Portalegre Jazz Fest
Um festival “tornadiço”
No Alentejo diz-se “tornadiço” um sobreiro pequeno que “arriba”, depois de não ter dado sinais que ia vingar. O Portalegre Jazz Fest é tornadiço, vingando ano após ano num terroir complicado. Depois dos anos iniciais, o festival vive hoje a maioridade das 18 edições, fazendo muita gente conhecer a magnífica estrada nacional 119, uma das que conduz até à cidade, para uns dias de descanso e música. Este ano arribou. Fez bem. Soube bem. A jazz.pt foi ouvir.
O Fest de 2023 abriu com um solo de piano no cenário colorido do museu das Tapeçarias de Portalegre. A instituição alberga uma coleção inspiradora e a música escura da Margaux Oswald – que vai às profundezas do piano desencantar um Bill Evans escondido nos graves – rescendeu naquele cenário. Foi um prazer conhecer uma pianista tão amável e acessível depois de a imaginarmos – só através da audição – inatingível e gelada.
À noite, fomos até à Câmara Municipal onde se esconde a arquitetura de uma igreja dessacralizada, restaurada com enorme beleza. Não é por acaso que a música da época das catedrais soa como soa. É porque o espaço reverbativo é enorme. Assim este local era o mais inóspito para um trio que toca coeso e intenso – com bateria. Mas a vida tem coisas difíceis e o Ricardo Toscano, Romeu Tristão e João Pereira vivem bem com isso. A improvisação tem um tempo e um local e por isso a música do trio mudou para poder tocar com aquela arquitetura.
À mesma hora do concerto anunciava-se na 5.ª edição dos PLAY - Prémios da Música Portuguesa que o saxofonista saiu vencedor do “melhor album de jazz”. Um bom presente à cidade e àqueles que o foram ouvir, saber que a qualidade daquela música goza de tão ampla recetividade e reconhecimento.
O trio de Ricardo Toscano trocou o palco grande do Coliseu dos Recreios pelo mais pequeno da Câmara Municipal de Portalegre, onde o ouvimos numa versão diferente.
Impôs-se a casa ao jazz, e a música do improviso adaptou-se. Foram muito bonitas as versões dos temas do disco premiado que tocaram e alguns standards (Monk e Strayhorn), com mais espaço, mais ar. Os solos de bateria de João Pereira foram excelentes, feitos com poucos elementos, mas muito saber e ouvido. Percebemos aqui claramente que o jovem músico tem um ouvido apuradíssimo e uma enorme inteligência musical. Esteve sempre a ouvir e a responder ao que ouvia, com criatividade e encontrando soluções onde não parecia haver. Ao contrário do que se poderia esperar, que a bateria fosse um Tympanun non grata naquela edifício, foi antes uma presença belíssima. Toscano pode também ser mais detalhado e explorar mais a expressividade do som do saxofone. Romeu Tristão garantiu o swing com um contrabaixo ágil com um som que parecia perfeito para aquela sala (a igreja tem hoje umas gigantescas portas de madeira).
No dia seguinte, sexta-feira, estavam igualmente previstos dois concertos. O primeiro no palco principal do Centro de Artes e Espetáculos de Portalegre e o segundo no café concerto do mesmo edifício.
Começámos no grande auditório com o Paal Nilssen-Love Circus e a plateia muito bem composta. O baterista norueguês é dos melhores da atualidade no seu instrumento. No kit de percussões deste Circus, a bateria é só um pormenor. A companhia de Nilssen-Love é um septeto com dois metais – trompete e saxofone – baixo elétrico, guitarra elétrica, voz e acordeão. Uma formação heterogénea onde alguns músicos pareciam estar mais à vontade na improvisação do que outros e onde se misturavam músicas.
O processo é circense: as improvisações vão sendo agrupados num contínuo lógico através de “números” (partes escritas) que criam momentos de união. Cada número é diferente, é um acontecimento, mas que montado num contínuo constrói o espetáculo. Como no circo, entre cada número há mudanças de apetrechos, que são as improvisações: largam o tema que está a ser tocado e constroiem um caminho até ao próximo.
A noção de tempo entre as partes é fundamental (nem as improvisações são demasiado longas – o que partiria o contínuo – nem os temas (as partes ensaiadas) podem ser demasiado extensos. Estes foram, em grande parte, tocados pelos metais que pareciam quase uma secção clássica da soul music. A bateria e o baixo também eram, por vezes, os elementos de união. O saxofone alto de Signe Emmeluth e a voz de Juliana Venter encantaram pela forma e atitude em palco.
A cantora/performer nascida na Africa do Sul, a viver na noruega desde 2016, usa a voz de uma forma muito particular, do canto ao grito e uma expressividade global que passa também pelo corpo e pela dança. Não é por isso a “cantora de jazz” tradicional mas sim uma atriz/vocalista que aviva a energia em palco e compõe jogos entre os instrumentos.
Ouvimos uma peça de jazz muito interessante, alegre, feita de um jogo de partes que nos encantam. Apareceram e dissiparam-se com elegância e brilho. O trompete de Thomas Johansson foi excelente e a secção rítmica – Christian Meaas Svendsen e Paal Nilssen-Love – espantosa. Os solos de Nilssen-Love continuam a ser das coisas mais fortes e encantadoras que se pode ouvir no jazz atual, com uma enorme largueza rítmica - do samba ao rock e mais além. É bonito ver o modo como trata os ritmos brasileiros, com sabedoria e com vontade de os fazer sair do ramerrame em que os “nossos irmãos” os enterraram.
Subidos fomos ouvir depois os MOVE de Yedo Gibson, Felipe Zenicula e João Valinho. Este trio, já o sabíamos pelo disco, é pulsante.
A escolha do programador foi sábia. Em edições anteriores percebemos que o público do café-concerto tem alguma tendência para falar enquanto os músicos tocam. Pois com os MOVE isso é impossível porque eles são uma bofetada sonora. Assim que Yedo Gibson atacou com o seu saxofone, como se brandisse uma maça com picos, tinha o trio pronto para atacar com ele. Valinho é um baterista muito interessante que, muitas vezes, soube conduzir e marcar as mudanças - o que acontece com uma sincronia impressionante: os tês músicos viram 90 graus ao mesmo tempo e saem disparados. Ver esta música ao vivo é encantador; perceber o modo como o trio se consegue sincronizar intuitivamente no meio de uma música ilusoriamente caótica cria uma relação mágica com o espetador. Ouvimos os MOVE com a mesma sensação de beleza que encontramos na observação segura, de uma tempestade. Este trio é excelente e encontrou uma combinação perfeita entre personalidades musicais, vontades e técnica.
E como tudo tem que acabar, chegámos ao auditório para a última rodada do Jazz Fest. Em palco o octeto de João Lencastre's Communion.
Tal como Toscano no primeiro dia, também o baterista vinha premiado pela RTP/Festa do Jazz como "Músico do Ano" e tal como fez no palco do auditório ao ar livre da Gulbenkian, tocou o disco "Unlimited Dreams" de uma ponta à outra. Lencastre sabe fazer canções e a sua música tem essa particularidade. Não é o jazz clássico, tradicional, mas sim um jazz de grandes canções, interessantes de seguir, num universo sonoro amplo e cheio de cores.
João Lencastre funde diferentes géneros, entre o jazz, o rock, e até mesmo a música pop, criando um discurso original. A ideia de “secção rítmica” é, neste disco, mais forte do que o habitual e o baixo de João Hasselberg é fundamental. Sólido, sempre interessante, paciente, foi o elemento mais marcante. A guitarra de Pedro Branco afirma-se claramente como uma das mais interessantes em Portugal. O músico explora muito bem os efeitos e os riffs mais funky, construindo a ponte entre baixo e bateria e o resto do grupo.
Para fechar nada melhor que o Abacaxi de Julien Desprez. Outro dos grupos que também já ouvimos na Gulbenkian e que muito impressionou. Sou admirador confesso da forma de tocar de Desprez, que junta uma técnica enorme na guitarra, rápida, feita de stacattos - um pouco como Brandon Seabrock e Pedro Branco - com um virtuosismo absoluto nos pedais. São raríssimos no jazz os músicos que vêem no uso dos pedais da guitarra um segundo instrumento musical. Lembramo-nos de Henry Kaiser e Fred Frith.
Desprez junta estes dois mundos, o da guitarra e o dos pedais, como ninguém. É único, original, interessante, criativo, forte. O rock também marcou presença e a manipulação de luzes (que na Gulbenkian resultou muito melhor) com o strob a ligar-se àquele fraseado gaguejante. Jean-François Riffaud no baixo elétrico e Francesco Pastacaldi na bateria fizeram o resto da festa.
Percebem muito bem as ideias musicais do guitarrista, integram-se na perfeição neste ambiente obsessivo, cheio de cortes e inflexões. Não ouve espaço para os falantes. A música tomou conta da sala e arrebatou.
E assim fechou a festa de Portalegre que cada vez mais atrai visitantes de fora, que fazem quilómetros para ir até à cidade. Resta aos portalegrenses descobrirem o cofre que têm à porta de casa, que mistura sabiamente um jazz acessível e convidativo com projetos mais inovadores, num programa curto mas equilibrado. Que continue tornadiço o Jazz Fest.