Jazz Festival Ljubljana, 11 de Julho de 2023

Jazz Festival Ljubljana

Ljubljana sabe jazzar: música boa numa muito boa cidade

texto: Gonçalo Falcão e Helena Persuad / fotografia: Nada Žgank e Nika Hölcl Praper

Para quem não quer ir visitar as cidades europeias atulhadas de turistas no verão, Ljubljana é a escolha perfeita: pequena, pedonal, toda virada para o rio ladeado de esplanadas, com boa comida, bom vinho (idem) e boa vida noturna. É o destino perfeito para quem gosta de jazz e do resto.

Durante 4 dias, a cidade é inundada por jazz em doses maciças. São 27 concertos que não deixam pedra sobre pedra. Este modelo é muito comum noutros países (o ano passado reportámos o caso de Chicago) em que os festivais programam uma enormidade de espetáculos e o público vai aparecendo, entrando e saindo. Um pouco à semelhança dos festivais de rock. A jazz.pt foi até lá e reporta.

Ljubljana

Como é habitual o festival abre na véspera do dia dos concertos com a inauguração de uma exposição de fotografia. Neste caso o fotógrafo Nika Hölcl Praper registou o quotidiano do percussionista esloveno Zlatko Kaučič propondo uma mistura entre a vida do palco e o dia-a-dia, numa ideia de projeto artístico global. Para concluir a exposição subimos até ao sexto do edifício onde a maior parte dos concertos se passam, o “Klub CD”: uma boa sala de concertos para aproximadamente 200 pessoas, bar atento e diligente e uma esplanada soberba com um vista para a cidade e para os alpes.

Concertos inesquecíveis

Logo na primeira noite do festival, estavam programados dois concertos para o grande público, no Križanke, um anfiteatro lindíssimo criado pela distância entre um antigo convento da ordem do templo renovado no século XX e as antigas muralhas da cidade.

Benjamin Clementine no Križanke

Não eram concertos de jazz, mas de música pop, naquilo que pensamos ser um processo de captação de mais público e de divulgação do festival (se é bem conseguido, não sabemos, mas nada obriga a que um festival de jazz tenha só jazz).

 Benjamin Clementine no Križanke

Benjamin Clementine

Benjamin Clementine não se define como um músico de jazz mas, curiosamente, há muito mais improvisação e imprevisto na sua música no que da do teclista inglês Alfa Mist, que o precedeu e que se identifica com um jazzman.

 Benjamin Clementine no Križanke

Começou sentado no piano sozinho. O músico tem um enorme carisma, conseguiu agarrar logo os mais de 2000 espetadores que subitamente encheram o auditório e viram o concerto todo de pé (confirmou-se que a maioria não estava lá para Alfa Mist e que tinha preferido copos e conversa no pátio contíguo).

Benjamin Clementine no Križanke

Clementine perguntou ao público se gostavam da sua “boring music”. O público disse que sim. Pediu-lhes para repetir 50 vezes o mesmo refrão sobre estar preso na liberdade do amor (além da música e da performance as letras do inglês são excelentes); e o público cantou 50 vezes a mesma frase, presos também ao magnetismo do músico e à convicção que a repetição constrói. 50 vezes não é uma figura de estilo ou uma estimativa: ele contou-as decrescentemente.

Benjamin Clementine no Križanke

É dentro desta ideia de uma liberdade aprisionada, de um estilo de opereta Kurtweilliana, que a sua música se vai desenrolando. Apareceu depois um quinteto de cordas, que teve dificuldade em adaptar-se às mudanças de planos que a liberdade musical e interpretativa de Clementine pedia. Um concerto muito bom, em que percebemos que o músico não é um produto discográfico, que canta excelentemente, tem ideias interessantes para dizer, toca piano e sabe conquistar 2000 pessoas e pô-las do seu lado.

 Benjamin Clementine no Križanke

Gard Nilssen Supersonic Orquestra

Lakecia Benjamin disse que devíamos apertar os cintos porque ela ía “blow the ceiling”. Não o fez. Quem realmente abanou as estruturas do prédio foi a Supersonic Orquestra de Gard Nilssen. Os 17 nórdicos são super e são sónicos. O nome não engana.

Gard Nilssen's Supersonic Orchestra

O grupo montou-se no meio do palco muito junto, tudo à volta das três baterias e mostrou o que é que acontece ao jazz se se focar na música e não na indústria (como em Lakecia). Começaram com o prego a fundo e mostraram ao que vinham, fortes, livres, grandes solos.
O segundo tema que tocaram - “Spending Time With Ludwig” (a jazz pt tem incluído este tma nas suas playing lists) -  é uma canção lindíssima com um feeling sul-africano. Ludwig é o filho de Gard Nilssen. Esta música foi escrita em Março de 2020, quando o músico foi obrigado a regressar a casa por causa da pandemia e se viu obrigado a ter que ficar 20 dias fechado na cave da casa dos seus pais (a Noruega foi muito mais espartana nas medidas do COVID do que Portugal).

Gard Nilssen's Supersonic Orchestra

Nesta horda viking cada músico é líder do seu projeto e é um excelente solista. E cada projeto destes músicos é interessante e original (aliás ouvimos um deles logo de seguida). Isto é o melhor da música nórdica, junto. O resultado dificilmente seria mau.

Gard Nilssen's Supersonic Orchestra

Depois de um início em força com a orquestra desceu o volume e veio até aos temas mais lentos mostrar que também sabe ser suave. “Letter To Alfred” assenta numa linha de baixo de Ingebrit Haaken Flaten e mostra uma Supersonic delicada e swingar. Tira patido da capacidade para a organização e rigor, depois de um começo mais sul-europeu e ritmado.

Gard Nilssen's Supersonic Orchestra

Muitas vezes, nas grandes orquestras, os músicos sentem que quem tem que manter o “train going” é o baterista. Que é esta a sua tarefa e responsabilidade. Mas na Supersonic não é assim. Todos os músicos sentem que esta também é a sua responsabilidade e função. A música escrita - as pautas de Gard Nillsen para a Supersonic – não são particularmente difíceis ou desafiadoras. São um impulso para o movimento.

Gard Nilssen's Supersonic Orchestra

A música é suficientemente complexa para entusiasmar um músico de jazz mas também razoavelmente simples para que não tenham que estar obcecados com os arranjos e possam ter sempre em mente a imagem global de cada tema e o seu papel nesse coletivo. Há suficiente música escrita para criar o sentido de grupo e orquestra mas também há muito espaço aberto e indefinido para que os músicos possam ser únicos e verdadeiros e trazer o melhor di si para esta orquestra.

Domen Cizej

Cizej tocou na véspera da inauguração (crítica em baixo) e logo no segundo dia do festival, em duo com piano. Entrou primeiro a solo rodeado por um set de percussão gigantesco (gongos chineses, timbalão, bateria) e com a entrada de Filippo De Orsola para o piano, começou uma segunda parte do concerto, mais interessante.

Domen Cizej e Filippo De Orsola

O piano de cauda preparado com pequenos troncos de árvore tocou uma música complexa, numa linguagem contemporânea, aberta e abstrata. Muito interessante a forma de tocar de Deorsola que se percebe beber muito na música contemporânea escrita, de Cage aos Italianos (Scelsi, Sciarrino).

Filippo De Orsola

Vem de Bruxelas mas o seu passado cultural é italiano. Cizej usou todo o enorme arsenal percussivo numa abordagem pouco rítmica, num encantamento com os sons percussivos, criando uma floresta sonora que interagia com o piano. Uma música não figurativa e complexa que se ouviu com prazer.

Fazendo jus à monumentalidade do trabalho editado por Cizej este ano (uma caixa de 5 CD's), como já referimos a programação do festival deu-lhe três concertos diferentes, dois dos quais muito marcantes.

Ainda mais que o solo/duo como Filippo Deorsola, o concerto que fechou o festival, com o seu grupo de percussão, foi excecional.

Domen Cizej percussion ensemble

A composição para percussão ganhou expressão no início do século XX com o trabalho de Edgard Varèse e desde então passou a fazer parte do léxico dos compositores, havendo músicos e ensembles especializados. O septeto liderado por Cizej é um destes casos e neste concerto interpretou a sua música, entre ideias (formas, processos) pré-estabelecidas e a improvisação.

Domen Cizej percussion ensemble

Uma estrutura enorme que ocupava o meio da sala esperava por nós. Além de cénica, eram dezenas - talvez mais de uma centena - de instrumentos de percussão arrumados num espaço circular. Não havia amplificação. Só os sons naturais das percussões naquela sala específica, também ela com muita madeira.
Vinham do chão, estavam pendurados, tambores, pratos, um sortido de objetos prontos a serem percutidos.

Domen Cizej Percussion Ensemble

A música começou e era difícil perceber o que estava escrito e definido e o que era improvisado. Um mar de sons tomava conta da sala. O grupo geriu muito bem as intensidades, as dinâmicas e os sons. É fácil sete pessoas armadas com baquetas descontrolarem-se na criação de um pastoso sonoro. Mas isso não aconteceu. Uma música estranha, feita de sons pequenos e repetidos das mais diferentes naturezas surgiu e foi evoluindo com uma elegância e controle notáveis. Os músicos não tinham pautas por isso quero acreditar que as indicações de Cizej tenham sido genéricas e abertas à interpretação individual. E o grupo – pela prática ou pela sua formação – conseguiu manter uma forma geral sempre interessante e momentos ricos e curiosos. Se nos dissessem que a peça tinha sido toda escrita, acreditávamos.

Domen Cizej Percussion Ensemble

Os músicos mostraram ter um controle das dinâmicas, da forma global e das formas momentâneas, da cor, das texturas admirável. Os movimentos da música foram sempre feitos com elegância. A parte visual também era hipnótica. Uma peça especial, única, que foi um privilégio poder presenciar. Isto para não falar da coragem que é necessária para formar um grupo destes e do esforço que esta peça envolve, da montagem à execução. Mas é de facto um momento especial.

Domen Cizej Percussion Ensemble

Domen Cizej, nasceu na Eslovênia em 1996. Ainda não completou os 30 anos. Tem coragem, vontade, energia e música. Tem uma técnica apurada mas sabe que não é a técnica que faz a música.

Signe Emmeluth “Amoeba”

O dia já ia com seis concertos (na verdade já iam 7, mas não conseguimos ouvir um deles por sobreposição), e subimos em esforço para o ultimo da noite; não sabíamos ainda que viria a ser um enorme prazer. A saxofonista norueguesa Signe Emmeluth (que tinha tocado à tarde com a Supersonic Orquestra) tem uma música única.

Lidera o seu quarteto “Amoeba” (o disco "Polip" não é tão interessante como foi a múica ao vivo) que toca uma música também feita com repetições, mas desta feita rápidas e sempre em mudança. Entre as partes tocadas em uníssonos com ritmos impossíveis e as improvisações o “Amoeba” tem um encanto muito especial.

É uma música realmente nova, feita com elementos antigos. As questões rítmicas são tratadas com uma enorme originalidade e nem conseguimos perceber totalmente o que é que se está a passar. Há uma ilusão quase mágica nesta música, uma sensação que os 4 músicos estão a tocar músicas diferentes mas que, por algum ilusionismo, se encontram e desencontram, fazendo-nos perceber que pertencem à mesma unidade mas são coisas diferentes. Melodias muito bonitas que nunca concluem, aparecem e depois dão lugar a outras, sem uma lógica de união aparente, mas na verdade encaixando.

Nunca parece ter havido uma repetição ou um refrão. A peça é um contínuo. Como se fosse o texto de um monólogo dito por quatro pessoas, de vez em quando acentuando parte do texto em uníssono, outras dizendo cada um uma parte diferente que, sem aparentemente fazerem sentido... fazem. Apesar dos 4 músicos serem excelentes, descobrimos um guitarrista notável: Karl Bjorå.

Jeff Parker

Jeff Parker e o seu grupo tocaram no palco grande do jardim ao ar livre. Josh Johnson no saxofone alto, Anna Butterss no contrabaixo e Mikel Patrick Avery na bateria. Um concerto belíssimo em que um padrão simples foi repetido eternamente e a guitarra de Parker, que alinhava no padrão, ia construindo pequenas e lentas evoluções à frase original, com o saxofone a fazer o mesmo. Uma música hipnótica, feita de pontos unidos que vão evoluindo lentamente e formando um contínuo que se move devagar mas surpreendentemente.

Jeff Parker

Jeff Parker é uma figura emblemática da cena jazzística independente americana, na interseção do jazz, da música improvisada e do pós-rock. Membro da banda de culto Tortoise tem trabalhado sobre esta ideia de música estática numa lógica mântrica e repetitiva, mas sempre com elementos surpreendentes. Este projeto chamado ”Mondays at The Enfield Tennis Academy” explora as micro-mudanças e diálogos melódicos que ocorrem constantemente quando nada parece estar a acontecer para além da repetição.

Immanuel Wilkins

O trompetista americano é um dos músicos em ascensão na cena americana, tendo gravado o seu álbum de estreia na Blue Note em 2020. Ao vivo mostra uma enorme consistência e um grupo fortíssimo, que parece já tocar junto há 25 anos (Wilkins tem 25 anos).

Immanuel Wilkins

Os 4 músicos estão permanentemente ao ataque e a desafiar os companheiros. Neste quarteto ninguém espera por ninguém, é uma corrida impiedosa a 4. A bateria toca em tudo o que pode enchendo o espaço rítmico por completo. Ficamos a conhecer mais um grande baterista: Kweku Sumbry.
O contrabaixo mantém as rotações no vermelho, como se fosse natural; não é um walking bass mas sim um sprinting bass. Wilkings lidera a máquina entusiasta, entregando o tema e passando logo para os solos.  É o jazz americano tradicional, que não procura inovar na forma mas que mociona pela forma como é tocado.

Kweku Sumbry

Wilkins (por enquanto) joga dentro das formas conservadoras da tradição; o som do saxofone parecia estar um pouco baço o que não o impediu de o soprar com força e de se destacar, num mundo em que há um baterista de mão pesada e rápido, um baixista rochoso e um pianista que vai assegurando a estrutura harmónica e enchendo o pouco espaço livre deixado pela secção rítmica. More is More: foi muito bom ouvi-lo o jazz americano, sem corantes nem conservantes.

Eduardo Raon e Boštjan Gombač

Eduardo Raon é português, mas está radicado na capital eslovena há vários anos. Com ele regressava a harpa ao palco (tínhamos ouvido na véspera Muva Of Earth que referiremos mais tarde), mas com um uso radical. Raon processa eletronicamente aquela grande armação, expandindo radicalmente o seu som, usando ainda vários dispositivos para acionar cordas. Veio em duo com Boštjan Gombač que também veio artilhado com um arsenal de instrumentos para o palco (e ainda inventou alguns, como quando começou a tocar com a garrafa de plástico da água): vários sopros da família do clarinete, saxofone, trompete e percussões, melódicas, assobios e apitos estiveram em ação.

Uma música grandemente improvisada, mas que tem sempre uma preocupação em usar formas reconhecíveis e em construir situações melodiosas, com os sopros, com a harpa ou mesmo com ambos numa interação muito interessante.
Este duo tem uma abundância sonora infinda que nos vai mantendo interessados,  uma viagem por dezenas de sons musicais que evocam diferentes ambientes.. Gombač & Raon são dissidentes da formação clássica, têm uma excelente ligação e sabem como construir histórias através de um diálogo de sonoridades estranhas, que nos fazem viajar por um mundo musical riquíssimo.

Roberto Ottaviano “Eternal Love” (com Alexander Hawkins no piano)

Há qualidades que todos reconhecemos aos italianos no campo da arte. Na música um elemento mais ou menos comum é a grande veia melódica, que trazem para todas as áreas, incluindo para o jazz.

Roberto Ottaviano "Eternal Love"

O saxofonista Roberto Ottaviano é um veterano da cena italiana e provou que continua em forma. O “Eternal Love” é dedicado ao jazz referenciado em África. Neste contexto, para além do amor expresso em pauta pelo músico, o quinteto interpretou temas de Don Cherry ou Abdullah Ibrahim.

Roberto Ottaviano "Eternal Love"

O saxofonista mostrou também que sabe formar grupos. Música muito melódica, jazz old school com uma escolha de temas bonitos, muito bem tocados, com feeling, e um grande pianista, um grande contrabaixista e um grande saxofonista. Um concerto belo, emocionante, alegre e muito bom de ouvir.

Alexander Hawkins

Alexander Hawkins ocupou o banco do piano e impressionou positivamente, não só pelo ângulo de abordagem a cada um dos temas, como também pela forma como os interpretou e soube er o som do grupo, mesmo quando o seu trabalho em nome próprio tende para territórios mais indefinidos e abertos.

Charlotte Greve Lisbeth Quartett

Mesmo sendo o oitavo concerto do dia a alemã Charlotte Greve tocou com energia e frescura. A jovem saxofonista escreve música interessante e toca-a com energia. Trabalha em Nova York e – talvez por sugestão – parece juntar na música deste quarteto, a exatidão alemão com a intensidade de Brooklyn. Melodias muito expressivas, solos abertos e com surpresa. Foi ótimo ouvi-la

Charlotte Greve Lisbeth Quartett

 

Nem tudo pode encher as medidas

Como é evidente, numa overdose de 27 concertos, alguns desaparecem mas rapidamente da memória porque a música não foi tão entusiasmante ou inovadora.

Domen Cizej (1º concerto)

Na véspera da inauguração do festival estava programado o primeiro de três concertos do baterista Domen Cizej. Apareceu em trio de piano, contrabaixo e bateria, um formato clássico. Hendrik Lasure (nas teclas) deixou uma excelente memória, com uma forma de tocar muito sofisticada. Soet Kempeneer no contrabaixo é que teve dificuldades para encontrar o seu lugar, entre um baterista que - sendo de facto bom – ocupa muito espaço (positivamente falando, criativo, interessante). Sem um contrabaixista com igual capacidade, usa toda o espaço que consegue encontrar. Não foi um concerto mau, mas não esteve no nível de excelência dos outros dois (grupo de percussão e duo de piano com Filippo De Orsola) que em cima elogiámos.

Fishsticks

A música dos Fishsticks foi a primeira a fazer-se ouvir no palco instalado no jardim, por baixo de um enorme plátano.

à frente de um prédio modernista pintado com um verde hospitalar. Tudo deslumbrante.

No embasamento da torre onde a maior parte dos concertos acontece, à tarde, temperatura amena: cenário completo. No palco um piano, um contrabaixo, bateria, trompete e saxofone comandados por cinco músicos. Fishsticks é o nome do quinteto jovem.

Fishsticks

A banda Erasmus diz ser vienesa (onde se conheceram) e reúne eslovenos, eslováquios, húngaros e catalões a falarem todos a mesma língua: um jazz simpático, com canções próprias, ritmos dançáveis, melodias bonitas e solos bons.
Não podemos deixar de elogiar este grupo que já toca um jazz muito bem feito e que tem ambições de originalidade e de construção de um caminho. Irá acontecer.

Agustí Fernández, Barry Guy, Zlatko Kaučič,

A sala Štihova é um auditório extraordinário, circular, descendente, quase como um poço, com 200 lugares, que cria um ambiente único para concertos de pequena escala. É uma das salas mais interessantes que conheço para concertos de jazz.

Agustí Fernández, Barry Guy, Zlatko Kaučič,

O palco foi ocupado por três bons improvisadores veteranos, cada um a trazer para o concerto o seu léxico de elementos musicais. Alguns pouco interessantes - como a repetição dos movimentos cíclicos de intensidade-silêncio, o “follow the leader” (um músico faz uma coisa e os outros vão todos tentar repetir o mesmo tipo de ideia), muitas saídas e entradas em fade out, fade in.

Barry Guy

A bateria usou um grande arsenal de objetos metálicos para além dos pratos. Zlatko Kaučič (o homenageado na exposição de fotografia que inaugurou oficialmente o festival no dia antes dos concertos começarem) tem uma abordagem gestualista, em que a música é sentimento que gera uma reação física, que por sua vez coordena os gestos percussivos. Nem sempre colocar as fichas todas no lado emocional garante um bom resultado.

Barry Guy propôs várias ideias diferentes, mas que de algum modo acabavam sempre por ser tratadas da mesma maneira pelo grupo; Agustí Fernández é um grande pianista, como um léxico muito alargado, desde a abordagem tradicional (onde foi interessante de seguir neste concerto) até às traficadas (menos), sem criar momentos memoráveis. Foi um bom concerto de improvisação total, mas que não deixa sede de mais um.

Tisa Neža Herlec e Konrad Bogen “Absortion”

Piano e voz num projeto de poesia cantada (e no final dita). Canções que de algum modo retomam a tradição da canção folk inglesa; canções de intervenção. Um estilo antigo, razoavelmente afinado, sempre num registo agudo difícil.

Tisa Neža Herlec e Konrad Bogen “Absortion”

O piano era quem tinha mais liberdade improvisacional. Foi um início estranho, com um projeto corajoso, que valorizamos pela vontade de regressar a uma espécie de Joan Baez. “Absortion” é Tisa Neža Herlec, com Konrad Bogen numa música que junta uma memória ultrapassada com mensagens para a construção de um futuro melhor.

Jelena Popržan Quartett

Também foi na sala-poço, que ouvimos o Jelena Popržan Quartett, em que a cantora e violetista se junta com um quarteto com um som clássico (clarinete, violoncelo e contrabaixo). A música Sérvia trouxe um aroma a café vienês, misturando a tradição europeia clássica, com os baixos marcados do kletzmer, e ainda as canções com andamentos populares como a valsa, a polka e as formas do cabaret.

Jelena Popržan

Referenciou-se em na escritora polaca-judia, Tamar Radzyner (1927–1991) que para além de poesia, escreveu canções para cabaret e rádio para construir as suas próprias canções.

Jelena Popržan Quartett

O concerto teve sabor a espetáculo musical de café centro-europeu, com algum humor, música ligeira com várias referências e melodias num mundo musical-teatral. Por defeito, aquilo que se espera de um violinista da ex-Jugoslávia é um repertório “dos Balcãs”, como toda a influência Romani. Sem a recusar, Jelena Popržan subverte esta ideia, mantendo a alegria festiva e evitando os clichês.

 Jelena Popržan

Sélène Saint-Aimé

O quinteto de Sélène Saint-Aimé trouxe até Ljubljana música muito ritmada e alegre, na fronteira entre a world music e o jazz. O projeto da contrabaixista e cantora caribenha assenta em ritmos e sons das suas ilhas natal e tem a intenção honesta de valorizar a sua tradição, a música da Martinica. Deste modo pretende valorizar o papel que a as ilhas do Caribe tiveram no jazz.

Usa linhas de baixo repetitivas para apoiar a máquina rítmica de bateria e o tambor Ka (um membranofone tradicional da ilha de Santa Lucia) que constroiem uma base sobre a qual os dois sopros – saxofone tenor e o trompete, entregarem os temas. A contrabaixista também cantou com um tom de voz agudo, numa forma frágil e dolente que encantou. A música tem elementos originais e uma matriz rítmica atraente, com uma alegria dançável. Uma excelente forma de ganhar balanço para a tarde, com pouco jazz mas muito Calipso e Zouk.

Luís Lopes, Cene Resnik e Samuel Ber

Cene Resnik, que já conhecemos dos discos em trio e quarteto, convidou Luís Lopes e o baterista Samuel Ber da Bélgica. Improvisação total, com a guitarra a assumir um som frontal, um excelente baterista e Resnik a ter que lutar pelo seu lugar no meio de dois instrumentos muito ativos. Cene tem um excelente som no saxofone e um fraseado bonito que gostávamos de ter ouvido mais. Mas Lopes tem tendência a puxar pelos amplificadores e houve momentos em que até a bateria ficou submersa. Impôs a sua presença e forçou o trio a ter que gritar para ser ouvido (o que nem sempre foi positivo dado que o melhor de Resnik não está no registo gritado (sendo que no início o saxofone esteve belíssimo).

No seu solo, Ber tentou inteligentemente puxar o volume para baixo e propor outros caminhos. Quando a música era mais aberta e havia espaço para os três, funcionava muito melhor. Mas foi Sol de pouca dura, o guitarrista levou a música novamente para o volume e distorção e Resnik e Ber obrigaram-se a subir para poder participar. Faltou alguma cola a este grupo – que tocava pela primeira vez – e que talvez não seja o melhor encaixe de personalidades musicais.

Se não era chuva nem vento... foi o spleen que bateu assim.

Alguns dos concertos foram triviais. A Europa e o norte da Europa em particular parecem ser quem, neste momento, é capaz de propor música mais livre e arriscada. A Inglaterra e os EUA dividem-se entre músicos que estão focados na música e na inovação e outros muito centrados na comercialização e num “produto” de fácil digestão. Algum jazz americano já não consegue sequer ver para além disto, de tão fechado que está na cultura e mentalidade americana e numa ideia de fama, individualismo e show business.

Theon Cross

A tuba de Theon Cross veio sozinha. Não porque tivesse de facto tocado a solo, mas porque o grupo que o acompanhou era fraquíssimo. Chelsea Carmichael no saxophone, Nikolas Ziakras na guitarra e Patrick Boyle na bateria são músicos genéricos com pouquíssimo para dizer nos solos.

A bateria entra num ritmo e leva a coisa repetida até ao final; a guitarra e o saxofone elementares preencheram os lugares que faltavam. Se a música viesse gravada não se teria sentido grande diferença nesta área. A ideia paraia ser a de fazer brilhar o líder, o que de facto aconteceu.

Theon Cross

O som do grupo - cheio de reverb - é moderninho dentro do género FM. Música da rádio.
A tuba esteve em modo Al Di Meola: faz de baixo, depois inicia o solo e, nesse processo, dispara em acrobacias rápidas num instrumento tão pesado e lento. Se não tivéssemos em Portugal um tubista virtuoso, este tipo de malabarismo instrumental até nos poderia impressionar, mas como já ouvimos Carolino a fazer coisas extraordinárias, tocar notas rápidas, fazer agudos, manter um baixo acelerado e consistente, etc. - não nos arrebata.

Theon Cross

O tubista dos Sons of Kemet é um excelente instrumentista, mas não mostrou ser um compositor, nem ter grande coisa para nos dizer (musicalmente falando) nos solos. O concerto foi bom para dançar, sempre nas franjas do dub e do hip-hop. De jazz não ouvimos grande coisa.

Alfa Mist

Logo no primeiro dia 1000 pessoas ouviram sentadas na pedra do anfiteatro Križanke o concerto do(s) inglês(es) Alfa Mist. O grupo liderado por Alfa explora o espaço musical do hip-hop lento, com alguns solos. Ritmicamente a música é pobre: bastam 3 segundos e já sabemos o que vai acontecer até ao final. Os solos são os típicos da pop, não saem do mesmo lugar e não levantam questões ou ideias: aceleram e intensificam. Alfa Mist diz que é jazz, mas não percebemos muito bem porquê.

Alfa Mist

Alfa nos teclados é o elemento mais interessante do grupo, num concerto monótono, bom para se ouvir como fundo de conversas e bebida, o que de facto aconteceu: o pátio ao lado do anfiteatro estava muito bem fornecido de balcões e gente desejosa de encher copos. Estava lá pelo menos metade do público do Križanke.

Esta música é um produto tipicamente inglês, feita para ser vendável, que se pode ouvir bem em disco (onde a produção é sempre muito bem feita, ou não fossem os ingleses os mestres da coisa) mas que ao vivo é baça.

Lakecia Benjamin.

A sala Gallusova é um auditório magnifico, enorme, com uma linguagem brutalista russa, enquadrado por um órgão monstruoso. Imaginamos facilmente um congresso do partido comunista juguslavo. Foi o local escolhido para dar a ouvir a saxofonista nova-iorquina Lakecia Benjamin que vinha com um disco novo na bagagem. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.

Lakecia Benjamin

Chegou vestida de dourado da cabeça aos pés como se fosse um enorme saxofone e começou logo com o aceledor a fundo. O jazz de Lakecia não traz novidades mas é muito bem tocado, com um som forte e boa articulação e fluidez. Depois de ter tocado com Christian McBride e Gregory Porter, estabeleceu-se como líder e a Ljubljana trouxe um quarteto cuja função era ficar invisível. Tocaram como funcionários sindicalizados, com a qualidade americana das equipas do final da primeira divisão.

Lakecia Benjamin


Apresentou o seu mais recente disco “Phoenix” que, segundo a compositora, celebra a presença das mulheres no jazz (não ficou bem claro nem como nem porquê, para além do facto do disco (LP) ter algumas mulheres convidadas). Tocou e rapou, fez os discursos americanos da praxe do show business na Europa, para os quais já há pouca paciência. Que os Eslovenos eram melhores que os alemães, que adorava a Eslovénia e chegou ao descaramento de dizer que há paz no mundo; um pouco como ter um americano a dizer que o problema da França é não ter uma palavra para “entrepreneur”. Pobre de quem as ouviu; quem as diz ficou aliviado.

Lakecia Benjamin

O seu som no alto é forte, limpo e claro. Tem um fraseado muito flexível com a intensidade que caracteriza uma das escolas americanas. Andou no terreno do Gospel com “Amazing Grace” e nas formas mais tradicionais (blues, bop). Anunciou que ia tocar o “My Favorite Things” e pediu para apertarmos os cintos de segurança porque ia rebentar com a sala. Não aconteceu.

Nina Virant

 Nina Virant

O trio de vozes de Nina Virant convidou o famosíssimo baterista norueguês Gard Nilsen (Bushman´s Revenge, sPacemonKey, Gard Nilssen Acoustic Unity, Gard Nilssen´s Supersonic Orchestra que vamos ouvir no Jazz em Agosto este verão). O contexto era complicado para o baterista e ficamos a admirá-lo ainda mais. Nina Virant constrói canções vocais com um sabor tradicional. Tem um grande domínio da voz e hiperemociona cada palavra que canta, numa entrega por vezes exageradamente sensível.

Nina Virant e Gard Nillsen

O duo que a acompanha, também vocal, usa quase sempre a monodia, apostando na sobreposição de linhas vocais em uníssono, em diferentes tonalidades. Uma música em que acontece pouca coisa, jazzisticamente falando falando, estamos na fronteira entre o jazz e o folclore. Nilssen teve que inventar uma forma de contribuir, com ritmos regulares e que não contrastasse com a modéstia das canções. É aqui que entra a genialidade do baterista. Não só usou uma enorme quantidade de soluções tímbricas na bateria, sobrepondo, emudecendo metais, madeiras, pequenos tambores, como conseguiu ser sempre criativo e interessante naquele mundo tão rudimentar. Admirável.

Neža Zupanc

A música da eslovena Neža Zupanc é pensada como uma banda sonora para um filme imaginário. Um grupo de cordas (dois violinos, viola, violoncelo e flauta). Música grandemente escrita com pouco espaço para a improvisação, assente na tradição de câmara europeia, com uma sonoridade sóbria. Se calhar a melhor forma de criar um intervalo entre a dança caribenha que a precedeu e o jazz musculado de Immanuel Wilkins, que começou logo a seguir.

Muva of Earth

No sexto andar do clube CD tocou para encerramento de um dos dias do festival a harpista Muva of Earth, mais um dos rcentes produtos ingleses. Cantora, harpista, com jazz para bares de praia lista Sun Ra, Alice Coltrane, Sade, Björk e Fela Kuti como as suas principais influências, o que até pode ser verdade; mas na verdade só ouvimos uma referência muito direta (no limite do plágio): Alice Coltrane.

Muva Of Earth

A sua voz e forma de cantar estão claramente referenciadas no estilo aveludado de Sade. Diz-se influenciada pelo jazz espiritual e meditativo. Acreditamos. Mas não se ouve a não ser no uso direto dos elementos emblemáticos do som de Alice Coltrane, com canções de Sade por cima. A música soa sempre parecida, uma batida lenta e dançável, eletrónica retro e uma frase repetida vezes sem conta.

Muva Of Earth

As frases cantadas eram “inspiracionais” (tipo posts para o Instagram; ex: “Free Soul”. “Love Will Be Returned”, etc.), linhas de baixo poderosíssimas (e muito boas), repetidas indefinidamente.

Muva Of Earth

A harpa tocada por Muva of Earth é apenas um elemento decorativo que é dedilhado para cima e baixo em movimentos cíclicos. Também o carrilhão (chimes), obcessivamente em ação pelo teclista, evoca o som de Alice. Mesmo os teclados, quando usam o registo do piano, estão muito próximo da linguagem de MacCoy Tyner. Na música de Muva Of Earth, o que não é Alice Coltrane é a sua voz e as letras da sua música. Ainda não me habituei a ouvir citar tocada no sintetizador.

Luka Matić “Prenoma”

Luka Matić, músico local e que toca no ensemble de percuções de Donen, foi convidado para uma residência e trabalhou o assunto da unidade na música: quais são as condições que estruturam e dão coesão a uma série de acontecimentos diferentes e que fazem como que um grupo de pessoas e instrumentos diferentes funcionem como um só? No âmbito do programa “Jovens investigadores” o baterista juntou um sexteto (trompete, voz, guitarra elétrica, piano e, claro, a sua bateria) para uma investigação na prática.

As pautas de Matić definem uma música esmerada, muito focada na repetição. A guitarra usa sequências de notas geométricas e processos repetitivos. A voz canta notas soltas e curtas usando uma linguagem muito próxima da instrumental. A bateria tem um grande som e ajuda na criação da ideia de uma música cíclica, assente em ciclos. O trompete acentua a voz. Depois libertam-se pontualmente em solos. É evidente que Luka Matić está à procura de coisas novas e que este projeto é um caminho em construção que ainda não chegou a um destino inovador. Mas é reconfortante perceber que esta geração de novos músicos de jazz não se satisfaz com interpretações de standards.

Agenda

04 Outubro

Carlos Azevedo Quarteto

Teatro Municipal de Vila Real - Vila Real

04 Outubro

Luís Vicente, John Dikeman, William Parker e Hamid Drake

Centro Cultural de Belém - Lisboa

04 Outubro

Orquestra Angrajazz com Jeffery Davis

Centro Cultural e de Congressos - Angra do Heroísmo

04 Outubro

Renee Rosnes Quintet

Centro Cultural e de Congressos - Angra do Heroísmo

05 Outubro

Peter Gabriel Duo

Chalé João Lúcio - Olhão

05 Outubro

Desidério Lázaro Trio

SMUP - Parede

05 Outubro

Themandus

Cine-Teatro de Estarreja - Estarreja

06 Outubro

Thomas Rohrer, Sainkho Namtchylak e Andreas Trobollowitsch

Associação de Moradores da Bouça - Porto

06 Outubro

Lucifer Pool Party

SMUP - Parede

06 Outubro

Marta Rodrigues Quinteto

Casa Cheia - Lisboa

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