perder foco ou coerência. Se o primeiro encontro dos quatro se deu em estúdio, logo para gravar (a chama da urgência acedeu-se então com vigor), naquela que foi a primeira vez de Lencastre no formato, ao vivo percebe-se que a química da combustão continua a ser alimentada.
O quarteto apresentou música do disco e material novo preparado para a ocasião, que o baterista intitulou de “Jazz em Agosto I-II-III-IV”. Tudo começou em modo noturno, com notas etéreas de piano, Gress a empregar o arco conferindo gravitas, Branco a criar uma camada eletrónica textural e Lencastre a mostrar o quão detalhada a sua abordagem pode ser; tudo se foi então densificando até se aquietar novamente, abrindo espaço para um solo de Gress. Juntam-se-lhe Genovese e Lencastre para uma curta mas bela secção em trio.
O quarteto reagrupa-se para logo seguir noutra direção. Sim, porque é disso que se trata: o que se escutou é matéria sonora em contínua metamorfose, que convoca uma multitude de referências, naturalmente metabolizadas, de vários campos estilísticos da história do jazz, mas não apenas. A música construía-se, desconstruía-se e reconstruía-se numa vertigem caleidoscópica. A um instante catártico podia suceder-se outro de uma serenidade esdrúxula. A dado momento, a guitarra de Pedro Branco ganhou alguma centralidade, de travo vintage até. Genovese era quem trazia por vezes a música à terra, alternando ebulições com passagens de um vincado lirismo. Gress, sempre imponente, foi quem nos voltou então a deslumbrar com novo solo.
Quase no fim da função, um apertado tricot entre guitarra e piano, sublinhado por uma poderosa linha de contrabaixo, conduziu a peça a um clímax épico. Tempo ainda para um telegráfico encore.
Como que completando uma estrutura circular, no final tudo pareceu voltar ao início, milhões de sinapses depois. Um bom concerto, de uma formação com muito para dar.
E a seguir?
Para quem gostou do concerto de João Lencastre Safe In Your Own World fica a sugestão de continuar a frequentar jazz feito criativo mais exploratório no dia 1 de agosto com o trio The Attic, no dia 4 com o Myra Melford’s “Fire and Water”, no dia 5 com Mary Halvorson’s “Amaryllis” e no último dia à tarde, com o solo de percussão de Camille Émaille (18h30).