Outono em Jazz
Emoções e surpresas
Depois de ter arrancado com João Donato, o ciclo Outono em Jazz levou à Casa da Música concertos de Liba Villavecchia Trio e Marek Pospieszalski Octet no dia 16 de outubro; no dia 23, o ciclo apresentou ao fim da tarde “Remix em Jazz” e, já de noite, Hugo Carvalhais com “Ascetica” e Sexmob de Steven Bernstein. Estivemos lá.
«Resta-nos esperar que o muito público que passou pela Casa da Música responda a edições futuras com o mesmo entusiasmo, que o jazz continua vivo e recomenda-se!» Assim terminava a reportagem que escrevi em 2016 a propósito do festival SpringOn!, na Casa da Música. Decorridos 6 anos – e noutra estação – esta esperança concretizou-se na festa que agora termina. No dia 16 de outubro, pelas 21:00 horas, a Sala 2 da Casa da Música esteve bem composta por um público bastante heterogéneo – de todas as idades e nacionalidades – para assistir aos concertos de Liba Villavecchia Trio e Marek Pospieszalski Octet.
O trio do saxofonista catalão veio apresentar temas do seu último disco, “Zaidín”, editado este ano pela portuguesa Clean Feed. O seu jazz refinado e sofisticado, reminiscente de uns AHO de Daunik Lazro, foi mais consensual do que a segunda proposta da noite. Os generosos aplausos do público assim o assinalaram durante toda a atuação. O fraseado polido do saxofone, a precisão rítmica de Vasco Trilla na bateria / percussão e o pulsar do contrabaixo de Alex Reviriego contrastaram, por vezes, com deambulações ou improvisos que iam sendo resgatados para a estrutura dos temas, com discreta sinalética. Um único apontamento para o fraco som do contrabaixo: os graves ressonantes e os médios impercetíveis no pizzicato só foram aliviados pelas técnicas expandidas ou pelo recurso ao arco. Dotado de uma técnica irrepreensível, Reviriego merecia melhor som.
Após um breve intervalo subiu ao palco um octeto avassalador! Os arranjos propostos por Marek Pospieszalski e seus “melhores amigos” – assim se referiu a cada um dos músicos no momento de os apresentar – de uma seleção de compositores polacos contemporâneos, não colheram grande entusiasmo. O desconforto fez-se notar pela inquietude e algum nervoso miúdo manifestado por alguns elementos do público. Talvez o facto de ser domingo (e tarde) tenha contribuído para o abandono de algum público após o segundo tema. Não obstante, as incursões em tão diferentes géneros musicais (jazz pastoril, “ambient”, música erudita, “noise”, industrial, etc.) foram de uma densidade e profundidade fascinantes. A massa sonora assemelhou-se a um ondular de crescendos e diminuendos entrecortados por derivas “ruidistas” e sons concretos. Enalteço o papel do percussionista Qba Janicki que não parou de surpreender com os seus ritmos “sujos”, cheios de distorção magistralmente manipulada. A performance deste octeto fez jus à velha escola polaca que nos inundou de excelente música programática, seja no cinema / animação ou em composições eruditas.
No domingo, dia 23, a sala Suggia encheu! O público foi tão variado quanto na semana anterior mas na proporção da grande sala. Assisti ao concerto ladeado por dois jovens sul-americanos e duas jovens britânicas, atrás de mim uma enorme família de eslavos (possivelmente Russos) e à minha frente quatro jovens chineses. É bom percebermos que fazemos parte de um roteiro cultural internacional e que a prata da casa atrai e tem qualidade para empolgar gente de todos os cantos do mundo e de todas as idades.
O programa para a tarde trouxe-nos o Remix Ensemble e a Orquestra de Jazz de Matosinhos (OJM), dirigidos pelo Estónio Olari Elts. Na primeira parte, o Remix Ensemble interpretou obras de Magnus Lindberg, Lotta Wennåkoski e Anders Hillborg. Em “Coyote Blues”, Lindberg induz-nos num estado lânguido e voluptuoso através de glissandos para de seguida nos abanar com breves fraseados, como se a história contada fosse interrompida por comentários, umas vezes jocosos, outras assertivos. “Hele” de Wennåkoski aligeirou o ambiente. O humor presente na composição adveio dos assobios de pássaros e da flauta de êmbolo. A reação do público fez-se sentir com algumas gargalhadas a pontuarem a execução da peça. Atmosférica e caricatural, quase onírica, como num sonho bom. Por fim, "Vaporised Tivoli" de Tillborg imprimiu alguma energia e “Groove” para se desvanecer numa esparsa melodia.
Na segunda parte do concerto combinaram-se os esforços do Remix Ensemble e da OJM para apresentarem, em estreia mundial, “Mare Lacrimarum” de Erkki-Sven Tüür. Segundo o compositor, alguma da inspiração para esta obra advém do rock progressivo de bandas como King Crimson e Emerson, Lake and Palmer. A recente guerra na Ucrânia terá também influenciado Tüür. Apesar da carga emocional implícita, esta obra é de uma efervescência contagiante! A sucessão de eventos ao longo da peça leva-nos a oscilar entre o conforto das cordas e as bojardas dos sopros. A secção rítmica (bateria e baixo) transportou-nos ao longo desta viagem atribulada com toda a segurança. Como o próprio Tüür descreve, há um “intenso alvoroço [...] alheio ao perigo", que nos remete para um reboliço com toada urbana: o caos organizado das cidades, com o perigo à espreita. O maestro esteve incansável na forma efusiva como dirigiu os dois agrupamentos. No final, o público retribuiu com a extensão dos aplausos. Um sucesso!
À noite, Hugo Carvalhais em sexteto e o Steven Bernstein Sexmob animaram a Sala 2. Em março passado tive a oportunidade de escrever sobre a apresentação de “Ascetica” no Museu da Cidade do Porto. Para não me repetir, noto apenas que foi um momento delicioso. Desta vez, Carvalhais contou com Mário Costa na bateria e eletrónicas e com o “enorme” Liudas Mockunas nos saxofones e clarinete, além dos já habituais Gabriel Pinto (teclados) e Fernando Rodrigues (sintetizador). Destaco a dupla Mockunas e Fábio Almeida (a dupla de saxofonistas) que tiveram rasgos surpreendentes, em especial o primeiro que assumiu algum protagonismo na qualidade de convidado especial. A generosidade de todos os músicos foi sublime e o júbilo de Carvalhais não podia ser mais notório.
O segundo concerto foi menos imersivo mas não menos interessante. O quarteto liderado por Steven Bernstein apresentou um jazz descomplexado, divertido e bastante cru (no melhor sentido). Algumas versões de temas de Nino Rota, ABBA e Talking Heads fizeram as delícias do público. Depois, aquele “groove” próprio de quem vem de um epicentro em constante ebulição... Tony Scher tratou o contrabaixo sem contemplações, Kenny Wollesen temperou os ritmos, Bernstein (trompete) e Briggan Krauss (saxofone alto) foram dialogando em linguagem “Knitting Factory”. No final, Bernstein, que esteve sempre muito comunicativo durante todo o espetáculo, despediu-se lançando um repto para uma “fishing trip” e sardinhas à mistura. Um dia em pleno, este, cheio de emoções e surpresas!
Um dia em pleno, este, cheio de emoções e surpresas! Este tipo de festivais é fruto de um trabalho continuado da parte das instituições, promotores, media, editoras e, claro, dos artistas. A aposta na formação do público é da maior importância e o resultado está à vista. Há que parabenizar todos os agentes e continuar a festejar o jazz, nesta e em todas as ocasiões.