Dave Douglas & Joey Baron
Um tambor e um trompete
A primeira vez que Dave Douglas veio a Portugal, foi nos anos 90, tocar com Zorn, no Convento do Beato. Joey Baron tinha vindo uns anos antes, quando foi tocar ao Fórum Picoas nos Naked City. São nossos velhos conhecidos, mas não tem havido muitas oportunidades de os ouvir fora da tutela zorniana. Este concerto tinha por isso esta curiosidade inicial a que se juntava o facto de estarmos a ouvir dois mestres nos seus instrumentos num formato tão difícil. Baron e Douglas começaram a tocar juntos no Masada de John Zorn em 1993, o que contabiliza trinta anos de partilha de palco.
Sentámo-nos na Culturgest sem saber que tínhamos um “jazz heckler” a bordo. Os ingleses usam a designação “heckler” para designar uma pessoa que interrompe um discurso ou espetáculo. Na sala estava um. Demoliu o início do concerto.
Mal os músicos entraram começo a gritar disparates. Baforou parvoíces, comentou a despropósito cada frase de Douglas. Fez-lhe bem ao fígado certamente, mas estragou o início do concerto para todos. Os músicos saíram de palco enquanto a plateia mandava calar o mal-azado e a gestão da Culturgest o tentava serenar. Continuou. O protesto da plateia subiu de tom. Pensou-se que o espetáculo podia não acontecer. A pergunta que ficou é: estamos menos tempo na terra do que um saco plástico do supermercado. Porque estragar a vida dos outros?
Quando finalmente se calou os músicos voltaram, mas Dave Douglas estava estranho, parecia desligado. Provou-se: o “heckler” tinha acabado de estragar o concerto. Se até para nós, público, foi difícil religar, imagino o que terá sido para os músicos.
Douglas é um trompetista excecional, uma figura central do jazz contemporâneo que tem uma capacidade única de detalhar as notas, criando pequenas variações e pormenores no fraseado, no ataque e expressão de cada uma. É um relojoeiro. Mas começou apagado, continuou em esforço, tocando de forma quase inexpressiva nos primeiros 15 minutos. Não foi o Douglas intenso e alegre que conhecemos.
Baron pelo contrário é uma máquina de bom-gosto. Tudo o que fez foi bom. Até conseguiu tocar samba e fazê-lo com originalidade. Também foi excelente não ritmativo. Tem largueza de soluções e um controle absoluto da expressão. Soube tocar baixo, devagar, alto, forte, melódico, com as mãos, com as escovas ou baquetas, sempre no momento e a fazer coisas boas. Foi ele que conseguiu trazer de novo o trompetista para o concerto e com a sua alegria e ideias provocadoras, retirá-lo do buraco para onde inicialmente o empurraram.
O formato é muito difícil, sem uma base harmónica; mas simplificaram-no com uma fórmula resolvente: a bateria cria uma base sobre a qual Douglas improvisa. Quase sempre optou por fazer citações ou mesmo tocar o tema completo (“'Round Midnight”); outras que pareciam colagens ou variações de melodias. O equilíbrio dos dois instrumentos esteve perfeito (nas primeiras filas da sala não seria preciso amplificação).
Não foi uma noite especial nem sequer um muito bom concerto, mas foi um fim de tarde com música muito encantador, com um concerto simpático, com dois amigos de longa data, dois músicos extraordinários, a improvisar uma conversa.