13.º Festival Rescaldo
Portugal tem que estar a correr bem
Ao longo de cinco dias, o festival Rescaldo revelou alguma da mais criativa música experimental nacional, em cinco salas de Lisboa. A décima terceira edição afirma-o como um festival indispensável.
Começa o ano e é tempo de Rescaldo. Desde 2007 este festival é – a par do OUT.FEST – um dos melhores palcos para ouvir música experimental e medir a pulsação à criatividade do país. O Rescaldo, agora teenager do alto dos seus 13 anos, saiu de casa e “okupou”, durante cinco dias, cinco espaços culturais da capital, com propostas que revelam uma muito maior diversidade de lugares sonoros. Entre a composição contemporânea e a experimentação autodidata, entre o jazz e a eletrónica, passando por traficâncias e contaminações de todos estes géneros, a décima terceira edição afirma-o como indispensável: há imensa música incrível a ser feita em Portugal, que não serve para vender cerveja nem telemóveis, mas que não pode ficar por ouvir.
Começámos no Bairro Alto, na ZDB, no dia 15 de fevereiro. No palco aquário habitual apareceram na primeira noite três duos, dois deles tendo na voz um elemento importante. O duo de João Carreiro e Mariana Dionísio assenta principalmente na voz de Mariana e num patuá abstrato latinizado. Imaginamos Hildegard Von Bingen em psicotrópicos alucinogénios (o que não é necessariamente uma afirmação absurda) a escrever liturgias abstratas acompanhada pela guitarra de João Carreiro. Cada música faz coisas diferentes. Sentimos foi Mariana Dionísio a liderar e Carreira em apoio e reforço às suas ideias. Mariana Dionísio tem um enorme domínio da voz e das vocalizações e construiu um ideolecto original e muito interessante. Ficámos rendidos. A música do duo apresentou-se frágil, por vezes demasiado tímida e sem cuidado especial com as questões performativas. Muito interessante e a pedir desenvolvimento(s); ficamos curiosos para o futuro desta dupla. (GF)
Seguiu-se o Poly Vuduvum, o também duo feminino de voz e objetos amplificados com bateria. Diana Policarpo (artista pluridisciplinar) e Marta “Vuduvum” Von Calhau traziam uma parafernália de objetos, processadores e captações. O concerto decorreu num tom morno, enquanto as duas iam percorrendo um extenso leque sonoro acusmático. A percussão (principalmente bateria) foi tocada sem preocupações de marcar um ritmo ou dividir o tempo mas sim com um sentido exploratório, gestualista, de exploração. Já Marta Calhau abriu uma série de portas sonoras, com diferentes dimensões e texturas, da voz aos chocalhos, na criação de um ambiente stressado e saturado. A questão performativa foi mais cuidada, sem deixar marcas. (GF)
E se os dois primeiros foram bons concertos, o último da primeira noite foi excecional. Uma surpresa extraordinária: os Bezbog são também um duo, que parte do saxofone e trompete mas que se estende pela manipulação da mesa de mistura, apitos, loopers, tarola, cavaquinho, berimbau de boca, chapa metálica, microfones (na lógica de Stockhausem em “Mikrophonie”), rádio, sampler e eletrónicas. David Machado e Dora Vieira construíram um mundo musical muito próprio, culto, interessante, original, muito bem medido e pensado, que nos arrebatou. Música única, diferente, que usa de uma enorme liberdade e criatividade, mas que está sempre atenta para que os elementos se encaixem com musicalidade. Entre várias fronteiras de género – não é jazz, mas não deixa de ser completamente, não é rock, mas não deixa de ser de alguma maneira, não é ambiental, mas é-o de algum modo, não é industrial, mas também não o ignora, a música feita pelos Bezbog vai da beleza lírica às profundezas escuras de um poço num instante. E, o que é mais fantástico, tira-nos de lá com um golpe de asa. O concerto foi muito semelhante à estruturação e materiais sonoros do LP “Dazhbog” (editado em 2022) e percebemos todo o trabalho, rigor, ensaios e inteligência com que trabalham. Saímos da ZDB com uma admiração por este duo tão jovem e por nos fazerem sentir que Portugal tem que estar a correr bem, porque de outro modo não seria possível haver quem estivesse num caminho tão próprio, original e com tanta qualidade. (GF)
No dia 16, quinta, o Rescaldo mudou-se para o Damas. Situado junto à Voz do Operário, na Graça, o Damas é um dos muitos locais interessantes de Lisboa, onde se janta muito bem e onde o ambiente e as pessoas nos fazem sentir vivos. Por isso a ideia de comer primeiro e ouvir depois, fez sentido. Com três Joanas Sás na cena musical portuguesa, fomos ouvir a “de” tocar com o Tiago Sousa, ao Damas. É no órgão que Tiago Sousa tem feito coisas mais interessantes, usando a forma repetitiva criada por Reich/Riley/Glass, inovando-a através da submersão: num contínuo em que o arpejo nem sempre está na frente, por vezes é só uma impressão ao fundo, sobrepõem-se linhas num denso chão sonoro. Joana de Sá, a jovem guitarrista que veio de Viseu, sabe tudo sobre drones na guitarra elétrica e é também ela capaz de construir constantes (aparentemente) estáticos – mas que se movem. Imaginamo-nos num tempo em que Steve Reich reencontra LaMonte Young para um desenvolvimento comum das ideias. As figuras repetitivas apareceram lentamente, foram-se instalando num processo musical gradual. Estamos no mundo de Reich dos “processos percetíveis” em que vão aparecendo e desaparecendo. Padrões no meio de uma enorme massa sonora constante, que Joana de Sá adensa magnificamente. Concerto muito bom que eventualmente se estendeu em demasia. A estreia desta colaboração entre os dois músicos mostrou, aos nossos ouvidos, ter caminhos a percorrer. (GF)
O concerto do duo que estava programado para as 23h00, mas que começou tarde e se prolongou mais do que devia para uma quinta-feira, gerou o surgimento ainda mais noctívago de uma grande mesa artilhada com computadores e cablagem vária. O Not Binary Code é um “coletivo” (como agora se designa) que sabe de música eletrónica feita com inteligência e bom gosto. Eles sabem. O concerto, inicialmente planeado para ser feito a três teclados, acabou por ser feito separadamente, com cada um dos músicos a fazer 40 minutos de descarga rítmica e visual. Tendo começado já perto da uma da manhã, só conseguimos acompanhar o primeiro, maravilhados pelos processos rítmicos estimulantes, que não se limitavam à repetição (muito pelo contrário), e ao “live coding” da música, que nos dava um ambiente visual matrixiano. Naquele local, àquela hora, depois do primeiro concerto estático, aquela música era exata e o mundo encaixou-se como uma peça do IKEA. Música “estranha” e ao mesmo tempo tão fácil e regular, feita a partir de códigos escritos no momento, copy/pasteados, que geram disfrasias rítmicas que estimulam uma dança irregular. Tivemos pena de não assistir ao resto do showcase do grupo cuja música é movida por preocupações com questões de identidade, diversidade, segurança e transparência e questiona as ideias de propriedade, patentização e monetização. Ouvimos Ndr0n (projeto audiovisual de Afonso Proença de síntese modular e o live coding). Ficou por ouvir, com pena, Quendera (ambient algorítmico pontuado por caos percussivo herdado de uma educação na comunidade punk lisboeta) e Violeta (brasileira radicada em Lisboa envolvida na confluência da arte multimédia, música e computorização). Há que apanhá-los noutros espaços. (GF)
Na sexta-feira (17) os concertos começavam bem mais cedo, no Teatro do Bairro Alto (antigo espaço da Cornucópia, no Príncipe Real) para ouvir Cândido Lima. Que belíssima ideia esta de trazer o octagenário compositor a um público mais novo. O facto é que a aposta resultou e todas as cadeiras ocupadas. A plateia do TBA deixou de fora muitos dos que ainda não se habituaram a esta nova Lisboa em que os concertos esgotam. Cândido Lima é uma das referências da sua geração (com Constança Capdeville (1937-1992), Filipe Pires (1934-2015), Jorge Peixinho (1940-1995), entre outros), sobejamente reconhecido e admirado no meio musical interessado pela música contemporânea, mas ainda obscuro para um público mais alargado, mesmo os interessados em música (aliás como toda a música do nosso tempo, pela primeira vez na história da humanidade, uma só peça musical do século XVIII é seguramente mais ouvida por ano em Portugal do que toda a música escrita no século XX e XXI). Cândido Lima estudou com Xenakis e conheceu Boulez e Ligeti na sua passagem pela Sorbonne. Foi pioneiro na introdução da “banda magnética” (mantemos este nome pelo seu pitoresco, apesar de hoje serem gravações digitais) na música contemporânea portuguesa e a eletroacústica, espacialização do som e ligação às artes visuais e á imagem em movimento. Numa rara aparição em Lisboa, trouxe quatro peças para piano, “banda magnética” e projeção vídeo, a maior parte das quais recentes. Estas “fantasias” ao piano, o seu instrumento, que sempre movimentou consigo e quis movimentar (até quando, no serviço militar, pede ajuda à fundação Gulbenkian para o deslocar para a Guiné; os diretores foram sensíveis ao pedido mas tiveram de recusar a “tropicalização” do instrumento) construíram um concerto sonhador, que deixou a plateia encantada num forte e longo aplauso no final. (GF)
Seguiu-se um outro concerto, também no TBA, a estreia de um quarteto que juntou André Gonçalves (sintetizadores modulares), Violeta Azevedo (flauta, eletrónica), Maria da Rocha (violino, eletrónica) e César Burago (percussão) – concerto ao qual já não conseguimos assistir.
No sábado, dia 18, o palco mudou para o MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia e a música arrancou mais cedo. Às 14h30 realizou-se uma oficina/workshop, sobre música concreta, que teve como público-alvo crianças dos 6 aos 12 anos. Mais tarde, às 17h00, o antigo edifício do Museu da Eletricidade, agora integrado no MAAT, foi o palco da atuação do Drumming – Grupo de Percussão, que interpretou peças do compositor Vasco Mendonça. Esta apresentação assinalou o lançamento do disco “Play Off”, edição da Holuzam. A atuação dividiu-se em duas partes, com uma primeira parte a solo e segunda parte em quinteto. No solo, o performer serviu-se de diversas percussões, criando diferentes ambientes, numa atuação sempre marcada pela precisão da interpretação. Na segunda parte, já em quinteto, os músicos (Miquel Bernat, André Dias, Pedro Góis, João Miguel Braga Simões, Saulo Giovannini) exploraram peças que promoviam o envolvimento coletivo. Servindo-se de diversas percussões (marimbas, vibrafones, glockenspiel, bateria, percussões, gongos, tam-tam), os cinco músicos do Drumming foram explorando os diferentes contrastes, sempre com enorme fluidez na interação coletiva. Esta proposta de composição contemporânea para percussão resultou muito interessante, tendo sido interpretada de forma soberba. (NC)
Às 18h00, foi a vez do edifício principal do MAAT (Sala Oval), acolher um concerto completamente distinto. Atuou Menino da Mãe, projeto de Bernardo Bertrand que assina os temas, músicas e letras. Além de dar a voz, trabalha em simultâneo no laptop e na eletrónica. A acompanhar Betrand estava um coro com duas vozes (Alex Vidal e Ness), Raphael Soares (na bateria), Ricardo Martins (na percussão) e Violeta Azevedo (na flauta processada, a repetir a presença no festival, depois de ter atuado na noite anterior no TBA em quarteto). Numa atuação muito perfomática, Bertrand combina uma base de canção clássica (com letra e melodia bem estruturadas) com uma profunda experimentação em forma de amálgama eletrónica. Destacava-se particularmente o contributo da bateria de Soares, cuja propulsão levava os temas a crescer. Na mistura, a flauta e a percussão estavam mais escondidos e por vezes ficavam completamente abafados. O sexteto apresentou temas originais e ainda uma canção histórica dos Pop DellArte, “Querelle”. Foi uma abordagem muito particular, embora com oscilações entre momentos de elevada tensão e energia e outros momentos menos interessantes. Pelo meio da atuação, Bertrand deixou uma mensagem de denúncia sobre os falsos recibos verdes no MAAT. (NC)
O encerramento do rescaldo teve lugar na Igreja de St. George, junto ao Jardim da Estrela, no domingo (19). Começou por atuar, às 17h00, Raw Forest, pseudónimo de Margarida Magalhães. Entre laptop, eletrónicas e sintetizador, era criado um fluxo sonoro contínuo (drone), que tinha por base sons pré-gravados (sobretudo sons de voz/canto), juntando-se outras fontes sonoras, que eram processados e manipulados em tempo real. Daqui era crianda uma toada ambiental/atmosférica, que evoluía lentamente, de forma hipnótica. Foi uma experiência imersiva, em que a música, lenta e mutante, se foi enquadrando perfeitamente no espaço. (NC)
Seguiu-se às 18h00, como momento final do Rescaldo, o concerto de Carlos Bica. Numa rara atuação a solo, o contrabaixista português radicado em Berlim continua a mostrar porque é um dos mais brilhantes músicos da nossa praça. O seu único registo a solo, o magnífico disco “Single” (Bor Land, 2005), saiu há quase vinte anos. Já estava na altura de o ouvirmos novamente sem rede. Na belíssima igreja, Bica começou por explorar a improvisação livre e a experimentação, arrancando diferentes sons, entre o arco e o pizzicato. Foi depois apresentando pequenas melodias, quase “miniaturas”. Não trouxe melodias mais conhecidas (como “Believer”) mas, com a sua exímia técnica, aliada a uma profunda sensibilidade, desenhou momentos de inimitável beleza. Foi seduzindo o público pelo modo sublime como atacava cada nota, como fazia nascer cada som, perfeito, sem rugas. Conquistou o público presente na igreja, que não foi poupado no fervoroso aplauso final. E mais uma vez se mostrou que a Igreja de St. George (como também a sua vizinha Igreja de Santa Isabel, com o magnífico teto de Michael Biberstein), pode ser palco ideal para alguns concertos com música mais intimista e delicada. Num festival que teve como principal foco a novidade e a juventude, Bica (tal como Cândido Lima) mostrou que também os veteranos merecem atenção. Poderemos ter muitos problemas (económicos e sociais, a crise da habitação, etc.), mas na música a coisa está a correr bem. Esta 13.ª edição do Rescaldo acabou de o confirmar. (NC)