Nick Mason´s Saucerful of Secrets, 15 de Julho de 2022

Nick Mason´s Saucerful of Secrets

Eco de um tempo distante

texto: António Branco

O projeto Nick Mason´s Saucerful of Secrets, liderado pelo baterista dos Pink Floyd, revisita a fase inicial desta banda rock muito influenciada, nesse período, tanto pelos blues de Bo Diddley como pela improvisação radical de Keith Rowe e dos AMM. O grupo encerrou em Lisboa uma etapa da sua “The Echoes Tour”. Não é jazz, mas a jazz.pt esteve lá.

Longa se tornou a espera. Os constrangimentos pandémicos motivaram o adiamento por mais de um ano das duas datas nacionais (Porto e Lisboa) da digressão dos Nick Mason´s Saucerful of Secrets, projeto que pretende celebrar a parte inicial da obra dos Pink Floyd, uma das mais inovadoras bandas da história do rock, sob uma luz diferente. A baliza temporal do repertório escolhido abre com o primeiro single do grupo, “Arnold Layne” (gravado e lançado no início de 1967) e fecha, exclusive, com “The Dark Side of the Moon”, editado em 1973, cujas gravações se iniciaram em junho do ano anterior, fez agora meio século.

Nick Mason, 78 anos, baterista dos Floyd – único membro da banda a tocar em todos os discos e apaixonado curador do seu legado – foi desde sempre influenciado pelo jazz na sua forma de abordar o instrumento. Neste campo, tocou com a pianista e compositora Carla Bley (autora de todas as peças do álbum a solo “Fictitious Sports”, de 1981) e o trompetista Manfred Mantler – “Something There” (1983), “Live” (1987) ou “Concertos” (2008) –, o baixista Steve Swallow, o tubista Howard Johnson, entre outros músicos de jazz. Mason sempre verbalizou a sua admiração por Thelonious Monk e Art Blakey. Entre os seus discos favoritos estão “The Thelonious Monk Orchestra at Town Hall” e “Jack Johnson”, de Miles Davis.

Não se fez difícil quando Lee Harris (antigo guitarrista dos Blockheads), após assistir em França, em 2017, a dois concertos da digressão de David Gilmour, com o baixista Guy Pratt, lhe propôs revisitar uma parte do catálogo do grupo porventura menos conhecida do público, embora mais propensa a explorações sónicas. A ideia não passava certamente pela enésima interpretação de “Comfortably Numb” ou “Another Brick in the Wall Part2”, isso já Gilmour e Roger Waters fazem nas suas superproduções globais. Pratt não acreditou inicialmente que a ideia vingasse, mas Mason mostrou-se agradado com a possibilidade de voltar a tocar aquele material, algum dele até pouco ou nada tocado ao vivo pelos próprios Floyd. Aos três juntaram-se mais tarde o teclista Dom Beken (que tinha tocado no passado com Richard Wright) e o cantor e guitarrista Gary Kemp, principal força criativa dos neorromânticos Spandau Ballet.

O processo passou por mergulhar no material, decompô-lo e distribuir as partes pelos dois guitarristas. As personalidades criativas de todos os músicos insuflaram nova vida às velhas canções, acrescentando-lhes toda uma nova dimensão, sem que o travo original se perca. O primeiro concerto do grupo foi em Dingwalls, a norte de Londres, a 20 de maio de 2018, e o grupo já se encontra documentado em disco em “Live at the Roundhouse”, de 2020, registo do regresso a uma sala histórica, que Mason conhece desde que lá tocou com os Floyd em outubro de 1966 (num cartaz que incluía também os The Soft Machine), durante a festa de lançamento do jornal International Times, espécie de órgão oficial da (contra)cultura psicadélica britânica.

Estes Saucerful of Secrets não pretendem ser mais uma banda de tributo aos Pink Floyd – e há várias, inclusivamente em Portugal –, a tocar até à exaustão os temas mais conhecidos, mimetizando-os nota por nota; a intenção é revisitar criativamente uma das fases mas férteis do grupo, desde o (curto) período que este foi liderado por Syd Barrett (até ao seu colapso mental motivado por consumo excessivo de ácidos, que se somava a uma eventual débil condição mental prévia, a discussão continua) até “Obscured by Clouds”, banda sonora do filme “La Vallée”, de Barbet Schroeder, gravada quando os trabalhos preparatórios de “The Dark Side…” já estavam em marcha.

Note-se que Barrett, inicialmente muito influenciado pelo rock´n´roll ensopado de blues de Bo Diddley, começou a interessar-se pela improvisação total e a atentar no que então faziam Keith Rowe (a utilização nada convencional da guitarra, com a aplicação, por exemplo, de acessórios nas cordas e no corpo do instrumento) e os AMM, sobretudo. Em palco, uma canção de três minutos podia facilmente estender-se por vinte ou mais, em longas deambulações instrumentais improvisadas, acompanhadas por inovadores efeitos luminosos e projeções coloridas. Nunca ninguém tinha experimentado algo assim. A experiência sensorial era total.

A máquina do tempo está agora ligada.

Campo Pequeno com bancadas a meio gás. Noite de 13 de julho – na véspera o grupo havia tocado no Porto –, calor infernal, a última data deste segmento da “Echoes Tour” em solo europeu, périplo iniciado na Irlanda em abril deste ano. O nome da digressão radica num dos temas mais emblemáticos dos Pink Floyd, “Echoes”, meticulosamente engendrado durante a primeira metade de 1971 e que ocupa todo um lado do álbum “Meddle”, editado em novembro desse ano.

Dez minutos antes do início do concerto, uma colagem de vozes e outros sons e imagens de um vulcão constroem uma atmosfera sci-fi. Da escuridão emerge a linha tonitruante de baixo de “One of These Days”, do álbum “Meddle”, que muda de rumo quando Mason, naquele registo distorcido (pré-gravado), diz a célebre frase «One of these days, I'm going to cut you into little pieces.» O baterista, comunicativo e visivelmente bem-disposto, lembrou a sua última vinda a Lisboa com os Pink Floyd em 1994 (Estádio de Alvalade, 22 e 23 de julho): «Lembram-se?». Muito bem. Seguiram-se versões escorreitas de “Arnold Layne” (sobre um indivíduo que roubava roupa íntima feminina dos estendais), com solo de Beken, “Fearless” (onde não faltou o famoso cântico da claque do Liverpool FC, “You'll Never Walk Alone”, canção de Gerry & The Pacemakers), “Obscured by Clouds” e “When You´re In”, ambas de “Obscured by Clouds”.

Mason homenageou Syd Barrett (imagens suas foram projetadas) em “Candy and a Currant Bun” (lado b de “Arnold Layne”, cujo título original era “Let's Roll Another One”, preterido por causa dos problemas que da sua utilização poderiam advir) e “Vegetable Man”, canção que o primeiro líder escreveu acerca de si próprio na altura e nunca concluiu, e que os Floyd nunca gravaram propriamente (era conhecida apenas por colecionadores de bootlegs, tendo sido oficialmente editada apenas na sumptuosa caixa “The Early Years 1965-1972”). À guitarra acústica, Gary Kemp cantou “If” e sua reprise, intercalado com uma bela versão de “Atom Heart Mother”. Richard Wright, teclista dos Floyd falecido em 2008, foi lembrado por Guy Pratt (seu genro), que interpretou o lindíssimo “Remember A Day”. Imagens de chamas (tristemente apropriadas no período que vivemos) introduziram o feérico “Set the Controls for the Heart of the Sun”, com gongo e tudo (Mason não esqueceu Roger Waters).

O segundo set iniciou-se com “Astronomy Domine”, tema que abre “The Piper at the Gates of Dawn”, álbum inaugural da banda, em 1967; Mason, sem apoio de um segundo baterista como mais últimas digressões dos Floyd, mostrou o baterista muito especial que continua a ser, com um feel único, respirado, aberto. A abrasiva “The Nile Song” (de “More”, 1969) deu lugar a “Burning Bridges” e à notável “Childhood´s End”, outras duas de “Obscured by Clouds”, como que resgatando ao esquecimento um álbum subvalorizado por alguns no catálogo floydiano. O sempre bem-humorado “Lucifer Sam” antecedeu o momento por que todos esperavam: a monumental “Echoes”. Aquele misterioso “ping” inicial (que surgiu de modo alegadamente acidental, quando Wright em dado momento montava os seus teclados) foi o ponto de partida para um dos pontos altos da parceria entre Gilmour e Wright (que se estendeu até ao final da vida deste), e que aqui conheceu uma bela versão, com as vozes de Kemp e Pratt a honrarem o original, o guitarrista Lee Harris a criar texturas abstratas e aquele generoso groove alimentado por Mason. «The echo of a distant time / Comes willowing across the sand / And everything is green and submarine.» O anfiteatro vazio de Pompeia veio certamente à memória de todos.

No encore foi a vez de “See Emily Play”, segundo single dos Floyd, em 1967, de uma ótima rendição do sempre etéreo “A Saucerful of Secrets” e, para gáudio do público, “Bike”: «I know a room of musical tunes / Some rhyme, some ching, most of them are clockwork / Let's go into the other room and make them work.» Funcionaram ali mesmo.

Faltou o hino maior da psicadelia cósmica, “Interstellar Overdrive”.

Os abraços trocados entre os músicos no final demonstraram a sensação de missão cumprida com entrega e paixão.

O que se ouviu naquela noite não é música passada ou espécime conservado artificialmente em formol. Sendo produto da sua época, ainda arde, tanto tempo depois.

Agenda

02 Abril

Zé Eduardo Trio

Cantaloupe Café - Olhão

02 Abril

André Matos

Penha sco - Lisboa

06 Abril

Marcelo dos Reis "Flora"

Teatro Municipal de Vila Real / Café Concerto Maus Hábitos - Vila Real

07 Abril

Jam Session hosted by Clara Lacerda

Espaço Porta-Jazz - Porto

08 Abril

Greg Burk Trio

Espaço Porta-Jazz - Porto

08 Abril

Carlos “Zíngaro”, Ulrich Mitzlaff, João Pedro Viegas e Alvaro Rosso

ADAO - Barreiro

12 Abril

Pedro Melo Alves e Violeta Garcia

ZDB - Lisboa

13 Abril

Tabula Sonorum

SMUP - Parede

14 Abril

Apresentação do workshop de Canto Jazz

Teatro Narciso Ferreira - Riba de Ave

14 Abril

Olie Brice e Luís Vicente

Penha sco - Lisboa

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