Julia Reidy
O devagar e o longe: Jazz em Agosto 2023 (dia 4, parte 1)
Diz que Deus descansou ao domingo, mas o preceito não se aplica ao jazz: dois concertos num só dia e quatro por fim-de-semana fazem mais pela alma que muito livro sagrado. Apesar dos enormes obstáculos que o estado laico nos colocou para escolher o ato litúrgico que nos convém, voltamos à mesma hora ao mesmo local para o sermão em guitarra elétrica de Julia Reidy. Fora dos muros da Fundação, a invasão papista já estava em marcha. Dentro, o mundo era ditosamente o habitual.
Não foi um concerto de jazz, nem de música experimental. Reidy entrou discretamente em palco e atirou-se à sua guitarra elétrica e pedais, antes que o público tivesse oportunidade de a receber com aplausos.
A música de Reidy assenta no virtuosismo de manusear os pedais, em particular um uso combinado de delays (eco e prolongamento do som) com funcionalidades complexas (como o “Avalanche Run” e o “Space Spiral” da Earthquaker Devices em combinação com o “Mood” da Chase Bliss). São muitos delays em jogo e as possibilidades combinatórias são quase infinitas, sendo que, mal-usados, tem uma probabilidade enorme de degenerar em drones. Por isso a música da guitarrista berlinense também é feita de ciclos.
O som da guitarra é muito curioso: toca com os dedos e usa arpejos dedilhados. Tem um ataque brilhante como o do Pat Metheny, mas esse som inicial entra nos pedais para ser seviciado pelos delays e pitch shifters. A guitarra é só a porta de entrada para frases musicais que se multiplicam e esboroam, deixando um rasto de sons derivantes, poeira eletrónica.
Faz canções com formas muito simples, em que o mesmo arpejo vai sendo pacientemente ruminado, entrando nas repetições e no prolongamento infinito, como se estivesse a tocar na Catedral de Sevilha.
Também canta e também a voz é modelada por um harmonizador que a afina com o som da guitarra e produz uma canto sombrio, que nos quer dizer coisas que mal ouvimos.
Bebe da inexpressividade dos Kraftwerk e a sua música tem a organização e o rigor alemães (apesar da guitarrista ser originária da Austrália). Estamos no campo da música pop corajosa, com um canto assombrado e à procura de um lugar original para a sua música. O concerto – curto – ouviu-se com agrado mas não deixa lembrança.
E a seguir?
Para quem gostou do concerto da Julia Reidy fica a sugestão de continuar a viagem pelos solos femininos agendados com o piano de Marta Warelis no dia 5 de Agosto, também às 18h30 e no último dia, o solo de percussão de Camille Émaille.