Jazz im Goethe-Garten 2022
Weissbier und vai-se ouvir
O festival JiGG - Jazz im Goethe-Garten, promovido pelo Goethe Institut e com programação de Rui Neves, regressou este ano e apresentou cinco concertos, cinco propostas de jazz europeu contemporâneo, entre os dias 6 e 15 de julho. A jazz.pt foi acompanhar o festival lisboeta.
Como tem sido tradição do JiGG, o ciclo de concertos abre sempre com uma banda de músicos portugueses e fecha com um grupo alemão. Este ano o grupo português escolhido foi o trio Garuda, formação que junta o saxofonista Hugo Costa (português radicado em Roterdão) com o contrabaixista Hernâni Faustino e o baterista João Valinho. Nas palavras de apresentação do grupo, Julia Klein (a incansável organizadora do festival) contava que “Garuda” na mitologia hindu significa pássaro de fogo, convidando os pássaros do jardim a participarem no concerto. No jardim do instituto alemão o trio luso explorou uma música assente na pura improvisação livre, com o saxofone a puxar na frente, cuspindo labaredas, e uma secção rítmica a responder energicamente. Tratou-se de um free pós-coltraneano, onde cabem as típicas estratégias, interações, crescendos, explosões enérgicas. O saxofone alto de Costa ia elaborando um discurso inventivo, Hernâni e Valinho interagiam com pujança (e acrescentando alguns detalhes pelo meio). No arranque do JiGG o trio luso não apostou na subtileza, revelou uma música livre com muita alma e energia. Os adeptos do free terão saído satisfeitos; alguma parte do público ou quem desconheça o disco do grupo (recenseado por António Branco aqui), poderá ter saído em choque. (NC)
Ao segundo dia, quinta-feira, 7 de julho, chegaram da Suíça os Schnellertollermeier, trio de reúne Andi Schnellmann no baixo elétrico, Manuel Troller na guitarra elétrica e David Meier na percussão. Já com um longo percurso (editaram o primeiro registo em 2010), têm estado ligados desde 2015 à editora Cuneiform. Contudo, a sua música não é propriamente jazz, aproxima-se de um rock experimental. No arranque da atuação no jardim do Goethe, o trio começou desde logo por se assumir como banda rock instrumental, apresentando temas com estruturas rígidas. As composições eram interpretadas com rigor, mas a música, demasiado matemática, começou rapidamente a soar desinteressante - por vezes minimal, outras vezes repetitiva, ouviam-se poucas ideias. Contudo, em alguns momentos, a música do trio revelava uma capacidade hipnótica, imersiva. À medida que o concerto avançou, o trio foi explorando outras ideias e na parte final foram explorados temas que desembocavam em explosões sónicas, abusando da distorção, à lá Sonic Youth. Não sendo uma abordagem completamente original, o final trouxe algum calor a uma atuação que até então se tinha sentido muito fria e mecânica. (NC)
Pausados durante uma semana, voltámos ao Campo Mártires da Pátria para um quarteto de clarinetes austríaco, dois deles clarinetes baixo. Os Woody Black 4. Como habitualmente, a vinda deste grupo contou com o apoio da embaixada do seu país.
Já sabemos que um quarteto de um só instrumento pode funcionar bem (ex: World Saxophone Quartet) e por isso a curiosidade era grande, até porque o sopro amadeirado parecia enquadrar-se na perfeição naquele jardim. E de facto assim é: encantados no primeiro tema com a instrumentação. Mas veio o segundo e parecia igual ao primeiro e assim sucessivamente. A escrita do quarteto é pouco interessante, apoiando-se sempre no mesmo tipo de ideias, pelo que, passado pouco tempo, instalou-se o tédio.
Os quatro austríacos do Woody Black 4 (o nome já dá pistas...) apresentaram composições inspiradas por temas bucólicos (passarinhos, montanhas) que se traduziam musicalmente na divisão do quarteto em dois duos que usavam o uníssono para tocar canções num esquema polifónico: um dos duos seguia a dupla que fazia a voz principal ou, floreava-a. As valsas e leids austríacos suavemente tocados não só não tinham soluções instrumentais como eram repetitivas.
Nada que a magnífica prestação do bar, com weissbier, weisswurst e kartoffelsalat não minorasse. O palato e o jardim compensaram o dissabor da audição.
Ao quarto concerto, segundo da última semana, era a vez da Itália mostrar os seus trunfos. Chegámos curiosos pois a cultura italiana tem pouca divulgação internacional e sabemos que é riquíssima. Através da ECM e da Clean Feed, por exemplo, temos tido acesso a grupos de jazz italianos interessantíssimos.
Não foi o caso deste trio liderado pelo famoso saxofonista Francesco Bearzatti, que tem uma longa carreira como sideman mas também a encabeçar os seus grupos. Veio ao Goethe com o não menos importante pianista francês Bruno Angelini, que já tocou com Kenny Wheeler, Ran Blake, Marc Ducret e muitos outros músicos importantes da cena francesa. Na bateria sentou-se o também francês Nicolas Larmignat. Os Weird Box sugeriam estranheza, o que não aconteceu.
Na apresentação prometeram-nos os ritmos dos subúrbios de Paris e a eletrónica “underground” mas o plácito ficou por cumprir. Uma eletrónica vulgar, ritmos perto do techno antigo relembraram o pouco interesse do dia anterior e o recurso à gastronomia tornou-se, novamente imperioso. São três bons músicos, mas o trio não tem novidade, nem na instrumentação, nem na composição, nem sequer nos solos que ocorrem dentro que se esperava. A mistura entre os rabiscos eletrónicos e baixos fortes e repetitivos no sintetizador, breakbeats deslizantes, (usados mais para o ritmo do que para a cor) na bateria - que mimetiza a eletrónica mas tem um toque humano para que nunca soe maquinal (o que não é novo, Aphex Twin fazia-o com as máquinas também) - e o saxofone a solar, foi melhor que o dia anterior mas não emocionou.
E o evento fechou com outro trio. Já o tínhamos ouvido em disco (crítica aqui) e ao vivo e sabíamos que este é um grupo fantástico do contrabaixista português a residir em Berlim Carlos Bica: "o homem que percebe de trios".
Sem bateria cabe ao DJ introduzir sons, ritmos, ideias que obrigam o saxofone e o contrabaixo a reagir. Illvibe usa os gira-discos seguindo a tradição inventada por Christian Marclay (turntablism). É um DJ invulgar, que não se limita a adicionar texturas e a colorir o som acústico, mas é um polo disruptor da organização. É um caso raro de uso dos gira-discos no panorama do jazz atual (da música atual). Estranhamente as experiências seminais de Marclay não tiveram muitos seguidores; talvez porque o música americano tenha elevado tanto a fasquia e o virtuosismo no uso dos gira-discos (usava quatro simultaneamente) que seja percecionado como inalcançável ou até como uma linguagem que foi inventada e ficou fechada em si.
A verdade é que DJ Illvibe (Vincent von Schlippenbach, filho de Alexander von Schlippenbach) tem um ouvido culto, uma forma de tocar virtuosa, e uma presença na música muito interessante. Daniel Erdmann é um saxofonista como há poucos na Europa, poderíamos dizer que na melhor tradição do frontman americano: forte, impositivo, muito fluente, atira-se para a frente com linhas melódicas incríveis e bem definidas. Bica tem também uma linguagem singular e quando toca com o arco é único.
Contou-nos (com alguma emoção) que quando sonhava ser músico, muito novo, veio ao Goethe tocar... à campainha. Pediu apoio para poder estudar na Alemanha. A coisa aconteceu e agora regressava, novamente para tocar, no jardim, como músico.
Foi uma tarde mágica, com música excelente, como é raro ouvir. Tudo encaixou no local certo, os imprevistos – que são a alma do jazz – ocorreram para beneficiar a música, num fecho de festival mágico. A música singular, única, mas ao mesmo tempo cativante, suave. Bica retribuiu com juros o que o Goethe fez pela sua vontade e aspiração. Tão bom que não se percebe como é que é legal.
O público sentiu-o, aplaudiu de pé e o JIGG fechou em alta.