20.º Jazz ao Centro: dias 21 e 22 de outubro
Concentração e expressividade
Para o último fim-de-semana da 20.ª edição do Jazz ao Centro estavam previstos concertos de Living with a Couple, Maria João & Carlos Bica Quarteto, Ambrose Akinmusire Quartet e Diogo Alexandre Bock Ensemble. Fomos testemunhar os penúltimos dias deste festival que é uma referência no panorama nacional.
Para assinalar a marca da chegada aos vinte anos de existência, o festival Jazz ao Centro apresentou um programa vasto, com concertos diversos, espalhados ao longo de um mês, entre os dias 22 de setembro e 23 de outubro. Depois das atuações de Rodrigo Brandão com Sun Ra Arkestra, Alabaster DePlume e Nicole Mitchell, no fim-de-semana de 14 e 15 de outubro houve Peter Brotzmann e Heather Leigh, com concertos a solo e em duo. Fomos assistir ao último fim-de-semana dos Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra, que prometiam cinco concertos, nos dias 21, 22 e 23 de outubro.
Inicialmente previsto para atuar às 23h00, o trio Living with a Couple foi alterado para o final da tarde de sexta-feira, às 19h00, no Salão Brazil. Com esta mudança de última hora, acabámos por perder a oportunidade de assistir ao trio de Leonor Arnaut (voz), João Carreiro (guitarra elétrica) e João Pereira (bateria). O grupo passou a semana a gravar, em Coimbra, material para aquele que será o seu disco de estreia; o guitarrista, Carreiro, juntou-se ao Luís Vicente Trio, na celebração do 10.º aniversário do Salão Brazil com gestão do Jazz ao Centro Clube (JACC).
Na noite de sexta-feira, às 21h30, o magnífico Convento São Francisco acolheu a atuação do Maria João & Carlos Bica Quarteto. Este grupo marca o reencontro entre dois músicos históricos, figuras artisticamente brilhantes que marcaram a profissionalização e internacionalização do jazz português. Bica e João tocaram juntos durante dez anos, parceria registada nos discos “Conversa” (1986) e “Sol” (1991) da cantora, e voltaram a reencontrar-se passados 25 anos. Reencontram-se como co-líderes de um projeto que não tem medo de olhar para o passado, mas não se fica por aí, também aponta em frente. O grupo completa-se com Gonçalo Neto (guitarra elétrica) e João Farinha (piano), músicos muito sólidos. A atuação arrancou com “Scarborough Fair” (de Simon & Garfunkel), com o grupo a mostrar que não tem pejo em revisitar temas alheios; Maria João (de quem conhecemos os magníficos recursos, técnica e possibilidades) deu a sua voz numa interpretação em ponto de rebuçado; talvez mais contida do que noutras ocasiões, apropriadamente adequada à canção. Outro destaque foi a beatliana “Norwegian Wood”, que se foi transformando em “Blackbird” (também já gravada por Maria João no subvalorizado “Undercovers”, com Laginha). Neste quarteto, a voz de Maria João rouba naturalmente o protagonismo, mas esse nunca é exagerado, e o contrabaixo de Bica assume também a primeira linha, a marcar a estrutura de cada tema, também com momentos solo marcantes; na guitarra, Neto mostrava um som preciso, e entrava em frequentes diálogos com o contrabaixo; e o piano apoiava, sempre atento. Outro destaque do alinhamento foi a revisão de “Close to You”, de Burt Bacharach (e talvez por esta altura já seja consensual assumi-lo como um dos mais geniais compositores pop do século XX). Entre covers e alguns originais, o quarteto tratou de apresentar arranjos com personalidade, nem sempre óbvios, que iam descascando e revelando cada tema; o grupo mostrou em Coimbra as músicas que serão editadas em breve, num disco que terá como título “Seda” ou “Silk” (ainda por decidir). E, pelo meio da atuação, Maria João ia contando inconfidências da sua antiga história com o contrabaixista, em tom bem-humorado. Desta reunião de dois monstros do jazz nacional, apoiados por outros dois músicos de ótimo nível, resulta uma música que faz jus à história dos envolvidos; mesmo não sendo uma abordagem absolutamente original, a abordagem do quarteto cria música bela, por momentos até comovente. Rejubilou o público presente na Sala D. Afonso Henriques (o verdadeiro repousava ali perto, a um quilómetro de distância, na Igreja de Santa Cruz).
Na tarde de sábado tivemos oportunidade de assistir a um concerto que, não fazendo parte do programa oficial do Jazz ao Centro, estava associado ao festival: um grupo de alunos do Curso Profissional de Instrumentista de Jazz do Conservatório de Música de Coimbra apresentou-se no Museu Nacional Machado de Castro (às 17h00). O combo juntou Ana Carolina Santos (guitarra), Vicente Pechorro (piano), Pedro Martins (vibrafone), Tiago Fernandes (baixo elétrico) e Íris Valente (bateria). Sendo ainda músicos muito jovens, em pleno processo formativo e de evolução, os músicos exibiram desde já conhecimento e capacidade técnica. Tratando-se naturalmente de um jazz “académico”, os músicos mostraram, em alguns momentos, uma interpretação com intensidade e sentimento, sobretudo nos temas finais (depois de uma balada sentida fecharam com a enérgica “Locomotion” de “Blue Train”), e conseguiram transmitir isso para o público. Individualmente destacou-se sobretudo a guitarra, pela qualidade do som, que liderava o grupo.
Já à noite, o Teatro Académico Gil Vicente acolheu aquele que era um dos espetáculos mais aguardados do programa do festival. Depois de ter atuado no Seixaljazz na noite anterior, Coimbra acolheu o Ambrose Akinmusire Quartet. Sem esgotar (tal aconteceu no Seixal), a sala coimbrã estava bem composta, com algumas figuras conhecidas entre o público, nomeadamente o Ministro da Cultura e o presidente da Câmara Municipal de Coimbra. Akinmusire atuou pela primeira vez em Portugal há dez anos, em maio 2012, no Estoril Jazz; foi um dia triste, foi quando ficámos a saber da morte de Bernardo Sassetti, e para o público presente essa atuação ficou naturalmente assombrada pela notícia; neste regresso, o mundo mudou muito e também o trompetista, numa evolução que tem sido refletida na sua discografia. Em 2019 Akinmusire levou ao Jazz em Agosto o seu “Origami Harvest”, onde se aproximada do hip-hop; no mais recente “On the Tender Spot of Every Calloused Moment” (de 2020, crítica aqui), o trompetista e compositor já trazia uma música mais despida, contida e concentrada. Ao vivo, o grupo não segue os típicos tema/solo/tema, a música flui, o trompete vai entrando e saindo, e o grupo faz a música navegar, tranquila. Ambrose parece confirmar que “less is more”, com intervenções focadas, sem pirotecnia, apostando na concentração e expressividade do seu som. O grupo mantém-se o mesmo que tocou no Estoril, apenas o contrabaixista foi substituído nestes concertos; na bateria, Justin Brown esteve particularmente notável, pujante e preciso, a dar resposta à intensidade a cada momento; o contrabaixo de Joe Sanders (no lugar no habitual Harish Raghavan) esteve discreto, mas atento a contribuir para o fervor rítmico; e, no piano, Sam Harris mostrava-se sempre presente, embora nunca direto, sempre a preferir linhas oblíquas. Entre cada intervenção do trompete, o restante trio deambulava à volta de cada composição, fazendo-as crescer progressivamente. Depois de uma atuação notável, e de um aplauso reconhecido da audiência, o quarteto regressou para um encore, com mais dois temas: primeiro uma balada (terá sido “Roy”, dedicada a Hargrove) belíssima e concentrada, reforçada pelo calor do trompete; depois um bebop acelerado, naquela que foi a maior aproximação à tradição do jazz da noite. O público, que já estava rendido, ficou ainda mais entusiasmado.
Saídos do TAGV, seguimos para o Salão Brazil, onde o Diogo Alexandre Bock Ensemble já tinha arrancado a sua atuação. Com o disco “Pipe Tree” (edição JACC Records) ainda fresco, o jovem baterista mostrou as suas qualidades – de instrumentista, compositor e líder. Além da pujança do som do grupo, o destaque foi para os solos de João Mortágua no sax soprano e André Fernandes, na guitarra elétrica, a puxar a música quase para os lados do prog rock. A música do Bock Ensemble é original e o grupo mostrou-se muito sólido, com todos a contribuírem para o bom envolvimento coletivo. E a bateria de Alexandre, sempre bombástica, confirmou-se mais uma vez: imaginativa, surpreendente, imparável. Já não é promessa ou revelação, Diogo Alexandre é um músico completo com todo o futuro pela frente.
O 20.º Jazz ao Centro fechou, no final da tarde de domingo, dia 23, com a atuação da Banda Sinfónica da Filarmónica União Taveirense com o convidado Mário Laginha, no Convento de São Francisco (reportagem de Sofia Rajado, aqui).