23.º Angrajazz - Festival Internacional de Jazz de Angra do Heroísmo
Crónicas da terra vicejante e pampinosa
Aconteceu entre os dias 6 e 8 de outubro a 23.ª edição do Angrajazz - Festival Internacional de Jazz de Angra do Heroísmo, cujo palco é a sempre deslumbrante ilha Terceira, nos Açores. Triunfaram a jovem cantora Samara Joy, o Pedro Moreira Sax Ensemble e o quinteto do baterista Joe Dyson, oriundo de Nova Orleães. A jazz.pt conta-lhe tudo.
Logo que avistamos a extensa faixa cinzenta rasgando o verde da paisagem, sentimos que estamos prestes a entrar numa dimensão diferente, em que espaço e tempo desafiam mapas e relógios. Apetece revisitar as palavras de Raul Brandão em “As Ilhas Desconhecidas”, tão clarividentes hoje como há quase noventa anos:
«Sinto que me invade o torpor açoriano, e dizem-me que quando vem o tempo de o incenso dar flor, toda a ilha fica tão perfumada que não se pode dormir. Ouve-se um gemido de volúpia (são os gérmenes que se entreabrem) e o ar morno é uma carícia de pele de encontro à nossa pele e que pesa sobre o peito como um bloco.»
Há uma renovada sensação de mistério que nos invade ao chegar à Terceira: a arquitetura característica, os muretes de pedra vulcânica a delimitarem as propriedades, o nevoeiro nos picos, as quatro estações do ano a sucederem-se num só dia. A imponente cidade de Angra do Heroísmo domina a baía, demandada pelos navios que cruzavam o Atlântico em busca de refúgio, quer dos mares alterosos quer de corsários e piratas que enxameavam essas águas mirando riqueza fácil. Outros propósitos são porém os desta jornada. No caminho entre o aeroporto (será agora a Base das Lajes – local para infame cimeira – um obstáculo ao desenvolvimento da ilha?) e a cidade, cuja parte central está muito justamente classificada como património mundial da Humanidade, lembrámos António Rubio (crítico e divulgador de jazz) e Fernando Gomes (afinador de pianos) com quem no passado, ali mesmo, partilhámos tantas conversas. A reportagem que está a ler é dedicada à sua memória.
Desde 1999 que é este o palco do Angrajazz – Festival Internacional de Jazz de Angra do Heroísmo, organizado pela Associação Cultural Angrajazz, o mais prestigiado evento açoriano do género e um dos mais consolidados no panorama nacional. Os concertos principais desta edição, a 23.ª, aconteceram entre 6 e 8 de outubro no Centro Cultural e de Congressos da cidade, erigido a partir da antiga praça de touros, sinal de evolução civilizacional que é de assinalar e replicar. O programa constou – como é hábito – de concertos duplos, com o primeiro a ter início às 21h30 e o segundo às 23h30. Mas desde o dia 30 de setembro que se realizou toda uma programação complementar, através da iniciativa Jazz na Rua, em vários locais da cidade, que incluiu concertos, jam sessions, ações de divulgação para alunos das escolas e ação de formação para músicos das filarmónicas locais. A jazz.pt assistiu, ao final da tarde de quinta-feira, dia 6, na Biblioteca Luís da Silva Ribeiro, à apresentação de um quarteto formado por Ricardo Toscano (saxofone alto), Francisco Andrade (saxofone tenor) – em substituição do inicialmente anunciado Júnior Maceió, impossibilitado devido a um acidente – Mário Franco (contrabaixo) e Luís Candeias (bateria) que se entregaram com conhecimento e alma a clássicos do bebop.
À noite, as honras de abertura do festival couberam, como há muito é da praxe, à Orquestra Angrajazz, big band fundada em 2002 (é a mais longeva orquestra amadora de jazz do país) e que se constitui como o projeto de formação por excelência da Associação. Dirigida musicalmente (desde o início) pelos maestros Pedro Moreira e Claus Nymark, a Orquestra mergulhou este ano no vasto manancial do hard-bop, mutação do bebop incorporando elementos de blues, gospel e rhythm’n’blues, que conheceu o zénite nos anos 50 e 60 do século XX. Apesar de as peças estarem associadas a formações de dimensão mais reduzida (geralmente trios, quintetos ou sextetos), escutaram-se escorreitos arranjos para orquestra de originais de Benny Golson (“Killer Joe”, “Along Came Betty” – com direito a solos de Moreira e Nymark – e “Whisper Not”), Bobby Timmons (“Dat Dere”, “Moanin’”), Sonny Rollins (“Doxy”), Lee Morgan (“The Sidewinder”), Dexter Gordon (“Cheese Cake”) ou Miles Davis (“Bye Bye Blackbird”, velho standard com música de Ray Henderson). Apesar de a margem de progressão da formação ser de alguma forma assintótica, e do muito já alcançado, nunca é demais realçar a perseverança e a entrega destes músicos que fazem das limitações inerentes à insularidade um estímulo para melhorar. Um dos indicadores que demonstram esse progresso é o crescente número de solistas; contaram-se pelos dedos de uma só mão os músicos da Orquestra que não solaram. Um trabalho sério e continuado cujos resultados estão à vista.
No segundo concerto da noite apresentou-se o quinteto liderado pelo baterista Joe Dyson, músico cuja abordagem surge na esteira de nomes históricos de Nova Orleães (é protegido de Donald Harrison), a sua cidade natal e berço histórico do jazz. Pela primeira vez na Europa com uma formação por si liderada, Dyson focou-se no único registo que editou até ao momento em nome próprio, “Look Within”, de 2021 – apesar de o seu nome integrar a ficha técnica de mais de três dezenas de álbuns. O músico transporta consigo todo um legado religioso (o pai é o reverendo J. C. Dyson) e musical, desenvolvendo desde cedo uma abordagem intuitiva, imersa na espiritualidade da rica cena local (por esta razão apelida o seu processo de “retro future”). Nas composições que o quinteto apresentou foi geralmente o baterista a ter a primeira palavra, lançando a melodia exposta pela frente de sopros, em que militam o trompetista Stephen Lands, senhor de ataque tão afiado quão doce, e o saxofonista tenor Stephen Gladney, que exibiu a amplitude dos seus predicados logo nas primeiras peças, “Fleeting Fate” e “Pious Walk”; mostraram especial articulação, tanto nos uníssonos de exposições e reexposições, quer na alternância dos solos. À terceira peça chegou a surpresa da noite, com o convite ao saxofonista alto Ricardo Toscano (a quem não foram poupados encómios) – que escutara Dyson pela primeira vez em Nova Iorque, em 2015, voltando a encontrar-se agora –, para expandir a formação para sexteto em “Naysayers”. Sem conhecer a composição, o músico português posicionou-se bem, ainda por mais numa parte para tenor. O contrabaixista Barry Stephenson – que com a sua musicalidade possante é elemento pivotal na geometria do grupo – introduziu a pungente balada “Lost Trails for the Infidel”. O pianista hondurenho Oscar Rossignoli aporta harmonias aveludadas que tanto marcam os tempos lentos como momentos mais agitados (“Forward”). “Great Spirit” teve como dedicatário Nicholas Payton, grande trompetista e conterrâneo de Dyson.
A segunda noite do Angrajazz arrancou com o Pedro Moreira Sax Ensemble, decateto que nos ofereceu um disco fabuloso em 2021, “Two Maybe More”. A música que a formação apresentou resultou de um processo de reescrita, adaptação e expansão para este inusitado xadrez instrumental (oito saxofones mais contrabaixo e bateria) da música original que Moreira escreveu para o espetáculo de dança contemporânea de Sofia Dias, Vítor Roriz e Marco Martins – uma encomenda da Fundação Calouste Gulbenkian – que subiu ao palco do Teatro Maria Matos em 2014. O saxofonista e compositor, em palavras introdutórias, aludiu à natureza “geométrica” desta música, que radica, desde logo, na disposição, em espelho, dos dez músicos em palco, com um representante dos quatro membros da família do saxofone de cada lado do palco (Bernardo Tinoco no soprano, Ricardo Toscano no alto, Pedro Moreira no tenor e Francisco Andrade no barítono, do lado esquerdo; Tomás Marques, Daniel Sousa, Mateja Dolsak e João Capinha, pela mesma ordem instrumental, do lado direito), e a secção rítmica ao centro – Mário Franco (contrabaixo) e Luís Candeias (bateria). Moreira prossegue um modus operandi de cariz ellingtoniano, tirando partido das características particulares de cada músico e desafiando barreiras estilísticas – em que alguns perseveram –, equilibrando uma componente escrita muito rigorosa com as manobras exploratórias características da improvisação. A função iniciou-se com o rufar quase impercetível de bateria que lança “Stairway to the Stars”, peça de densidade crescente que contou com um bom solo de Daniel Sousa no saxofone alto. Seguiu-se a belíssima construção sonora que é “Lado”, introduzida pelas ruminações extraordinárias do saxofone barítono de Francisco Andrade, que encontraram eco na intervenção de João Capinha, primeiro a solo e depois num diálogo entre ambos. Do arranjo vívido de “Giggly Giggling” brotaram um solo de Tomás Marques e uma declaração senhorial do líder, acolitado apenas por Franco e Candeias. (De assinalar a forma como se articulam e complementam a sobriedade “clássica” do contrabaixista com a relojoaria rítmica hiperdetalhada do baterista.) A atmosfera sombria de “In Verso” e a melodia ampla de “Giggly” (com Dolsak na linha da frente) fixaram memórias, mas o melhor ainda estava para chegar; primeiro na monumental peça que é “Como a Poesia”, com um solo soberbo de Toscano, e “Oh Cat”, onde Franco esteve portentoso a alimentar o groove e Tinoco e Candeias a brilharem nas respetivas intervenções. Um concerto para recordar.
Seguiu-se Samara Joy, norte-americana que do alto dos seus 22 anos de idade não deixou pedra sobre pedra com os seus impressionantes predicados vocais. Joy – raras vezes um apelido soou tão adequado – insere-se numa longa tradição de cantoras de jazz, que avisadamente não mimetiza, antes interpela e expande, com fluidez e graça, tornando todo esse legado também seu. Trouxe na bagagem os seus dois discos – a estreia homónima, de 2021, e “Linger Awhile”, já deste ano, na Verve, selo de tantos inescapáveis discos de jazz vocal. Veio acompanhada por três músicos de inatacável competência técnica (com destaque para o pianista Vincent Bourgeyx, a que se juntaram o contrabaixista Mathias Alamane e o baterista Malte Arndal), que deixaram os holofotes para quem verdadeiramente os merece. Exibindo (na aceção positiva) uma voz tão naturalmente potente como maleável e dona de uma afinação prodigiosa, arrancou com “This Is The Moment” e logo ao segundo tema começou a prestar tributo a algumas das cantoras que mais a influenciaram ao longo do seu (ainda curto) percurso: Sarah Vaughan (“Can’t Get Out of This Mood”), a enorme Betty Carter (na reinvenção de “Tight”), Carmen McRae (“If You’d Stay The Way I Dream”) e Abbey Lincoln (que escreveu a letra para “Retribution”). Mas nem só de mulheres se fizeram as homenagens: Thelonious Monk foi revisitado num medley que incluiu a obscura “San Francisco Holiday” (aqui com letra de Joy, transformada e rebatizada “Don’t Worry Now”) e uma apropriação aventurosa de “‘Round Midnight”; à herança do trompetista Fats Navarro foi respigar uma versão especial de “Nostalgia (The Day I Knew)”. Do disco novo escutaram-se ainda a peça que lhe dá título e a sumptuosa balada “Guess Who I Saw Today”. Esteve magnífica em “Sweet Pumpkin” (do pianista Ronnell Bright, gravada inicialmente por Bill Henderson em 1959) e com um blues fez as delícias do público, convocado a acompanhá-la. A encerrar, deu-nos uma sentida leitura de “Stardust”, clássico de Hoagy Carmichael quase a completar um século. Com uma abordagem de certa forma menos “intelectualizada” do que a de uma Cécile McLorin Salvant (com quem, contudo, se poderão estabelecer algumas similitudes), Samara Joy é uma verdadeira força da natureza e dela vamos ouvir falar (muito) no futuro.
A derradeira noite do festival começou com o quinteto liderado pelos irmãos Belmondo, Lionel, saxofonista, e Stéphane, trompetista, figuras centrais do jazz gaulês das últimas décadas. A aparição da formação centrou-se no seu mais recente registo, “Brotherhood”, de 2021 (o quinto álbum que o grupo gravou na sua carreira) e começou com a bela melodia de “Yusef´s Tree” – tributo ao mestre com quem trabalharam, Yusef Lateef –, lançado por Stéphane a retirar sons de um búzio a que se juntou o irmão na flauta. Um solo flamejante de Lionel, já no tenor (sob o signo de Coltrane), pareceu prejudicado por uma deficiente colocação do microfone, o que o fez ficar baixo na mistura, talvez por estar virado para o baterista Marc Miralta, o verdadeiro dínamo da formação, com as suas erupções rítmicas certamente registadas pelos sismógrafos na área. Entretanto, Stéphane tirava fotografias com o seu telefone esperto. (Stéphane confessou que não tocava com Miralta há 20 anos, quando ambos se cruzaram em Nova Iorque.) O contrabaixista Sylvain Romano também se entregou a um belo solo, que fez lembrar a musicalidade de Charlie Haden. Em “Prétexte” trompete e saxofone alternaram solos, ora mais explosivos ora mais tranquilos, embora de interesse desigual. O pianista Laurent Fickelson entabulou aqui uma das suas melhores intervenções da noite e Miralta um solo (felizmente) de uma pujança consequente. O vincado lirismo de “Song for Dad” foi introduzido por Fickelson, que atapetou caminho para o fliscorne melodicamente límpido de Stéphane Belmondo (devedor de Chet Baker), a que se veio juntar, por instantes, a flauta do irmão. “Wayne’s Words”, tema saído da pena de Lionel dedicado a Wayne Shorter, fundou-se na melodia exposta em uníssono pela dupla de sopros, de que emanou um solo do saxofonista que enfermou do mesmo mal aludido atrás. Novo solo do pianista ganhou tração alimentado pela energia do baterista. O contrabaixista acabou por ser o elemento mais interessante da noite, muitas vezes atraindo as atenções ao assumir papel central em tudo o que ia acontecendo. Um concerto morno que apenas a espaços passou a fronteira da mediania.
A fechar esta edição do Angrajazz, o concerto de Guillermo Klein y Los Guachos, formação recheada de figuras gradas do jazz do nosso tempo, liderada pelo pianista, compositor e arranjador argentino. O coletivo (que desabrochou a partir dos Big Van) apresentou uma música em que rigor e disciplina são palavras de ordem, trabalhando um repertório que radica nas múltiplas tradições da América hispânica, clássicos e derivados. Dos arranjos rígidos emanaram solos de valia, que trouxeram alguma liberdade, embora em doses racionadas. Na primeira das peças apresentadas foi Chris Cheek quem, no saxofone soprando, deu um passo em frente. O legado de Carlos Gardel foi revisitado em “Melodía de Arrabal”, tango de 1932, com o trompete açucarado de Taylor Haskins em destaque (a letra de Alfredo Le Pera e Mario Battistella, se escutada, rezaria assim: «Viejo, barrio/Perdoná si al evocarte/Se me pianta un lagrimón/Que al rodar en tu empedrao/Es un beso prolongao/Que te da mi corazón»). Da toada lamentosa de “Burrito Hill” saíram solos de Sandro Tomasi no trombone e de Jeff Ballard na bateria, este mais discreto do que noutros contextos, mas sempre eficaz. A vibrante “Miula” contou com solos de Diego Urcola no trompete (assinalável projeção sonora, sem o auxílio de microfone) e de Fernando Huergo no baixo elétrico. Um dos pináculos da noite aconteceu no arranjo luxuriante de “Artesano”, um rhythm changes, com destaque para a intervenção de Miguel Zenón na flauta. Notas ainda para o balanço vibrante de “Parallel”, o solo esfuziante de Zenón em “Chucaro” e para a ambiência mais etérea de “Cabeza de Yesu”. A fechar, “Child’s Play” de Jeff Ballard (está originalmente no álbum “Fly”, de 2009) e “Snake”, o primeiro tema e espécie de emblema do grupo (que tocam sempre nos concertos), arranjo compacto de que avultou novo solo de McHenry.
A edição de 2023 do Angrajazz já tem data marcada: de 4 a 7 de outubro, na ilha «vicejante e pampinosa», como um dia a descreveu Almeida Garrett.
A jazz.pt viajou a convite da Associação Cultural Angrajazz.