31.º Jazz no Parque, 19 de Julho de 2022

31.º Jazz no Parque

Para um mundo sem fronteiras

texto: António Branco / fotografia: André Delhaye

A 31.ª edição do Jazz no Parque, ciclo organizado pela Fundação de Serralves e com programação de Rodrigo Amado, terminou no passado sábado, 16 de julho, com concertos de Sara Serpa, que apresentou o notável projeto “Intimate Strangers”, e do trio formado por Ricardo Toscano, João Barradas e João Pereira. A jazz.pt relata o que testemunhou no Porto.

Terminou no passado sábado, 16 de julho, o 31.º Jazz no Parque, evento que nesta edição conheceu importantes mudanças, com a programação a ser assumida pelo saxofonista, fotógrafo e crítico de jazz Rodrigo Amado, que assim sucede a Rui Eduardo Paes, curador entre 2014 e 2021, e António Curvelo, o primeiro responsável pela programação do ciclo portuense.

Sendo certo que Amado deu sequência a uma linha de programação atenta ao jazz contemporâneo, apostando em músicos que são um paradigma em termos de visão e independência artísticas, com forte componente de improvisação e permeáveis a outras músicas, a estrutura do ciclo de Serralves mostrou novidades, com cinco concertos: três no Ténis um na Casa de Serralves e outro no Auditório. Reitere-se um facto com imenso significado: dos cinco concertos programados na edição deste ano, três são de projetos com mulheres ao leme.

No dia 16 de julho, numa tarde esplêndida, a primeira atuação coube à cantora e compositora Sara Serpa, que deu a conhecer o projeto “Intimate Strangers” no Auditório de Serralves. Serpa tem-se afirmado como uma das mais importantes cantoras da atualidade, à escala global, seja a solo, em duo, à frente do seu sexteto ou em qualquer outra configuração, com uma abordagem vocal muito particular, recorrendo ou não a palavras, em inglês ou português (desta feita apenas na língua de Shakespeare), explorando a sua voz cristalina como um instrumento pleno ao seu dispor e sempre pronta a surpreender. “Intimate Strangers” é uma performance musical interdisciplinar, que alia palavras, música, field recordings, desenho de luz e fotografia.

Acompanhada pelas também cantoras Sofía Rei e Aubrey Johnson, pela diseuse Erin Pettigrew, pelo pianista Fabian Almazan e pelo manipulador de eletrónicas Qasim Naqvi, a portuguesa, radicada em Nova Iorque desde 2008, deu a conhecer um projeto que parte das palavras do escritor nigeriano Emmanuel Iduma (n. 1989) e que estreou em 2018 como uma encomenda de John Zorn no National Sawdust. Partindo da Nigéria, o autor dá testemunho no livro “A Stranger´s Pose” da sua viagem ao longo da costa, entre Lagos e Sarajevo, refletindo sobre o mar, o deserto ou as fronteiras naturais e artificiais que lhe surgem no caminho. Palavras que ecoam tristeza e saudade, amor e perda, horror da guerra e sofrimento, mas também esperança e humanismo, no que Iduma chama de «um atlas de um mundo sem fronteiras».

Minutos antes da entrada em palco dos músicos começaram a ser projetadas frases e a escutaram-se sons que se percebia serem oriundos de paragens africanas. Reminiscências das viagens do escritor, de passagem por cidades como Lomé, Cidade do Benim, N´Djamena, Bamako. «A única coisa que um homem precisa é de uma mala e de uma alma.» A narradora (Pettigrew) representou Iduma, e Serpa, Rei e Johnson são também contadoras de histórias e espíritos que deambulam ao longo das peças, entrelaçando as suas vozes de modo fascinante, em vários registos meticulosamente geridos, por meio de uníssonos ou contrapontos, conjunções e disjunções, paradas e respostas, num permanente diálogo entre palavra dita e palavra cantada. «No deserto, a morte não significa nada.» Muito interessante o aporte orgânico do piano em contraste com as camadas eletrónicas injetadas por Naqvi, muitas vezes disruptivas. Sara Serpa ofereceu-nos no Porto momentos mágicos e intemporais, um grito de alerta, mas também do otimismo de que precisamos como de pão para a boca. «Para ti, devo tornar-me uma árvore. Cada árvore é o oposto de vaguear.»

Vagueámos então entre árvores até ao Ténis, onde se apresentou um trio constituído por nomes que apesar de ainda jovens são figuras destacados dos últimos anos no jazz nacional, virtuosos cujos percursos extravasam os limiares difusos do género: o saxofonista alto Ricardo Toscano, o acordeonista João Barradas e o baterista João Pereira. Os três músicos – na origem um duo de Toscano e Barradas, a que se juntou Pereira, membro do quarteto do saxofonista – são notáveis improvisadores, sempre prontos a arriscar. E é nesta geometria aberta que mais brilham, quer individualmente, quer nos jogos interativos com os demais, em duo ou trio.

Os primeiros sons que se escutaram pertenceram ao baterista, que solou para introduzir uma versão especial de “Cherryco” – tema original do trompetista Don Cherry, com John Coltrane, Charlie Haden e Ed Blackwell, gravado em 1960 – , que aqui ganhou asas com esta instrumentação pouco (ou nada) habitual. Dos uníssonos entre Toscano e Barradas brotaram intervenções individuais, ainda em modo de estudo mútuo, sempre com Pereira a alimentar a fogueira rítmica. Seguiram-se duas peças da autoria do baterista, com destaque para “Joker”, com o trio a exponenciar os níveis de escuta e comunicação. Barradas inseriu passagens oníricas e outras de maior solenidade (o seu acordeão pluridimensional quase soou, a espaços, como um órgão de tubos). Toscano tergiversou dos jogos bop e atirou-se para fora de pé. “The Magic Garden”, saído da pena do saxofonista, conheceu uma interpretação luminosa e “Well, You Needn´t”, emblema de Mestre Monk, foi pleno de swing com Pereira nas escovas, um fulgurante Toscano e com Barradas a fornecer a argamassa que une estes tijolos. Para o final, “Letter to Mother´s Immersion”, tema resgatado ao álbum de estreia do acordeonista na condição de líder, “Directions”, de 2017, e escrito sob o signo de certo folclorismo português, processado e guindado a uma nova dimensão, com a sua melodia perfumada.

A contagem decrescente para a edição de 2023 está em marcha. Não esperamos menos do que o melhor.

A jazz.pt viajou a convite do Jazz no Parque – Fundação de Serralves.

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Duke Ellington’s Songbook

Sunset Jazz - Café 02 - Vila Nova de Santo André

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Cantaloupe Café - Olhão

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BOTA - Lisboa

26 Março

Carlos Veiga, Maria Viana e Artur Freitas

Cascais Jazz Club - Cascais

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