João Lencastre “Free Celebration”
A todo o gás
O baterista João Lencastre levou à SMUP o seu sexteto que homenageia Ornette Coleman, Herbie Nichols e Thelonious Monk. Juntaram-se em palco João Lencastre, João Lopes Pereira, Nélson Cascais, João Bernardo, Ricardo Toscano e Pedro Branco. Na Parede houve fogo.
Além de se tratar de um espaço muito simpático e acolhedor, a Sociedade Musical União Paredense (SMUP) tem sido um verdadeiro pólo efervescente da cena improvisada, desde a sua reabertura em 2013, e tem-se afirmado como um palco privilegiado para novas formações e encontros inéditos, muitas vezes projetos a cruzar as fronteiras entre a livre improvisação e o jazz. É sempre um grande prazer lá voltar, e passou-se quase um ano desde a última vez que tinha ido ao belíssimo espaço da Parede. Na altura, fui assistir à estreia de um trio inédito: Rodrigo Amado (no saxofone), Tom Maciel (no piano) e João Lencastre (na bateria). Curiosamente, foi o mesmo Lencastre quem liderou a formação que levou a este regresso à SMUP.
Desta vez, Lencastre apresentou-se ao leme do seu projeto “Free Celebration”, na noite de sexta-feira, 2 de dezembro. Ainda sem registo gravado, este é um grupo que homenageia três lendas que definiram a história do jazz - Ornette Coleman, Herbie Nichols e Thelonious Monk - trabalhando reinterpretações de alguns dos seus temas. Desde logo, a formação surpreende ao apresentar duas baterias: ao lado de Lencastre está João Lopes Pereira. Juntam-se o saxofonista Ricardo Toscano, o guitarrista Pedro Branco, o contrabaixista Nélson Cascais. E, acrescentando som mais eletrónico, junta-se João Bernardo, nos sintetizadores. Quase todos nomes prestigiados da cena jazz nacional, alguns deles (Toscano, Branco e Cascais) participam ainda no disco “Unlimited Dreams”, consagrado como um dos melhores discos jazz do ano passado.
Com o palco e cadeiras da plateia montados no espaço do palco principal, a sala encheu para assistir à atuação do sexteto. O concerto arrancou devagar, lentamente, com o grupo a trabalhar um ambiente atmosférico, numa espécie de introdução. Mas num instante o grupo mudou de registo e entrou rapidamente na linha de um tema de Ornette (“Giggin’”), acelerando a todo o gás. As duas baterias pareciam estar sincronizadas, com Lencastre e Lopes Pereira bem alinhados a fornecer uma propulsão rítmica criativa. No centro ficou o contrabaixo de Cascais, com a sua solidez e precisão habitual a assumir-se como ponto focal. E, como estrelas solistas, Pedro Branco e Ricardo Toscano trataram de sacar todos os seus trunfos, puxando o grupo em solos enérgicos. Discreto, o sintetizador de João Bernardo apareceu apenas pontualmente e, apesar de alguma indecisão inicial, ligou-se bem à energia do resto do grupo. Seguiu-se outro tema de Ornette, “Congeniality” (do belíssimo “The Shape of Jazz to Come”) e foi aqui, ao terceiro tema, que sentimos o grupo a alcançar todo o seu potencial.
A atuação continuou com os temas “The Third World” (Nichols),“Skippy” (Monk), “Toy Dance” (Coleman) e “The Gig” (Nichols), com a banda progressivamente mais oleada, cada vez mais fluída e acesa. As linhas angulares dos temas eram bem aproveitadas pelo grupo, que salientava os contrastes. O momento mais marcante da noite terá sido o penúltimo tema (novamente Ornette, agora “Forerunner”): arrancou com as baterias num fogoso diálogo, com o tema a evoluir para solos brilhantes, primeiro o saxofone em chamas, depois a guitarra elétrica em desvario. O concerto fechou depois com mais um tema de Monk, “Humph”, mantendo a energia num nível alto.
A força do sexteto não assenta em destaques individuais, vive da soma de várias dinâmicas: das duas baterias em ligação, da solidez central do contrabaixo e da qualidade destacada dos solistas. Toscano já é uma das figuras maiores do jazz nacional, sempre imaginativo e com máximo empenho e na SMUP não falhou, cumprindo as premissas habituais (e tem um novo disco em trio, “Chasing Contradictions”, ao qual iremos dar atenção em breve). Branco tem um percurso muito diverso, entre revisões jazzísticas da obra de Marco Paulo (Branco toca Marco Paulo), participação na banda de Tiago Bettencourt e nos You Can’t Win Charlie Brown e editou neste 2022 um belíssimo disco a solo, “A Narrativa Épica do Quotidiano” (entre outros projetos, parcerias e colaborações); ainda a recuperar de uma perna partida, Branco levou à Parede a sua criatividade na guitarra e uma entrega sem limites. Combinados, Toscano e Branco foram o combustível extra que propagou o incêndio.
Sempre a todo o gás, sempre carburar no limite, numa altura em que por todo o mundo se apela à contenção energética, esta atuação fogosa poderia ser interpretada como provocatória ou ofensiva. Ninguém precisa de saber, fica só entre nós.