Tremor
Ilha mágica
A 10.ª edição do festival Tremor realizou-se entre 28 de março a 1 de abril na ilha de S. Miguel, Açores. No programa não faltaram projetos com ligações ao jazz, como Angel Bat Dawid, Ill Considered e Inês Malheiro. A jazz.pt foi conhecer este festival único.
O festival Tremor é um dos fenómenos mais amados pelos melómanos nacionais (e não só). A popular hashtag #tremoréamor não surgiu por acaso, quem vai ao festival fica mesmo conquistado e quer sempre regressar. A logística não é simples, implica planear mini-férias, viagens e alojamento na ilha de S. Miguel, mas o retorno (musical e emocional) compensa largamente o investimento. A programação musical do festival açoriano é sempre arriscada, seguindo sobretudo uma linha exploratória, onde não falta rock e eletrónica, mas também formações com ligação ao jazz e à música improvisada. No ano passado, por exemplo, atuaram Rodrigo Amado, Peter Evans e The Rite of Trio.
Este ano, a ligação ao jazz e à improvisação esteve presente nas atuações de Angel Bat Dawid, Ill Considered e Inês Malheiro. Pela primeira vez, a jazz.pt foi acompanhar este festival. Tendo este vosso relator ido acompanhado por uma criança de quatro anos, com personalidade forte e gosto musical particular, o acesso à programação noturna ficou mais limitado, mas foi possível seguir alguma da programação musical diurna, além de partilharmos a descoberta das maravilhas (naturais e gastronómicas) da ilha.
No vasto cartaz, destacam-se os eventos “Tremor na Estufa”, concertos com artistas e localização secreta, sendo o local apenas revelado na manhã do próprio evento e os artistas apenas desvendados no momento da atuação (18h00). Estes concertos acabaram sempre por ter lugar em locais especiais, únicos, que habitualmente não acolhem espetáculos musicais. Tivemos oportunidade de assistir aos três concertos secretos desta edição: Angel Bat Dawid atuou em colaboração com a Banda Fundação Brasileira no Porto de Pescas de Rabo de Peixe (dia 29 de março); no dia 30 os Fado Bicha atuaram no Parque Urbano de Ponta Delgada; e no dia 31 houve concerto de Cobrafuma no belíssimo cenário da Lagoa de São Brás.
A atuação de Bat Dawid com a banda filarmónica acabou por ser representativa do carácter do festival, que privilegia a promoção de parcerias inéditas e o envolvimento com a comunidade local. A nível estritamente musical, esta performance de Angel Bat Dawid em colaboração com a Fundação Brasileira acabou por resultar muito bem, assente em composições muito estruturadas, interpretadas com dinâmica e alta intensidade (guiadas por Bat Dawid e Sophiyah E., nas eletrónicas, voz e outros); e os temas iam crescendo e ganhando novas camadas com a instrumentação alargada da banda açoriana, bem integrada, sob a direção de Dawid. No concerto, ouvimos a mescla original de jazz, clássica e poesia, onde não falta a denúncia do racismo, incluindo uma peça inédita, composta para a ocasião, chamada “Portugal Invented Racism” (Bat Dawid não foge da polémica, como se pode ver por esta entrevista ao Rimas e Batidas). No palco improvisado do Porto de Pescas da localidade mais pobre de Portugal, esta atuação foi marcada pela boa complementaridade das partes, com Bat Dawid a aproveitar a vasta instrumentação para apoiar contrastes e crescendos enérgicos, com picos de alta intensidade free.
Tendo acabado de tirar do forno o ainda quentinho “Requiem for Jazz” (review aqui), Angel Bat Dawid voltou a atuar no festival na noite se sábado (1 de abril), no palco do Coliseu Micaelense. Dessa vez, apresentou-se de forma mais singela: apenas a própria e Sophya E. em palco. Tratou-se de uma atuação mais exploratória, marcada por camadas de eletrónica, voz e pontuais intervenções do clarinete, numa música mais densa. Comparativamente, a experiência musical com a banda açoriana resultou mais rica.
Navegando uma onda claramente jazzística, os Ill Considered (trio de Liran Donin, Idris Rahman e Emre Ramazanoglu) atuaram no Mercado Municipal da Ribeira Grande no dia 31; não tivemos oportunidade de assistir, mas o grupo tocou no dia seguinte em Lisboa, no Musicbox, e a reportagem de Gonçalo Falcão confirmou a sua grande energia. Na sexta-feira estava prevista a atuação da basca Verde Prato no Parque Terra Nostra; chegámos tarde e já não apanhámos a música, mas não deixámos de aproveitar a magnífica piscina natural de água quente e o soberbo parque envolvente.
No sábado, dia 1 de abril, o último dia do festival, os concertos tiveram todos lugar na cidade de Ponta Delgada. Nessa tarde, o espaço das Portas do Mar acolheu o “Mini-Tremor”, com um espetáculo e um workshop dedicados a um público infantil. O projeto Mais Alto! juntou em palco Francisca Cortesão (Minta & The Brook Trout), Afonso Cabral (You Can't Win, Charlie Brown), Inês Sousa, Sérgio Nascimento e João Vaz Silva a interpretar covers de temas populares – sempre temas com mensagem social, com uma breve introdução/contextualização. A atuação conquistou boa parte dos fãs mais pequenos (mas não todos, alguns mais irrequietos preferiram a brincadeira com a música em fundo).
Ao fim da tarde, a Igreja do Colégio (mais um magnífico palco) acolheu a atuação de Inês Malheiro, a solo. Descobrimos esta artista portuguesa com o seu registo inaugural, “Liquify, Spread and Float”, que teve edição pelo Carimbo Porta-Jazz e resultou de uma residência no festival Guimarães Jazz com a associação Porta-Jazz. Na igreja, Inês Malheiro desenvolveu uma exploração eletrónica, criando de música delicada e espectral, em permanente evolução. Uma atuação original que no final passou também pelo piano.
Para fechar o festival, fomos assistir no Teatro Micaelense à atuação de Som.Sim.Zero., projeto que junta elementos da Associação de Surdos da Ilha de S. Miguel, músicos da ilha e alunos da Escola de Música de Rabo de Peixe e da Onda Amarela. O resultado musical foi muito interessante e muito bem conduzido; além da componente social, e de ter passado uma mensagem de igualdade. No público, viam-se rostos emocionados e o enorme aplauso final confirmou que este espetáculo invulgar conquistou todos os presentes.
Além destes concertos, tivemos ainda oportunidade de assistir a excelentes atuações de The Hidden Cameras (ótima atuação indie-pop, que mais de 20 anos após o seu registo inaugural continua fresco) e Fado Bicha (pós-fado-pós-Variações, pop portuguesa com forte travo ativista - tão necessário, nestes tempos onde homofóbicos e fascistas não têm vergonha de sair da toca). Pelo festival passaram ainda Owen Pallett, Pongo, Lucrecia Dalt, Marina Herlop, HHY & The Kampala Unit, ZA! & Perrate, Vaiapraia, Grove e Filipe Furtado, entre outros.
A programação confirmou a sua aposta nas propostas mais criativas e os espetáculos resultaram globalmente muito interessantes. Pudemos confirmar que, tal como a ilha verde, também este festival é mágico.