Bogotá, Pangloss, Amadora, Jazz
A inauguração da 11.ª edição do Amadora Jazz fez-se nos Recreios, centro cultural. Do outro lado da rua, a cervejaria Bogotá que, desde 1943, serve ao balcão pregos tão bem feitos como o jazz que tocou no vizinho da frente.Duas instituições culturais que melhoram a vida dos amadorenses e de quem visita o município. Saímos a acreditar que isto tende para melhor.
O festival abriu num dia de semana com o trio de Ricardo Toscano que está em todos os palcos. E ainda bem. A música dos três continua a evoluir dentro das composições criadas pelo líder e a mudar. Prova que, o que os músicos mais precisam é tocar, para que o acaso possa fazer o seu trabalho. O auditório dos Recreios da Amadora não lotou por pouco.
A bateria de João Pereira está a ficar cada vez mais interessante e a levar a música para terrenos mais detalhados e mentais. Entramos numa dimensão diferente em que o detalhe e a expressividade sobressaem. Este concerto foi mais lento e pensativo do que estamos habituados a ouvir do grupo (muito diferente do concerto de apresentação do disco no Hot Clube, por exemplo). Os três instrumentos estiveram em primeiro plano, alinhados. Não houve fundo nem frente, mas sim um trieto.
Ricardo Toscano mostrou conseguir viver bem neste mundo: mais expressivo, emocional, sem nunca exagerar. Pareceu mais o Paul Desmond de “Glad to Be Unhappy”, com espaço entre as notas, usado de forma muito eficaz pelos três. Este arrefecimento parece ter sido introduzido por Pereira e integrado pelo grupo; estará a música de “Chasing Contradictions” a ficar “cool”? Ouvimos vários temas do disco: para além da que o intitula, tocaram “Súplica – Vagas Paixões” (um fado hibridizado pelo caráter rapsódico do tema e pelo jazz), “Totem” (que valoriza o contraste entre a imobilidade e o movimento, com uma melodia ondulante no saxofone e um tema de baixo afirmativo, onde houve um pequeno desacerto resolvido por Tritão), e “Played Twice”; acabámos num tom mais trepidante, com “Thelonious” de Monk (um tema pouco tocado que abre o álbum “Underground”) que Toscano tentou puxar para “Salt Peanuts”.
O segundo dia estava agendado para começar com um solo: o auditório foi pequeno para todos os que queriam ir ouvir John Scofield, o histórico guitarrista americano. É um privilégio poder estar na presença de um mestre, que passou 50 anos a tocar guitarra com os melhores, e que traz com ele toda a ciência feita com esta difícil equação: tempo+palco.
O concerto começou com dificuldades entre o som dos amplificadores, o domínio dos pedais e dos loopers e o fraseado. Scofield parecia perro. Mas passados os primeiros 3 temas, o guitarrista reganhou o domínio dos elementos e os dedos começaram a fluir. Ouvimos o controle absoluto do ataque usando a proximidade aos pickups, no braço, palheta, dedos, tudo incrível. Uma forma muito bonita de flutuar no tempo, dificilmente marcando uma cadência, abrindo as interpretações e fazendo-nos seguir as melodias com uma forma muito própria de as cantar.
Foi tocando: da pop dos Beatles (“Julia”, álbum branco), ao songbook de Tin Pan Alley (Burt Bacharat, Leonard Bernstein, “There Will Never Be Another You” escrita por Harry Warren para o filme “Iceland” (1942) e que foi tocada por Ella Fitzgerald, Chet Baker, Tal Farlow, Sonny Rollins e tantos outros) ou do jazz (Miles Davis, “Blue In Green” do álbum “Kind Of Blue”). Quando chegou à country (Charlie Rich com “Behind Closed Doors”) - “a música favorita de toda a gente, mesmo daqueles que ainda não o sabem” – estava perfeito. O problema é que o concerto já se tinha alongado demais: aquele início emperrado acabou por obrigar a prolongamento, para além dos 40/50 minutos regulamentares para um concerto deste tipo. Dois encores foram claramente exagerados: “Not Fade Away” de Buddy Holly (a melhor música do novo disco, em minha opinião) e “For All We Know (We Might Never Meet Again)”, (mais uma canção dos anos 30, popularizada por Billie Holiday, Nina Simone, Aretha Franklin, Nat King Cole, e tantos outros). Foi por isso um concerto demasiado longo com uma primeira parte difícil e que acabou por fazer atrasar o seguinte.
Desde a entrada em palco, já perto da meia-noite, o contrabaixista americano avisou ao que vinha: “blow your minds”; e não foi um falso alarme. O trio começou forte com linhas de baixo atléticas. O baixo ocupou quase todo o espaço musical, com a bateria muito quadrada, a marcar o tempo com firmeza e regularidade. Não veio Chad Taylor (o baterista do último disco) e em sua substituição viajou Warren "Trae" Crudup (parceiro de Stewart nos Black's Myths). Um baterista muito mais centrado na marcação do tempo e numa forma de tocar menos criativa, com um grande investimento na pontualidade da tarola.
Neste cenário de baixo e bateria fica muito pouco espaço para o saxofone e também para que acontecessem coisas surpreendentes: é como se juntássemos gemas de ovos e açúcar: dificilmente não será para um doce. O saxofonista Brian Settles dobrou o contrabaixo mas, na maior parte dos casos, entrou em linhas longas, quase contínuos, numa reposta inteligente àquela fórmula muito rítmica.
Luke Stewart é um músico hiperativo (não só no Silt Trio mas também como dinamizador da cena de Washington - baixista, saxofonista, produtor, locutor e agitador) e é esplêndido vê-lo a tocar, como se o contrabaixo fizesse parte do seu corpo e fosse um instrumento pequeno e portátil. Um som cheio, uma técnica gestualista com movimentos repetitivos.
A fórmula é boa, bonita e dançável. Música atual para um mundo em que as pistas de dança estavam cheias de pessoas que pedem mais do que apenas música previsível e idêntica.
No dia seguinte o Jazz da Amadora foi para outro espaço, o Auditório de Alfornelos (Teatro Passagem de Nível) para fazer ouvir o trio de Eugénia Contente. A plateia esteve (como foi hábito), quase esgotada, com público entusiasmado que vibrou com o concerto.
O formato criado pela guitarrista é uma espécie de Red Hot Chilli Peppers meets jazz. Funk e rock com assinaturas rítmicas complexas, mudanças de 90º, tudo muito rápido e uns riffs de guitarra muito bons. Foi bonito ver uma guitarrista tão nova, a tocar com imensa alegria, uma música tão bem ensaiada. Muito segura, com a mão direita germânica, sem falhas, e uma mão esquerda também precisa. Um legato elegante.
O jazz de Eugénia Contente está muito espartilhado, e com muito pouco espaço para respirar e para que aconteçam coisas surpreendentes (o encore mostrou as fragilidades de um grupo que ainda não consegue ver a improvisação para além das escalas). Os riffs escritos por Contente mostram que conhece a Biblia do rock e que sabe escrever música tecnicamente muito bem apetrechada, descomplexada e luminosa.
Não sabemos qual será o caminho que a guitarrista percorrerá. Resta-nos desejar que o médico de família lhe prescreva Zappa, Derek Bailey, Henry Kaiser, Eugene Chadbourne, Sonny Sharrock, Elliott Sharp, Fred Frith, Loren Mazzacane Connors, Gary Lucas, Julien Desprez, enfim, guitarristas que abram fronteiras, para que toda esta técnica, energia, alegria e vontade possam concretizar-se num futuro de inovação.
Gabrile Silva e Luís Delgado são a dupla perfeita para acompanhar este projeto, com a tarola sempre ligada e metronómica, e o baixo extremamente técnico. Dão a Eugénia a base que lhe permite faiscar.
À noite regressámos aos "Recreios" para um dos concertos mais aguardados do ano: Carlos Bica e Maria João. O anúncio apanhou-nos de surpresa, como se a Ucrânia tivesse feito as pazes com a Rússia e ninguém tivesse avisado.
É o reencontro de dois velhos amigos, companheiros de palco, amantes, uma recomposição afetiva. Um projeto que tem tudo para ser um sucesso comercial, sem empobrecer a música de ambos.
O quarteto, sem bateria, foi recebido com mais uma sala esgotada e começou com temas longos, feitos de bocados de canções pop; não como um “medley” mas sim como uma canção-manta-de-retalhos, construída com bocados de canções que se interpenetram, completam e fazem uma nova.
Reconhecemos temas como “Scarborough Fair” (Simon & Garfunkel), “Woodstock” (Crosby, Stills, Nash & Young), “Norwegian Wood”/Black Bird/Norwegian Wood” (Beatles), “(They Long To Be) Close To You” (Carpenters), “When the World Ends” (Dave Matthews Band), “Oh, My Love” (John Lennon), “Black Crow” (Joni Mitchell).
Maria João continua a ter um domínio total da voz e uma expressão única e particular. Admiramos o modo como tem procurado reinventar-se e, em particular, neste projeto que tenta ir um pouco mais longe do que as canções “redondas” do mundo “Ogre” (de quem tocaram uma versão de “Acute Angles”). Foi Carlos Bica quem transportou a música para um grau de abstração e qualidade diferentes, fazendo com que melodias fáceis possam soar interessantes e novas. Mas foi também Mário Delgado que, não sendo o guitarrista principal deste projeto, mostrou ser absolutamente fundamental para a qualidade deste concerto: menos figurativo do que é habitual, fez um uso perfeito dos pedais, ajudou a elevar aquela música para um grau diferente. Fez esquecer o Scofield da véspera: técnica, bom gosto, uso excelente dos efeitos, um equilíbrio notável entre o que é tocado e o que é instalado na cabeça do ouvinte sem o ser. João Farinha também contribuiu, especialmente quando usou a eletrónica para fins mais texturais.
No encore fizeram um verdadeiro acto de coragem: uma versão de “What A Wonderfull World”, a canção de Bob Thiele e George Weiss que foi gravada e popularizada por Louis Armstrong em 1967 e que declararíamos como “fechada”. Mas a verdade é que o grupo conseguiu dar-lhe um ângulo novo. O que poderia ter sido um haraquiri musical foi, na verdade, uma bela “saídeira”.
Aguarda-se o disco que sairá pelo selo da casa, a JACC Records.
O último dia foi de fecho e de emoção. Fomos até ao Cineteatro D. João V ouvir a orquestra Gerajazz, dirigida por Eduardo Lala. Escusado será dizer que este concerto, ainda antes de começar, já é belo, porque este projeto é uma ideia excelente, excelentemente concretizada.
Surgida em 2007 e que tem vindo a desenvolver atividade em escolas de Lisboa e Coimbra. Orgulhamo-nos do privilégio de poder viver num país que tem projetos como este que elevam e acendem vidas por dentro.
A orquestra começou com uma versão de “Chicken”, numa entrada bem-sucedida, com a orquestra cheia de “punch” e agilidade. Os miúdos não falharam e os solos, ainda propedêuticos, mostraram jovens-projetos-musicais-livres.
À orquestra juntou-se no segundo tema (“Stolen Moments”) o trompete de Gileno Santana, que generosamente quis apoiar. Também a cantora Catarina dos Santos veio ajudar num “Easy To Love” de Cole Porter. E ficou.
O momento mais emocionante foi quando a orquestra convidou dois jovens do polo de Queijas da Gerajazz para subirem a palco: com a coragem de Macnamara, enfrentaram as escadas que dão acesso àquele grande tablado e, pela primeira vez, sentiram o que é estar em palco. Catarina dos Santos chamou a jovem cantora para um dueto e esta não falhou num “You Are My Sunchine” comovente.
Saímos a acreditar em Portugal e, como Pangloss, que isto tende para melhor.