O Carro de Fogo de Sei Miguel, 24 de Fevereiro de 2023

O Carro de Fogo de Sei Miguel

Os carros só nos guiarão quando estiverem a arder

texto: Paulo André Cecílio / fotografia: Rita Sousa Vieira

Com um disco acabado de editar, “Um Um Um E Não Há Forma De Morrer” (Shhpuma), O Carro de Fogo de Sei Miguel apresentou-se ao vivo na Galeria Zé dos Bois. Paulo André Cecílio (Sapo 24, ex-Bodyspace) e Rita Sousa Vieira (fotógrafa) testemunharam esta aparição, numa reportagem marca a estreia da colaboração de ambos com a jazz.pt. 

Em 2005, Dan Warburton escreveu na The Wire que Sei Miguel era «o segredo mais bem guardado da música portuguesa». Desde então, a frase tem sido constantemente referida de cada vez que se fala sobre o músico, não só porque em Portugal só se valorizam os elogios que vêm de fora, mas também porque Sei Miguel, pese embora toda a sua carreira e atividade musical – que levam já quase quatro décadas –, permanece quase como que votado ao esquecimento, mesmo, ou sobretudo, dentro do panorama jazzístico nacional. Os seus primeiros álbuns, com o selo da Ama Romanta, não foram ainda reeditados. A sua presença num Jazz em Agosto nunca foi consumada. Vive naquela linha ténue entre o artista de culto e o artista desconhecido, e talvez aquela frase irritante, como a descreveu Gonçalo Falcão, tenha contribuído para isso.

Em 2006, ao Bodyspace, dizia assim Sei Miguel: «testemunhei vários acréscimos de interesse ao longo dos anos. Vivo sobrevivendo e com muito jogo de cintura». Sobreviver é a palavra certa para um músico cuja atividade começa e pára, como a música em si. Sobreviver é, também, cada vez mais difícil num planeta que faz da auto-destruição um traço de personalidade. E não há forma de morrer. O título deste novo lançamento do Carro de Fogo pode ser muita coisa: uma súplica, um lamento, uma constatação resignada e inevitavelmente pessoal. Mas também pode ser um desafio, e este é um músico que desafia o tempo: «Eu desisti de viver as épocas, ou as épocas desistiram de mim». Desistir e resistir são duas faces de uma mesma moeda. 

   

O Carro de Fogo, «orquestrinha» que segue «uma lógica de banda», regressou à Galeria Zé dos Bois para resistir face à penumbra, trazendo consigo as formas de “Um Um Um E Não Há Forma De Morrer”. Editado em janeiro pela Shhpuma, reúne três peças gravadas ao vivo, em eventos e datas diferentes, sendo que nesta apresentação no Bairro Alto não existiram pausas entre tema um e tema dois e tema três: escutou-se a música, ininterruptamente, durante cerca de 45 minutos. Ao início da atuação, o público passou, num piscar de olhos, de uma animada conversa para um silêncio sepulcral – como se fosse blasfémia – e talvez o seja – sussurrar sequer durante a interpretação. 

Desse quase nada (pois John Cage mostrou que o silêncio real é uma impossibilidade) surge o trompete de bolso, instrumento que simboliza a existência de quem o toca. E não há forma de morrer, tomo cinco: mesmo dentro dessa lógica de banda, é o som produzido por Sei Miguel que mais capta a atenção, independentemente da qualidade dos demais músicos que formam o Carro de Fogo. A saber: Fala Mariam (trombone), Nuno Torres (saxofone), Bruno Silva (guitarra eléctrica), Pedro Lourenço (baixo eléctrico), André Gonçalves (órgão), Raphael Soares (percussão, terras) e Luís Desirat (percussão, pele e metais). É no maestro que centramos os nossos olhos, e não na orquestra ao seu redor. É aquele lamento, azul como Sei Miguel pretende, que se nos infiltra nos poros.

  

Não que não tenham existido outros motivos para entrar no Carro de Fogo, uma «máquina», como Sei Miguel o descreveu. Curiosamente, tal palavra foi traduzida, em inglês, para «Thing», conferindo novos potenciais significados ao grupo. “Coisa”, que é a palavra que mais existe na ponta de uma língua quando se encontra algo impossível de definir, mas que também adquire um tom ligeiramente pejorativo (e Deus nos livre de assim soarmos). “Objecto”, que é o que a música é, o resultado do trabalho de um compositor (mesmo que Sei Miguel não se considere um compositor). “Criatura”, se adoptarmos uma visão mais ou menos mística daquilo que significa a música de Sei Miguel, uma forma com contornos que tanto podem ser estranhos como reconfortantes (na Zé dos Bois, algumas pessoas abandonaram a sala a meio, enquanto outras permaneceram impávidas, no mesmo local, durante toda a duração do concerto). Ou até mesmo “Questão”, mesmo que seja estúpida (uma corda partida motivou uma a Bruno Silva, depois do concerto: se acontecer algo imprevisível durante o mesmo, não passa a existir um elemento improvisacional, palavra que Sei Miguel detesta? A resposta foi “não”).

Falava-se dos outros motivos, contudo: o ritmo sincopado que a dada altura Luís Desirat imprimiu na música, coadjuvado pelo brilho de ambas eletricidades; a forma como Sei Miguel se parecia divertir enquanto rodopiava pelo palco, escutando os músicos que dirige / os seus colegas de banda; o facto de, sendo o Carro de Fogo «uma pequena orquestra de todas as fusões», não existir qualquer partitura, demonstrativo da qualidade de cada elemento e do próprio objeto musical; o ataque à guitarra em que Bruno Silva partiu a supracitada corda; e, mais que tudo, o momento breve de suspensão – um glup!, quase – entre o momento em que a música parou e os aplausos se fizeram escutar. O objeto-disco não parece, por isso, fazer juz à música de “Um Um Um E Não Há Forma De Morrer”; se é resultado de uma sinergia ao vivo, e viva, é preciso testemunhá-la nesse mesmo contexto. Na Zé dos Bois, mesmo um estúpido – traduzindo: quem não percebe nada de jazz, ainda que um certo músico tenha confidenciado, no local, que mesmo os músicos de jazz às vezes não percebem nada de jazz – pôde sair do aquário com a boca aberta num sonoramente imaginado uau, que é certamente o melhor adjetivo que se pode impôr à música do Carro de Fogo. O outro pode ser “do caralho”.

Agenda

29 Setembro

Bruno Pernadas (solo)

SMUP - Parede

29 Setembro

Elisa Rodrigues “Até ao Sol”

Planetário de Marinha - Lisboa

29 Setembro

Jam Session com Fernando Brox

Porta-Jazz - Porto

29 Setembro

Marcos Ariel & Alê Damasceno

Cascais Jazz Club - Cascais

29 Setembro

Mr Monaco

Nisa’s Lounge - Algés

29 Setembro

Orquestra de Jazz de Espinho com Melissa Aldana

Auditório de Espinho - Espinho

29 Setembro

Rui Fernandes Quinteto

Jardim do Mercado - São Luís – Odemira

29 Setembro

The Selva

gnration - Braga

29 Setembro

Mário Barreiros Quarteto

Jardim do Mercado - São Luís – Odemira

30 Setembro

Clara Lacerda “Residencial Porta-Jazz”

Porta-Jazz - Porto

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