Julho é de Jazz (parte 1)
Momentos contrastantes
Para a nona edição do Julho é de Jazz, o seu ciclo anual dedicado ao jazz, o espaço bracarense gnration apresentou quatro concertos: Marc Ribot’s Ceramic Dog (dia 6), André Carvalho “Lost In Translation” (dia 7), João Lencastre “Free Celebration” (dia 13) e Kaja Draksler & Susana Santos Silva (dia 14). Fomos assistir aos dois concertos da primeira semana.
O ciclo arrancou na Blackbox, com a atuação do trio Ceramic Dog liderado pelo guitarrista Marc Ribot. Em vias de editar um novo álbum, chamado “Connection”, o trio levou a Braga a música nova. A música arrancou, surpreendentemente, com duas baterias; além de Ches Smith, o baterista do grupo, também Shahzad Ismaily começou por colaborar no trabalho rítmico, trepidante, ao qual se juntou a guitarra endiabrada de Ribot. Ismaily passou depois a maior parte do concerto no baixo, contribuindo para a propulsão e o groove. Nesse tema inaugural, o trio deixou todas as cartas na mesa, revelando um rock de alta intensidade, onde a guitarra vertiginosa de Ribot e a bateria explosiva se unem com o baixo de Ismaily, numa fusão sónica imaculada; esse início, instrumental, serviu de introdução para uma música que já reconhecemos, “Connection”, o primeiro single do tal novo álbum por vir. E Ribot não se dedica só aos riffs da guitarra, também canta; não sendo um vocalista brilhante, cumpre bem o papel (sempre com a coolness habitual, sempre sentado e de blazer imaculado). O trio foi desfilando temas novos, apresentando em Braga material inédito do novo disco, quase sempre com a energia no vermelho – uma das canções que se destacou foi “Ecstacy”, tema forte. Foram poucos os momentos em que o grupo abrandou; um desses momentos aconteceu quando se partiu uma corda de Ribot, problema rapidamente resolvido pelo próprio, que trocou a corda em palco.
Ninguém deixou créditos por mãos alheias: Ribot confirmou o extraordinário guitarrista que é, não apenas na vertente roqueira (e por vezes até a lembrar a raiva elétrica de Tom Morello dos R.A.T.M.), também em momentos de bucólica beleza pastoral, num dedilhar irrepreensível. Sem surpresa, Ches Smith foi um animal no ritmo, sempre fulgurante. O joker terá sido Shazad Ismaily; num artigo recentemente publicado no New York Times, chamam Ismaily de “músico favorito dos músicos”; em Braga, o versátil multi-instrumentista confirmou os seus predicados: esteve a maior parte do tempo no baixo, mas também tratou da percussão e, pontualmente atacou ainda o sintetizador, sempre atento e integrado, fundamental a fazer fluir o som do grupo. Para fechar o set, o trio atacou o segundo single já divulgado, “Soldiers in the Army of Love” – outro tema que agarra rapidamente o ouvinte. O trio regressaria para o encore, com dois momentos contrastantes: primeiro, Ribot a solo a declamar um poema de Allen Ginsberg (“Sometime Jailhouse Blues”) enquanto dedilhava uma paisagem suave nas cordas da guitarra; e, para fechar de vez a atuação, com a energia em cima, atacou um rock aceso, a lembrar os nossos Dead Combo (com quem Ribot chegou a atuar). No final, alguns dos presentes tiveram a oportunidade de levar para casa a edição em vinil do novo disco, que ainda não foi oficialmente editado. No dia seguinte o grupo atuaria em Lisboa, na Culturgest.
Seguiu-se, no dia 7, a atuação do projeto “Lost In Translation”, empreitada do contrabaixista André Carvalho. Inicialmente previsto para ter lugar no pátio, o concerto foi alterado para a Blackbox, pela previsão meteorológica (ao contrário do primeiro dia, para este concerto havia lugares sentados). Carvalho arrancou a atuação em auto-sabotagem, colocando uma folha de papel amachucada entre as cordas do contrabaixo, tornado o som mais rugoso quando as cordas eram pressionadas pelo arco. Após essa introdução, o trio – José Soares no saxofone alto, André Matos na guitarra elétrica e André Carvalho no contrabaixo – rapidamente passou para o som mais convencional de cada instrumento. O grupo estreou-se em 2021, com a edição do disco inaugural homónimo (que contou com a participação do trompetista João Almeida em alguns temas) e seguiu-se já este ano a sua continuação, com um novo álbum simplesmente designado “Vol. II” (Clean Feed). Em ambos os discos, o contrabaixista propôs-se a criar música original para palavras intraduzíveis, palavras que não têm tradução direta, palavras que referem situações muito específicas e só existem em determinadas culturas.
No gnration, o trio tratou de interpretar temas dos seus dois discos, que foram surgindo misturados: a setlist juntou “Mencolek”, “Gurfa”, “Mangata”, “Utwaaien”, “Gokotta” e “Alcheringa”. O grupo Carvalho/Matos/Soares trabalhou uma exploração contemplativa, sem pressas, que partia das composições de Carvalho e ia evoluindo pelas contribuições de cada elemento. Carvalho, Soares e Matos foram desenvolvendo intervenções delicadas, iam apontando novas direções, numa exploração aberta, sem perder o foco. Para este projeto, Carvalho partiu de uma premissa curiosa e conta com dois parceiros de luxo: o guitarrista André Matos (cuja produção discográfica é até difícil de seguir, de tão profícua) e o saxofonista José Soares (dos mais versáteis saxofonistas lusos, envolvido em múltiplos projetos – destaque para Perselí ou o novo grupo Vereda de André Santos). Em palco, três instrumentistas superlativos trabalharam uma música profundamente original. Nas duas primeiras noites do seu ciclo jazz, o gnration acolheu duas propostas (bem diferentes) de música criativa que vive e cresce no momento.
O ciclo Julho é de Jazz continua nos próximos dias 13 e 14, com concertos do grupo “Free Celebration” de João Lencastre e da dupla Kaja Draksler (piano) & Susana Santos Silva (trompete).
A jazz.pt viajou a convite do gnration.