20.º Jazz ao Centro: Heather Leigh e Peter Brötzmann
Heather Leigh e Peter Brötzmann em trilhos sobre despojos
Num dos mais aguardados concertos do festival Jazz ao Centro 2022, a dupla Heather Leigh e Peter Brötzmann apresentou-se ao vivo num espaço atípico, na antiga Coimbra Editora. Estivemos lá.
Ao enésimo concerto Peter Brötzmann (n. 1941), desta feita em parceria com Heather Leigh, continua a fazer de cada subida ao palco um imprescindível propósito de vitalidade. Os que lhe seguem a pegada sonora agradecem e sorvem tudo o que de bom isso traz. São para além de centena e meia de discos gravados em tantas combinações, que vão de duos até múltiplas associações de músicos e instrumentos. Mas foi desde 2015 que o soprador de palhetas Brötzmann se combinou à dedilhadora de cordas horizontais Heather Leigh - guitarra pedal steel. Aos três álbuns de estúdio gravados: “Ears Are Filled With Wonder” (2016), “Sex Tape” (2017) e “Sparrow Nights” (2018); acrescem outras duas gravações, de edição própria, em gravações de campo de ação, isto é, em palco: “Crowmoon” (Auckland, Nova Zelândia, 2017) e “South Moon Under” (Brooklyn, EUA, 2019).
Em Coimbra, o lugar da antiga Coimbra Editora, aos 15 dias andados do mês de outubro serviu de palco para os “Encontros” de jazz da cidade e recebeu o duo para uma noite inolvidável. O propósito foi de trazer à vigésima edição dos Encontros “sítios de magia”, nas palavras de José Miguel Pereira – timoneiro dos Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra, aquando da abertura do concerto. O local escolhido, encerrado em definitivo nos finais da década passada, foi a casa secular editorial de muitas obras levadas ao prelo nesta cidade. O espaço contém essa carga, ainda cheira a tipos de chumbo, sabe a literatura, ecoa a maquinaria de impressão e vêm-se restos de atividade editorial pelas colunas de madeira que sustentam o varandim que orna a nave principal.
No palco lado a lado esperam uma guitarra pedal steel, e uma mesa com um par de saxofones e entre eles um tárogató, luz ténue e em passo assertivo sobem ao palco Leigh e Brötzmann para se ocuparem dos seus instrumentos e da plateia. Rompem o silêncio as cordas de Leigh e o tapete sonoro está irremediavelmente estabelecido. São as cordas tangidas pela mão direita, subjugadas à pressão pela barra de metal da mão esquerda, que emanam as notas tonais às que responde a palheta vibrante do sopro vital do saxofone alto para iniciar e ressoam as janelas e estrutura da antiga sala. Soa a um ambiente distópico, proporcionado pelas atmosferas que se espraiam das cordas entrelaçadas pelas notas ora vorazes ora melódicas dos sopros inebriantes. E a cada avanço sonoro sobressai uma nota tonal das cordas que depois de fluidos livres encontra o som das palhetas num fraseado bucólico e melodioso. Dentro de um jazz sem amarras seja talvez esta até a pauta a que possam estes dois magos estar unicamente a obedecer. E Brötzmann vai ao bolso, para tornar ainda mais acutilante o som da palheta, faz da navalha o agente aguçador da sua sonoridade e a lâmina desliza uma e outra vez a afeiçoada lâmina de cana. Viria a fazê-lo outras tantas vezes ao longo da sua prestação sonora, como quem procura insatisfeito sempre algo melhor. Leigh prossegue, compenetrada na horizontalidade atmosférica das suas cordas e é Brötzmann que lhe segue o caminho, este trilho é já nesta altura seguido por tantos de nós naquela sala. Somos tantos, muitos, todos talvez a seguir os passos do duo que leva a candeia acesa. Em redor uma devastação sobressai ao passar daquele cortejo sonoro, é o canto de um passado entre escombros de emoções que emanam dali. É o momento de o saxofone tenor substituir o alto no sopro instintivo de Brötzmann. Com ele, instrumento e instrumentista, adensam-se os fraseados quentes e a expressão do que se vê fica mais notória, são despojos... e seguimos, caminhando. Os recorrentes intervalos melódicos do sopro amparam confortavelmente os desequilíbrios decorrente de certa intensidade. Seria a vez da voz de Brötzmann se fazer ouvir pela palheta do táragató, e com ele uma invariável transposição para um tempo mais remoto, mas ainda assim dominado por despojos na paisagem. Leigh desprovida do trabalho adensado dos pedais retira das cordas uma maior liquidez e com isso mostra pontos de luz desde a suas mãos. Brötzmann deixa tomar a dianteira a solo, para depois invertem os papeis de liderança sonora mais adiante. Em momento algum perdem o trilho e fazem-nos chegar ao final da sua prestação. Foi a altura de agradecer, e o que receberam de nós chegou para voltarem a subir ao palco de inusitado lugar. Voltamos a receber, depois do dia anterior em separado, estes dois músicos a demonstrar que um mais um pode bem ser igual a uma multidão.
Para trás, em redor e aos nossos pés, ficaram os despojos de uma outrora sala editorial, os trilhos sobre despojos de algo mais que aquilo. À saída encontrámos somente o presente.