Pandemónio’s Jazz Fest
Anjos e (pan)demónios
A Plataforma do Pandemónio tem dinamizado uma programação jazz regular na cidade de Braga, entre concertos e jam sessions. Agora, a associação bracarense criou um novo festival, o Pandemónio’s Jazz Fest, que se realizou nos dias 21 e 22 de abril, e nesta primeira edição apresentou concertos de Manuel Beleza, Sofia Machado Quarteto, Pedro Neves Trio e Apophenia. Fomos descobrir este novo festival.
A cidade de Braga foi, durante uma década, uma paragem obrigatória no roteiro dos grandes eventos de jazz. O festival Bragajazz surgiu em 2000 (com o nome “I Mostra BragaJazz”), numa iniciativa da Fundação Cultural Bracara Augusta, tendo prosseguido com financiamento da câmara bracarense. Teve onze edições e a programação, da responsabilidade de José Carlos Santos, cruzava propostas nacionais, europeias e norte-americanas, com atenção à criação contemporânea; entre 2000 e 2010 atuaram por Braga nomes grandes como Henri Texier, Gianluigi Trovesi, Enrico Rava, Marty Ehrlich, Nathalie Lories, Steve Wilson, Carla Cook, Ray Barretto, William Parker, Anouar Brahem, Jamie Baum, Mark Helias, Hemingway e Ray Anderson (“BassDrumBone”), Steve Lehman e Rudresh Mahnathappa (com “Dual Identity”) e The Claudia Quintet. O festival terminou por decisão do município, justificada por motivos financeiros.
Apesar desse lendário festival já não existir, neste 2023 o jazz não está morto na cidade dos arcebispos. O gnration mantém uma programação regular, onde se incluem pontualmente propostas jazzísticas, e promove anualmente o ciclo Julho é de Jazz. Também o espaço Maison 826 de Pedro Remy tem promovido concertos, com regularidade mensal, em parceria com a Associação Cultural Braga Jazz e programação de José Carlos Santos. Em paralelo, as JAM Jazz Nights arrancaram em outubro do ano passado e têm lugar semanalmente, todas as quintas-feiras, no bar Station Blues; e pontualmente promove as Mavy Jazz Nights no café-concerto RUM by Mavy (junto ao gnration). Junta-se ainda a associação Plataforma do Pandemónio, que tem dinamizado uma programação jazz regular entre concertos e jam sessions.
Agora, a associação bracarense criou um novo festival, o Pandemónio’s Jazz Fest, que nesta primeira edição apresentou quatro concertos no Auditório de S. Frutuoso, no fim-de-semana de 21 e 22 de abril. O festival arrancou na sexta-feira, às 19h30, com a atuação do pianista bracarense Manuel Beleza (curiosidade: atuou na primeira edição do festival BragaJazz, no ano 2000). Seguiu-se, às 22h00, o Sofia Machado Quarteto; a cantora natural de Famalicão apresentou-se ao leme do seu grupo, interpretando os temas originais do seu EP de estreia, “Connections”. Não tivemos oportunidade de assistir a estas atuações, mas fomos marcar presença no segundo dia de festival.
Chegados a Braga, já no sábado, percebemos que o Auditório de S. Frutuoso não existe no Google Maps: o auditório é um espaço belíssimo que, apesar das boas condições, não tem programação regular, abriu excecionalmente para este evento. Chegámos ao local e fomos assistir à atuação Pedro Neves Trio (19h30). A sala tinha pouca gente; a divulgação do festival não terá alcançado o eventual público interessado, um aspeto importante que deverá ser melhorado nas próximas edições.
No palco, o trio do pianista apresentou a música do disco “Hindrances” (recentemente editado, e aqui alvo de crítica por António Branco); este é o quarto álbum do pianista, editado com selo Carimbo Porta-Jazz, depois de “Ausente” (2013), “05:21” (2016) e “Murmuration” (2019). Foi essa a base da atuação em Braga, que seguiu exatamente o alinhamento do álbum: “Hindrances”, “Pictures I would like to show you”, “One mile of walking”, “Development of behaviour”, “Experience of clarity” e “Bumpy roads”. Os temas, originais da pena de Neves, são sólidos, bem estruturados e com um forte eixo melódico. O pianista navega sobre os temas com fluidez e segurança; o contrabaixo de Miguel Ângelo e a bateria de José Marrucho acrescentam novas camadas, contribuindo para o crescimento desta música. O contrabaixo de Miguel Ângelo fez-se notar também em alguns momentos a solo. O trio portuense apresentou em Braga uma música madura, um jazz límpido, feito de detalhe e elegância. O público, ainda que pouco numeroso, ficou conquistado.
O “fest” fechou, às 22h00, com a atuação do quarteto Apophenia. Liderado por João Gato, o grupo editou no ano passado o seu disco de estreia “Prötzeler” (edição Robalo, review jazz.pt aqui), que foi distinguido como um dos quatro nomeados para os Prémios Play 2023 na categoria “Melhor disco jazz” (a par dos discos de Mário Laginha, Ricardo Toscano e Hugo Carvalhais). Em palco, o quarteto de João Gato (saxofone alto), Bernardo Tinoco (saxofone tenor), Zé Almeida (contrabaixo) e Samuel Dias (bateria) exibiu a sua música vibrante, combinação inteligente de composição e improvisação. Abriu o concerto com os temas “Complexo” e “Metamorfose” e, além de ter interpretado os seus temas originais, o quarteto atacou ainda composições alheias: “Etude” de Paul Motian e “Melody Fragments” de Peter Evans (que incluiu belo solo de contrabaixo com o arco). Pegando na herança de Ornette, e combinando a estrutura e o estalo “in your face”, os Apophenia tiveram uma atuação intensa, a confirmar que este quarteto já é um dos mais entusiasmantes projetos nacionais ao vivo. Em contraste com o trio anterior, que apresentou uma música cristalina, quase celestial, o quarteto de Lisboa levou a Braga um jazz infernal, diabólico.
Após o concerto, o bar Sé La Vie acolheu jam session, onde pudemos ouvir alguns jovens músicos interessantes. Deixemo-nos de saudosismos. O jazz em Braga está vivo e o trabalho da Plataforma do Pandemónio vem contribuindo para uma cena que se confirma cada vez mais pujante.