Kurt Rosenwinkel Quartet
Jazz onde as ruas não têm nome
Espinho continua a receber a visita regular de figuras gradas do jazz. Desta vez foi o guitarrista e compositor norte-americano Kurt Rosenwinkel, acompanhado pelo contrabaixista Doug Weiss, o baterista Jason Brown e por esse superlativo pianista que é Aaron Parks. A jazz.pt esteve lá e conta-lhe tudo.
As primeiras referências à costa de Espinho como destino balnear por excelência remontam à segunda metade do século XIX. A estação de comboios, inaugurada a 8 de julho de 1863, e que hoje é um túnel, logo atraiu as atenções de Ramalho Ortigão (1836-1915), que em “As Farpas” a descreve, quando por lá passou numa viagem entre Lisboa e o Porto, nos seguintes termos:
«Em Espinho os banheiros, vestidos de baeta, saídos do mar escorrendo água, entregam-nos os seus bilhetes de visita, enquanto os banhistas, passeando gravemente na estação, de chapéus de palha e sapatos brancos, com os seus bordões de cana-da-Índia com argolas de prata, abrem o correio de Lisboa e percorrem com zelo os jornais da manhã.»
A assinalar o 50.º aniversário da sua elevação a cidade, Espinho continua a apostar numa programação musical diversificada e interessante, com o jazz a ocupar lugar de destaque, de modo crescente nos últimos anos, com a presença de figuras gradas do género, europeias e norte-americanas. Figuras essas por vezes acompanhadas pela Orquestra de Jazz de Espinho, big band que começou a germinar em finais de 2008, no âmbito curricular da Escola Profissional de Música de Espinho, sob o decisivo impulso e direção musical de Paulo Perfeito (missão hoje partilhada com o também trombonista Daniel Dias).
Foi num esgotado Auditório de Espinho (com lugar para pouco mais de 280 ouvintes), uma das valências da Academia de Música de Espinho – fundada em 1960 e que se tem afirmado pelo seu papel de relevo no ensino da música e na promoção da cultura e das artes – que no dia 25 de março se apresentou o quarteto liderado pelo guitarrista e compositor norte-americano Kurt Rosenwinkel (n. 1970), que se completa com esse notável pianista que é Aaron Parks, o contrabaixista Doug Weiss e o baterista Jason Brown (que substituiu Greg Hutchinson). Justamente reconhecido como um dos mais distintos guitarristas da última trintena de anos, Rosenwinkel continua a alardear uma abordagem imediatamente reconhecível, virtuosa, de grande riqueza harmónica e fluidez melódica.
Depois de álbuns marcantes como “The Next Step” (2001), “Heartcore” (2003) e “Deep Song” (2005), sem esquecer a sua colaboração regular, desde 2008, com a Orquestra Jazz de Matosinhos, vertida, por exemplo, em “Our Secret World”, álbum de 2010, e em celebradas apresentações ao vivo nos dois lados do Atlântico. Nos últimos anos, o músico de Filadélfia, há muito estabelecido em Nova Iorque, voltou a reinventar standards em “Angels Around” (2020), mostrou os seus predicados como pianista em “Piano Solo” e “Plays Piano” – no mais solitário dos contextos – e entabulou uma colaboração com o pianista Jean-Paul Brodbeck intitulada “The Chopin Project”, em 2022, de que a jazz.pt deu conta aqui). No final do ano passado editou na sua Heartcore Records “Berlin Baritone”, álbum com oito peças completamente improvisadas, a solo, em guitarra barítono.
A função espinhense iniciou-se em lume brando com “Cycle Five” e as linhas límpidas do guitarrista, que desde logo, como expectável, assumiu as rédeas dos acontecimentos, acolitado por uma dupla rítmica discreta, mas de inatacável competência, e por um Aaron Parks que em diversas ocasiões roubou a cena com a sua inventividade faiscante, no piano, no Fender Rhodes e no teclado eletrónico (por vezes dois destes instrumentos em simultâneo). Seguiu-se a mais soalheira “Lost Song” (que como o título deixa antever foi recuperada da gaveta), num arranjo adaptado à formação e naturalmente diferente do que escutamos no disco de piano solo, mas onde não faltam as linhas escorreitas do pianista e Rosenwinkel a entregar-se desacompanhado a uma bela melodia. É Parks quem no Fender Rhodes faz deflagrar um funk garrido, em que Rosenwinkel pega e expande, com a bateria de Brown a alimentar a fornalha.
O piano introduziu um dos momentos altos do concerto, “Sole”, outra resgatada de “Piano Solo” e aqui retrabalhada com bons resultados. Tempo então para a sofisticação harmónica de “The Past Intact” e “Another Time” – esta mais ao jeito de canção, como o próprio guitarrista não deixou de sublinhar – peças que mostraram como Rosenwinkel continua a ser homem de muitas notas, e de ornamentar profusamente os motivos melódicos expostos (numa lógica “clássica” de explanação-solos-reexplanação) e que na generalidade das situações as gere sem resvalar para a pirotecnia (o que, convenhamos, acabou por acontecer aqui e ali). Ressoa na memória o dinamismo de “A Shifting Design”, de que avultou nova intervenção valiosa de Aaron Parks. O público gostou do que ouviu, aplaudiu de pé e pediu mais: “Welcome Home”, que começou serena e evoluiu em crescendo, encerrou a noite de modo vibrante.
A bátega de água que se abateu sobre a cidade, logo após o termo do concerto, não drenou as marcas de uma noite em que Kurt Rosenwinkel demonstrou, se necessário fosse, que continua a ser um guitarrista de primeira linha
N. do A.: O título desta reportagem parece uma referência aos U2, mas não é. Na cidade de Espinho, as ruas são identificadas por números e não por nomes. Tal deve-se à implantação da República: a maioria dos nomes das ruas de Espinho estava ainda ligada ao regime derrubado a 5 de outubro de 1910 e isso motivou a mudança. As artérias perpendiculares ao mar têm desde então números ímpares (de forma crescente de norte para sul) e as paralelas ao mar números pares (de forma crescente do mar para nascente). Por esta razão, e não raras vezes, ouvem-se os locais relembrar que «Espinho é como Nova Iorque».