Guimarães Jazz
Espiritualidade, afetos e ideias
Poucos momentos são tão bons como os que nos levam até Guimarães em novembro, para a expedição invernosa de jazz. O pretexto é um contexto: a companhia e a concomitância. O festival de Guimarães leva 31 anos de celebração e divulgação e propõem-se a ser avaliado não apenas em função dos programas que apresenta em cada edição, mas também, e sobretudo, a partir do prisma da sua evolução no tempo. Eu diria que há ainda um terceiro eixo. O do que fez por um território – a cidade de Guimarães – e, num horizonte mais largo, pelo país. Há coisas que vimos acontecer, que seriam impensáveis há 31 anos: uma orquestra feita de jovens portugueses que mal cumpriram os 20 anos, com 1 contrabaixo, 1 vibrafone, 2 baterias, 2 guitarras, 2 pianos, 3 trombones, 3 vozes, 4 saxofones, 4 trompetes a tocarem sem medo e com autoridade, era irrealizável (até inimaginável). A cultura há 30 anos não era muito diferente da que Eça de Queiroz descreveu um século antes: chegava de Paris no paquete. Hoje ouvimos isso e muito mais no palco grande do magnífico Centro Cultural Vila Flor.
Amplamente curriculada com Grammys (apesar de já não editar um disco de originais há 10 anos), Dianne Reeves entrou em palco já depois do seu quarteto ter tocado um tema. Foi introduzida pelo modelo do showbiz gringo, com a voz off do host da noite. O público, que esgotava por completo a sala recebeu-a calorosamente e o espetáculo começou-começou. Estava aberta a 31ª edição do Guimarães jazz com uma noite acessível, para acolher públicos, com música mais confortável que os assentos do auditório; e se se está bem sentado no Centro Cultural Vila Flor!
Não era um concerto para novidades: um grupo super profissional por trás de uma cantora super profissional, de sorriso inamovível. Reeves é uma das melhores no género. O género não é dos melhores para quem pede mais à música do que aconchego e entretenimento.
Os ritmos (simples, muitas vezes abrasileirados) estiveram sempre evidentemente marcados pela bateria, com mão pesada. As canções não querem levantar questões e por isso não houve muita coisa para dizer – keep it simple. Entre vocalizações shaba-la-lué-la-lué e letras sobre perdidos e achados de amores, fez-se a noite. Reeves tem um domínio total da voz, do canto e do detalhe, usando a aproximação e afastamento do microfone para minuciar o volume. O guitarrista carioca Romero Lubambo, apetrechadíssimo tecnicamente e doutor em bossa nova propiciou a americanização de alguns temas brasileiros. Se “o tio Sam não “pega no tamborim”, alguém tem que por “bebop no meu samba”. Dedicado um tema a Gal Costa, chamado Milton Nascimento ("Nada Será Como Antes") percebemos a admiração de Reeves pelo Brasil. O piano do venuzuelano Edward Simon traz um travo latino, cheio de acordes Ernesto Lecuona style e um swing rumbista.O público adorou, aplaudiu de pé. O festival facilitou e acolheu no género. Agora cada um que faça o seu trabalho.
Linda May Han Ho já tinha estado por duas vezes no Guimarães jazz e no ano anterior, com Vijay Iyer, e tinha impressionado muito positivamente. É uma contrabaixista com uma técnica titanesca e por isso muito requisitada, que tem acompanhado Pat Metheny, Joe Lovano, Dave Douglas, Iyer, só para citar os mais proeminentes. Pequena, magra, a malaia/australiana instala-se atrás do contrabaixo que lhe fica enorme, e com um som cheio e um grande feeling, entrega uma música alegre, inclusiva, onde todos estão sempre em palco e envolvidos. Não há solos sem acompanhamento e há muito espaço para toda a gente solar.
Para começar o concerto brindou-nos com um inédito “Halo” que nos instalou na sua música feita de ritmos e com a guitarra elétrica de Matthew Stevens (Fender Telecaster) com um som muito country / americana a desempenhar uma função quase ambiental. Percebemos que as questões rítmicas são um assunto muito sério para Linda Ho: em “Circles” a música muda de compassos permanentemente e no final fundiu-se com “Hambone”, um tema de Archie Sheep (Fire Music, 1965), desejando assim as melhoras ao saxofonista, que não veio a Guimarães por complicações na sua saúde. Linda toca com uma facilidade imensa, como se o contrabaixo fosse um cavaquinho, dançando com ele enquanto faz as linhas mais difíceis, sem nunca cair na tentação de exibir gratuitamente malabarismos técnicos.
O saxofonista Greg Ward, que associamos a William Parker e à banda de pós-rock Tortoise, e o baterista Jeff Ballard estiveram igualmente contidos; este foi o primeiro concerto deste quarteto que deveria ter começado a tounée europeia no 12 em Londres, mas que o imprevisto fez antecipar um dia para Guimarães, o que poderá explicar a sensação que o quarteto ainda estava refreado. Sorte a nossa que tivemos o privilégio de ouvir em primeira mão.
No Sábado, como já é tradição, o dia era de dois concertos: o primeiro com a família Koppel (pai Anders e filho Benjamin) que vieram em trio (Kristoffer Sonne na bateria). Uma música lounge perto daquilo a que habitualmente se convencionou chamar de fake jazz ou seja o uso de uma forma para-jazzística imaginada para os filmes negros de detetives americanos, que vivem num submundo pouco dado ao cumprimento de leis, em bares enevoados pelo fumo de tabaco.
O Hammond monta a ambiência ilícita enquanto o saxofone alto nos lembra o som de um John Zorn muito bem-educado. A bateria acompanhou.
Quase no final do concerto parece um love theme muito bonito, dolente, com uma melodia longa. Colaram todas as músicas, não dando espaço para aplausos, numa enorme suite melódica que se ouviu como um disco de rock sinfónico fleumático.
À noite, o concerto mais esperado deste primeiro ciclo do Guimarães Jazz deste ano, o Hamid Drake “Turiya: Honoring Alice Coltrane”. Publicaremos brevemente uma entrevista ao baterista/percussionista que explica de forma mais completa este projeto. Em palco um grupo alargado de músicos, com spoken word e dança para homenagear a brilhante Alice, tantas vezes injustamente minorada por ter sido casada com John Coltrane .
O caminho para uma música mais espiritual unio-os e libertou o casal Coltrane de algumas regras, levando-os em direção a formas mais abstratas e livres (basta ler as liner notes de “A Love Supreme”). E foi também a religiosidade guiada pelo líder hindu Swami Satchidananda que permitiu a Alice Coltrane ultrapassar o sofrimento pela morte do marido.
Quando ainda se chamava Hank e não sabia que viria a ser músico, o jovem aspirante a baterista foi ter com Alice Coltrane depois de um espetáculo nos subúrbios da windy city. Recorda que esse encontro lhe deu a confiança para se assumir como músico. Largou o Hank, passou a Hamid e dedicou-se ao seu instrumento. Fundamenta-se assim uma das motivações para “Honoring Alice Coltrane” que foi conceptualizado por si com a ajuda de Ludmilla Faccenda, a sua agente italiana. É o seu primeiro projeto como líder, à frente de um septeto com compatriotas Brad Jones no contrabaixo e os vários teclados de Jamie Saft, Ndoho Ange na voz e dança, que veio de Guadalupe, a trompetista da Serra Leoa Sheila Maurice-Grey, a eletrónica norueguesa de Jan Bang, o vibrafone do italiano Pasquale Mirra (ouvimo-lo na Gulbenkian no verão com a Exploding Star Orchestra de Rob Mazurek) e, claro, Hamid Drake na bateria, percussão e voz.
O concerto estruturou-se em 3 composições de Alice Coltrane – “Ptah, The El Daoud” (do LP com o mesmo nome de 1970), “Sivaya” (de “Transcendence”, 1977) e “Journey in Satchidananda” (do LP com o mesmo nome de 1971). Acabou com “Desireless”, um tema de Don Cherry que aparece no terceiro disco da Jazz Composer's Orchestra (de Carla Bley e Michael Mantler), uma suíte em que o trompetista usou o estudo sobre música indiana que tinha desenvolvido com Pandit Pran Nath.
Entre os temas escritos pela pianista/harpista apareceram improvisações feitas individualmente ou por subgrupos do coletivo. A primeira foi do baterista que instalou a cerimónia; Jamie Saft solou antes de “Sivaya” com enorme intensidade, mantendo o pedal premido e transformando o piano numa enorme máquina de harmónicos, prolongado e exagerando os processos da homenageada. O vibrafone tem um som que de algum modo consegue evocar mais vivamente o da harpa com um brilho metálico e a capacidade mecânica de prolongar o som das notas. O solo de Pasquale Mirra foi lindíssimo, com uma gestão brilhante do pedal do vibrafone para prolongar e cortar os sons; usou um plástico para abafar as lamelas, tocou com intensidade e marcou a noite sendo o músico que mais nos encantou, numa noite cheia de momentos de elevação e generosidade musical.
Um concerto bonito, afetuoso, que nos envolveu a todos num movimento feliz e harmonizador e em que a música de Alice Coltrane foi revisitada com muita liberdade valorizando-se a simplicidade dos elementos e a repetição.
No domingo e último dia da primeira semana cumpriu-se também o habitual com dois concertos em que a música é tão importante como o propósito. Nos dois, o programador Ivo Martins dá carta branca aos programados e arrisca em concertos que não existem no momento em que o programa é fechado.
No primeiro, à tarde, os estudantes a ESMAE são convidados a passar uma semana na cidade numa sessão de trabalho intensiva com o músico americano que é convidado pelo festival para dinamizar as jam sessions.
Os músicos norte-americanos têm uma enorme cultura de big bands, que se inicia no high school e que se prolonga em inúmeras colaborações. Ainda este verão ouvimos o trompetista Vítor Garcia em Chicago na orquestra que abriu o festival da cidade, a tocar “Vonology", de Mike Allemana, uma peça dedicada a Von Freeman, uma referência do jazz local).
Trazem toda a sua experiência aos jovens músicos de Matosinhos, numa semana de grande evolução pessoal e musical, em que a partilha e os ensaios diários (mais as noites de jam sessions) lhes proporciona uma enorme evolução. Foi todo esse processo que apresentaram no palco principal do Guimarães Jazz. A música tem muitas dimensões e a humana é uma das suas principais; por essa razão este não é um concerto menor, mas sim um momento muito rico. Vemos um Portugal inimaginável há 20 anos, com uma série de jovens músicos, ainda em formação a conseguirem responder competentemente às pautas que Garcia lhes deu. Tocaram oito temas, os três primeiros do próprio trompetista seguidos de um mix ligeiro que incluiu Stevie Wonder ou António Carlos Jobim.
No final “La rumba me está llamando”: tocaram com azucar “Quimabara” do Porto Riquenho Junior Cepeda, que foi popularizada pela “reina” Celia Cruz nos anos setenta. Bons solos de todos os que foram chamados a fazê-lo, rigor na execução e um ambiente festivo e afetuoso com as famílias a apoiarem .
À noite outra das propostas originais deste festival, um concerto em que a programação arrisca tudo pois não faz a mínima ideia do que virá a ser. Só no dia do espetáculo se conhece o resultado: a organização convida a Porta Jazz, que seleciona um músico, que propõe ao festival, que convoca um artista de outra área, para montarem numa semana um espetáculo.
O risco é total e assumido pois neste contexto os músicos são “obrigados” a sair do seu mundo e a cruzarem as suas ideias com as de outras artes, integrando-as num espetáculo original. Por vezes redunda em propostas desinteressantes, noutros, como foi o caso deste ano, surpreendentes. O convidado foi o guitarrista Mané Fernandes que nos surpreendeu positivamente com “ENTER THE sQUIGG” e que, nesta noite, voltou a fazê-lo com “matriz_motriz”. Uma música próxima dos processos minimalistas americanos com guitarra elétrica, piano (e eletrónica) e três vozes femininas que nos lembrou (até pela disposição em palco) as obras iniciais de (início dos anos 80 do século passado) Philip Glass mas com uma personalidade muito diferente. A música assenta, como a dos minimalistas repetitivos americanos (La Monte Young, Riley, Reich, Glass, Branca), em ciclos. A voz humana, que teve um papel muito importante nestas obras iniciais, com Lauren Flaningan no ensemble de Glass ou nas gravações de Reich, surge nesta obra de Fernandes com um ponto de vista novo e muito interessante. Em Portugal não me ocorrem muitos exemplos, para além de João Madureira e Vítor Rua, de compositores que tenham escrito com interesse, originalidade e beleza para vozes.
Aqui, um trio feminino com Mariana Dionísio, Sofia Sá e Vera Morais faz um trabalho notável, na repetição de ciclos de notas curtas que se vão entrelaçando numa polifonia cíclica e repetitiva. A guitarra por vezes dobrava a voz (evocando-me o trabalho de Louis Andriessen em “Melodie” (1972)) e o piano criava a segunda voz da guitarra; a relação entre os dois instrumentos e as vozes é brilhantemente orientada e com grande beleza formal. A música de Mané Fernandes parece recuperar as lições do minimalismo repetitivo inicial e usa-as de uma forma muito criativa para a movimentação (“motriz”) de uma música feita de pequenos elementos que se recombinam. A americana Brittanie Brown, dançarina da Skånes Dansteater em Malmö, na Suécia, coreografou em tempo real, como um músico improvisador, o movimento que acompanhou o concerto, cumprindo assim o requerido para a interseção artística.
Entre gosto e desgosto há um curto prefixo. E o resultado, o espetáculo, é o que fica conhecido pelo público. Mas é provavelmente o processo que o faz acontecer o mais importante. O apoio desta grande estrutura de programação a uma outra próxima, mais pequena, de produção. É, acima de tudo, uma ideia muito rica sobre a função de um festival de jazz.
E assim se fechou a primeira semana em Guimarães mas não o festival. Há mais. É ir, vale a pena.