Festival Porta-Jazz
Ninguém virá tirar do lume as nossas castanhas
O Festival Porta-Jazz instalou-se na cidade para provar que o Porto tem uma cena jazzística viva, intensa e interessante. Os músicos perceberam que mesmo se “ninguém virá tirar do lume as nossas castanhas”, estas não se deveriam queimar. Por isso é um festival único, feito por músicos para músicos. É ainda especial porque cria pontes, junta, liga, avança. E se isto parece pouco, na verdade não o é: Portugal, um país pouco dado ao associativismo, à cooperação, ao juntar de esforços em torno de objetivos comuns e de uma ideia partilhada, ignorando diferenças, tratando no essencial.
Outra das características do festival é que procura a colaboração com outras instituições nacionais mais embrionárias (ex: OSSO, Robalo) de modo a, juntos, serem maiores. E ainda que convide outras instituições congéneres da europa para alargar fronteiras, hoje mais psicológicas do que físicas. Convidou também outros programadores (vimos pelo menos o de festival de Ljubljana e o de Tampere), outras revistas (esteve presente a In&Out Jazz de Espanha) para que todo este esforço possa ser não só uma mostra mas também uma frutificação. O Festival Porta-Jazz é - antes de começar a tocar – uma boa ideia e o melhor uso que se pode dar ao investimento público. Assim sendo, não deixa de impressionar que só agora, teenager, tenha o Porta Jazz recebido o reconhecimento que merece da Câmara do Porto e da tutela, que se materializou numa sede/clube, onde o festival inaugurou.
Quando chegámos ao Rivoli, no primeiro dia, já o festival levava dois concertos de avanço: um na nova sede da Associação e um outro, anterior, no hotel que apoiou o evento. Ocupou todo o teatro (palcos, sub-palcos, parte de tráz do palco) com concertos numa mistura entre festival e showcase do que está a acontecer na cena musical da cidade e do país. Com tantos concertos, grupos e músicos qualquer visitante menos atento percebe que o Porto tem as castanhas no lume.
Começámos no pequeno auditório do Rivoli com a plateia totalmente cheia para ouvir “Hindrances”, ou seja as músicas do novo CD e LP de Pedro Neves. Em trio, o piano é o elemento dominante que assume uma personalidade melódica, doce e bem-educada. Pedro Neves sabe e gosta de fazer canções amáveis, que não desafiam ou questionam modelos. O pianista usa com frequência arpejos para descrever as notas, enchendo o espaço melódico. Um pianista muito bem preparado tecnicamente e com uma grande capacidade melódica; contudo raramente conseguimos fixar elementos singulares, ficando com pouco mais do que seguir a exposição: o percurso pelas canções faz-se com agrado mas sem fixar o ouvido em elementos particularmente interessantes ou inovadores. Miguel Ângelo no contrabaixo e António Marrucho construíram uma secção rítmica competente que se preocupou sempre e dar um bom apoio às melodias, por vezes usando segundas vozes para as encorparem. Música que radica nos trios dos anos sessenta do século passado como o de Paul Bley com alguns elementos estilísticos de novidade como os que foram trazidos pelos E.S.T.
Com um pequeno intervalo fomos ouvir o trio Suíço Wabjie (voz e eletrónica, piano e bateria). Michael Wintsch é o pianista dos “Who Trio” que descobrimos recentemente.
Tal como o concerto anterior, o grupo pega na tradição do jazz vocal e na ideia de canção mas revê-os. Sem um baixo, são os sintetizadores que porvêm a linha de graves, dividindo a tarefa entre o sintetizador de Soraya Berent o do Wintsh. O piano é muito criativo e arriscado e conseguiu sempre estar no concerto com imaginação. Já a voz usou modos tradicionais revistos, com a ideia de letra e de canção a serem traficadas pela repetição de sílabas e pela redução. Foi muitas vezes muito bom de ouvir. A bateria de Samuel Jakubec foi o elemento menos marcante do grupo, que esteve, acompanhou.
A noite previa mais dois concertos, o primeiro dos quais com um quinteto de músicos muito novos. Assentava no trabalho de composição do contrabaixista italiano Gianni Narduzzi, que residiu nos na cidade do Porto, e que veio apresentar o seu disco, editado pela casa. Veio com os companheiros da cidade Hugo Caldeira no trombone, Afonso Silva no saxofone, Joaquim Festas na guitarra e Gonçalo Ribeiro na bateria. A diferença entre um compositor. Um não compositor é que o compositor escreve música, ensinaram-me logo nos meus primeiros anos de aprendizagem. E Narduzzi fez-se à tarefa e mostrou uma música viva, com melodias fortes e bem tocadas. Na frente estão dois sopros, saxofone e trombone, com uma secção rítmica de contrabaixo e bateria e uma guitarra com um som PatMethenizado.
O que mais impressionou foi o amadurecimento da composição de que dá ao grupo temas com um groove forte, espaço para solistas e músicas com histórias não lineares. Muito bom o solo cruzado entre saxofone trompete, com o grupo a saber arrancar para tempos rápidos e intensos, coisa muito raro nos grupos ouvidos este ano. O quinteto tem um bom som.
Para fechar o primeiro dia, subiu ao palco o quarteto do pianista Carlos Azevedo com Miguel Moreira na guitarra elétrica, Miguel Angelo no contrabaixo e Mário Costa na bateria. Música muito bem feita mas, um pouco como a de Pedro Neves, sem novidades de relevo ou elementos muito distintivos. Jazz muito correto, muito bem tocado, melodioso, pormenorizado, mas que oferece pouca resistência a passar de frente a fundo pela ausência de particularidades. Instalou-se uma sensação - que iria perpassar por grande parte dos projetos portuenses este ano - de uma música moderada, séria e introspetiva.
O primeiro dia terminou com a alegria de rever amigos e músicos a tocarem ao vivo e o excelente trabalho que o Porta-Jazz faz.
O segundo dia começou na parte de trás do palco com um sexteto que juntava músicos do OSSO (Associação Cultural das Caldas da Rainha) ao Porta-Jazz com o título “Interferências”.
A designação esclareceu-se desde o início do concerto quando percebemos que os músicos tinham um(a espécie de) rádio na mão e um sistema de emissão e receção. O grupo, maioritariamente humano integrava, para além dos rádios, um piano mecanizado.
O concerto descreveu uma curva de Gauss, indo do ruído de sintonia quase impercetível a uma zona elevada, apagando-se progressivamente. Os músicos foram usando maioritariamente contínuos: primeiro com ruído branco dos rádios, depois com as vozes, depois com os instrumentos e regressando à forma inicial por ordem inversa. Apesar da surpresa agradável na instrumentação e no aspecto performativo - com Joana Castro no movimento (sempre de costas para o público e limitada pela proximidade a que se impôs ao microfone) – as novidades foram aparecendo mas a música acabou por não ser tão surpreendente como os instrumentos.
O preto, a que os músicos se impuseram, e o ambiente escuro da performance acabou por retratar o sentimento da música, noturna e pesada. Sem arrebatar, este concerto de junção de projetos musicais (com Susana Santos Silva no trompete e voz, Ricardo Jacinto no violoncelo e voz, Nuno Morão na bateria e voz e João Grilo na eletrónica e voz) teve o mérito de sair do ambiente que se tinha instalado no primeiro sai e de abrir portas entusiasmastes para os concertos seguintes. E assim foi.
Descemos ao sub-palco para ouvir o projeto Umbral que já tinha deixado excelente memória em disco. Também aqui a parte performativa foi cuidada, com um quinteto vestido de branco menino, fronteado pela atriz Catarina Lacerda, que disse textos do dramaturgo Jorge Louraço Figueira. O grupo instrumental com a guitarra elétrica de Nuno Trocado (que compôs esta peça), a flauta e saxofone de João Pedro Brandão, Sérgio Tavares no contrabaixo, Acácio Salero na bateria e Pedro Cabral no Theremin e outras eletrónicas. Os textos são muito bonitos e Catarina Lacerda di-los muito bem o que nos faz seguir toda a peça, desde logo, com prazer. Viajamos entre entre anjos, aves, cidades, pessoas, espíritos e atentados à bomba. Revoluções em pequenas comunidades, o trabalho e os atores de todo este ecossistema que troca relações e inconveniências.
A música de Nuno Trocado vai criando vários ambientes, como que construindo um cenário sonoro para aqueles trechos; é a música que molda os estados de espírito enquanto a atriz diz o texto com alguma neutralidade. A música, por vezes descreve e concretiza, outras abstrai. Isto não é teatro musicado, mas também não é música vocal ou locução acompanhada. É um equilíbrio fino, novo e muito interessante.
Fomos de seguida para o pequeno auditório para ouvir um trio lituano e norueguês, comandado pelo saxofonista Liudas Mockūnas. Que trio! O baterista norueguês Håkon Berre é um caso sério. Raramente se preocupou em definir um ritmo ou partir o tempo em partes iguais. Arnas Mikalkenas no piano também encantou com o que tocou e com os silêncios bem medidos e pertinentes.
A música do trio parte de uma estrutura aparentemente desconexa, parecem apenas peças desligadas, mas que se vai tornando coesa momentaneamente, para se soltar novamente e viajar individualmente. Como um móbil do Calder, a música pensada por Liudas é uma proposta muito interessante que explica a notoriedade que o músico tem alcançado e as parcerias internacionais que tem criado (incluído a com o português Hugo Carvalhais com quem gravou recentemente). Um excelente concerto.
Seguiu-se o trio do guitarrista Eurico Costa que veio apresentar o seu mais recente trabalho discográfico “Copal”. Mudámos completamente de registo. Costa tem uma fluência notável na guitarra e as composições são interessantes. Demian Cabaud no contrabaixo e Marcos Cavaleiro na bateria estão no seu elemento e integram-se nesta proposta sem dificuldades. Andámos por diferentes geografias rítmicas, mas sempre dentro do mesmo universo sonoro, com a guitarra a liderar as questões melódicas e harmónicas e a secção rítmica a fazer o que o nome indica, a ritmar. Tal como nos concertos do primeiro dia estivemos num mundo claro, elegante, mas sem novidade para além (o que não é pouco) de uma forma de tocar distinta.
A soirée começou com a música do muito jovem pianista Miguel Meirinhos, encomendada pelo Porta-Jazz e ouvida em estreia no festival. Meirinhos tem música muito interessante dentro de si. As composições mostram que domina as formas e que não se conforma em apenas as reproduzir. A narrativa não foi linear, sequencial, mas sim um percurso acidentado de linhas sinusoidais paralelas feitas principalmente pelos sopros. Música que deixa de ser bidimensional para se ouvir tridimensionalmente, como se fosse um entrelaçar de cabos a evoluir num espaço. A bateria de João Cardita também marcou muito positivamente, sem interesse em explicar o ritmo, foi dando um suporte rítmico autónomo sem se preocupar em intensificar o que intensificado estava. Também o contrabaixo de João Fragoso foi especial, não se limitando a reforçar o tempo, entrando por linhas melódicas complementares. Na frente, o trio de sopros não deixou notas particulares com o trompete de Ricardo Formoso a ser o que mais memória deixou. Foi difícil de perceber o destaque dado a Joshua Schofield no sax alto (salientado no programa) que não fez nada de destacável. Gostávamos de ter ouvido estas ideias de Meirinhos em territórios mais incandescentes, mas todo o concerto evoluiu no registo sereno (mais uma vez) que foi comum nesta edição. Nem parecia que o Porta-Jazz estava em plena adolescência do alto dos seus 13 anos.
Fomos assim até ao último concerto do segundo dia, magnificamente apresentado por Susana Santos Silva que, não só deu a entrada aos músicos como de algum modo instalou o espírito para o que os Alfons Slick, um duo de piano e bateria polaco, viria a fazer.
A pequena instrumentação cresceu exponencialmente ao vivo com o uso muito criativo dos instrumentos, da eletrónica e da voz. Um concerto excelente para fechar a noite, desconcertante, com humor, interessante, com a bateria, a caixa de ritmos, o piano e as vozes a saberem construir soluções diferentes, ideias musicais muito atraentes, uma mistura enorme de elementos do jazz, da pop, disco, rock. Com apenas dois instrumentos estivemos sempre a ouvir músicas diferentes, estilos diferentes; sempre em surpresa, presos à cadeira, numa montanha-russa musical. Grande duo com aqueles nomes pejados de consoantes seguidas (Grzegorz Tarwid, teclados e voz, Szymon Gąsiorek, baterias, eletrónica e voz) com um disco editado e outro na forja a que é necessário dar atenção.
E como tudo o que começa, chegámos ao último dia de concertos do Porta-Jazz, no domingo, também com seis concertos de dente afilado à nossa espera.
Começámos com o velho Bode Wilson que continua a renovar-se. O trio de João Pedro Brandão, Demian Caboud e Marcos Cavaleiro mostrou neste concerto que continua com vontade de explorar novos caminhos.
O concerto organizou-se em pequenas improvisações que desenvolviam ideias simples. Cada improvisação curta (aproximadamente três minutos) instalava e desenvolvia uma ideia. Assim, em vez de composições no sentido tradicional, temos processos, ideias. João Pedro Brandão, a tocar saxofone, flauta e uma pedaleira Crumar de órgão com os pés foi de longe o músico que mostrou ter mais para dizer neste contexto. Demian Cabaud parecia muito desconfortável, e frequentemente não soube o que fazer, subindo e descendo o braço do contrabaixo com grupos de duas notas. Tocadas ao calhas. Pareceu a quem ouviu que havia uma enorme incompreensão deste tipo de música e uma incapacidade em propor ideias e soluções, excetuando quando explorou instrumentos estranhos como o charango argentino. Marcos Cavaleiro tinha mais para dizer, mas pareceu estar sempre a esconder-se por baixo dos outros instrumentos. Tocando o mais baixo e discretamente possível, sempre abaixo e por baixo do que estava a ser feito. Se Brandão baixava, ele baixava ainda mais, se elevava, ele acompanhava-o de modo a nunca ser frente. A volatilidade do título explica os processos e os resultados ainda pouco definidos.
Os vídeos que integravam a manipulação ao vivo relacionada com a música, foram excelentes e construíram uma forma nova de fruir esta música improvisada.
O projeto “Liquify, Spread and Float” surgium no contexto da residência anual promovida pelo Guimarães Jazz, que convida o coletivo portuense para a criação de uma proposta original. No ano de 2021, o projeto foi encabeçado pela cantora Inês Malheiro que criou um projeto em que os músicos estão escondidos por um plástico diáfano.
O público recebe a música olhando para uma superfície leitosa que esconde os músicos, deixando perceber algumas sombras. Ao contrário do concerto anterior, em que os vídeos construíram um discurso visual muito rico e interessante, neste caso, a imagem é quase anulada, levando-nos a ficar só com o som (como quando ouvimos um disco em casa); surgem-me várias questões que ficam por responder sobre o que é um concerto de música ao vivo, mas foco-me na música. Rapidamente perco o interesse com o som a evoluir lentamente, num crescendo, com várias personalidades (a guitarra num registo clássico, por exemplo).
Subimos para o pequeno auditório para o segundo bloco de concertos do dia. “Into The Big Wide Open” é o grupo multinacional liderado pelo baterista Alfred Vogel com Eldar Tsalikov no saxofone e clarinete, Valentin Gerhardus no piano e live sampling e Felix Henkelhausen no contrabaixo. A música de Vogel é muito positiva, humana, acredita na sociedade e no que um grupo criativo pode fazer. Os sopros de Tsalikov estiveram sempre presentes, construindo uma espécie de coluna vertebral que articula os restantes instrumentos. Bom concerto do baterista austríaco que continua a mostrar ser um músico muito interessante que não se cinge às questões rítmicas.
Seguiu-se o concerto da cantora Joana Raquel com o saxofonista Daniel Sousa ou, melhor dizendo, os 293 Diagonal que vieram apresentar “Membrana”. Os duos de voz e um instrumento (que não o piano) não são uma coisa fácil. Mas quando resultam são o céu. Por isso a proposta era desde logo entusiasmante pois lembramo-nos de Sheila Jordan com Arild Andersen (ou Karin Krog com Andersen) e, principalmente, de Sidsel Endresen com Stian Westerhus. O saxofone processado e a voz causaram surpresa e o início foi prometedor. Mas, gasto o brilho inicial, o concerto evoluiu sempre da mesma forma, com a voz a repetir-se. Estivemos sempre a ouvir a mesma ideia inicial, repetida da mesma forma pela voz, o que nos afastou do concerto (apesar de Daniel Sousa ter procurado e conseguido outras soluções). O que é dito/cantado, também é muito pouco estimulante. Este duo espartano parece ser uma boa ideia mas requer mais tempo, trabalho e capacidade de alargar as soluções e sair desta forma que parece ter só uma ideia e um processo.
A noite que encerrava o festival começou com o quarteto do guitarrista AP, num registo mais lento e contido do que o que lhe associamos. O trio de piano, contrabaixo e bateria da nova geração de músicos do Porto, juntava José Diogo Martins, Gonçalo Sarmento e Gonçalo Ribeiro. A “Nu” a música fica mais perto do essencial, em que notamos uma procura de melodias simples e puras, deixadas quase desadornadas para que a improvisação lhe possa dar espanto e fulgor. Ouviu-se com muito prazer.
E para fechar da melhor maneira, um coletivo “Do Acaso” apresentou “Catarse Civil". Um pouco como no projeto de Nuno Trocado, “Catarse Civil” cruza música com literatura. Pensado pela contrabaixista Sara Santos Ribeiro o ensemble generoso (10 músicos, condutor e narrador) foi um “concerto” com onírico onde se procurou sonorizar os movimentos abstratos dos" sonhos da humanidade que dorme". Muito bonito o concerto com uma dose de alucinação,
Acabava o festival de forma muito simpática, a provar que o coletivo e as ideias podem realmente fazer a força, mesmo quando incoerentes. Os músicos não deixaram notas individuais de destaque, mas coletivamente, a música tocada, os textos narrados, foram excelentes.
“Enquanto uns choram, outros vendem lenços”