Mário Laginha e António Victorino d’Almeida
Estavam dois pianos à conversa
Estavam dois pianos frente a frente, num palco enorme numa sala enorme. O bilhete dizia “Improvisação a Dois Pianos” e como a improvisação é a matéria prima do jazz, quisemos ir ouvir, conscientes que não era jazz. Mas também não era outra coisa completamente diferente até porque um dos músicos – Mário Laginha – é perito na coisa.
Infelizmente o Coliseu do Porto não encheu, mas a plateia estava suficientemente composta para um aplauso caloroso. Os dois músicos, pianistas de duas gerações e áreas musicais diferentes, propunham uma conversa teclada no piano. A proposta cumpriu-se.
Quando falamos de “improvisação” na música erudita de tradição europeia, referimo-nos à criação espontânea de música pelo intérprete dentro da estrutura de uma composição ou estilo pré-existente. Embora a improvisação seja frequentemente associada ao jazz, é parte integrante da música escrita desde a Idade Média pelo menos (como bem relembra Derek Bailey no seu livro, a primeira música criada pelo homem foi, garantidamente, improvisada).
A improvisação fez parte da música erudita europeia e foi usada pelos compositores para adicionar singularidade e criatividade à pauta (ex: Bach, Händel e Vivaldi por vezes improvisavam no processo de execução das peças ou compunham dando ao intérprete alguma liberdade para ornamentar ou improvisar certas partes; no período romântico Chopin, Liszt e Brahms são outros compositores que recorreram também a este processo). No século XX a indeterminação voltou a desempenhar um papel importante na composição, com Cage, Stockhausen e muitos outros. Assim sendo, se a improvisação é o mundo natural de Laginha, também pertence ao espaço musical do maestro e pianista Victorino d'Almeida,.
Ouvimos por isso duas formas muito diferentes de conceber a improvisação. Para um músico de jazz, a improvisação é uma procura que vive de encontrar um momento interessante, de o explorar e depois de o abandonar – sendo que a capacidade de identificar estes momentos, de os desenvolver, medindo o tempo certo para cada uma destas fases, é o grande segredo que distingue os bons dos maus improvisadores. E neste campo, Laginha é inquestionável. Tem uma enorme capacidade de ouvir com generosidade, um radar afinadíssimo sempre à procura destas pedras preciosas que aparecem não se sabe de onde; e quando as encontra, apura, aperfeiçoa e larga-as com uma sabedoria imensa e um sentido de beleza e tempo.
Já Victorino d´Almeida funciona num registo completamente diferente. Lança fragmentos musicais, por vezes citações ou evocações que soavam a recreações de vaudeville, canções populares do leste europeu, valsas, musicatas militares, farrapos melódicos variados. Foi frequentemente caricatural precisamente com os mesmos processos do desenho: exagera a parte mais identitária e reconhecível, aumenta-a e depois explode-a. E cria outra. Foi isto o seu concerto e podemos elogiar a enorme torrente de ideias atiradas para o piano, neste processo curto e rápido de exposição, caricatura e destruição.
Foi aqui que ouvimos um Mário Laginha excecional, sempre à procura de um espaço no meio deste caso de musicofagia. Se a improvisação tivesse sido só do maestro, o concerto teria sido, provavelmente, entediante; não só pela repetição do mesmo processo – que nos faz saber o fim da história mal ela começa – mas também porque o que era atirado para o teclado do piano não era particularmente interessante.
Mas Laginha esteve sempre à procura das ideias e de como lhe extrair um lado brilhante. Admirável. Já o contrário foi muito menos frequente: raramente Victorino d’Almeida procurou ouvir e trabalhar as ideias de Laginha; foram poucos os momentos - e alguns até desajeitados (quando vê o pianista a tocar dentro do piano e o imita).
O piano de Vitorino d’Almeida soou sempre mais alto e mais metálico que o de Laginha; achámos que seria da amplificação ou equalização. Mas quando os dois pianistas, a meio do concerto, trocaram de bancos, percebemos que a questão não estava nos microfones, mas no modo arrebatado que o maestro uso em palco, incorporando, quase sempre, o papel do pianista enlevado, atacando o piano com intensidade, indo dos dedos aos clusters do antebraço.
Feitas as contas valeu a pena. O som de dois pianos em diálogo é maravilhoso e ver Mário Laginha a fazer tanto com tão pouco gratificou a viagem ao Coliseu do Porto, para uma noite em que também o público presente aplaudiu de pé.