Jazz no Parque
Jazz na “moderna vila industrial e operária”: uma máquina a precisar de ajustes
A música é boa, mas não é para aquele lugar; o lugar é bom, mas não para aquela música. O Festival de Jazz do Barreiro – Jazz no Parque – voltou, depois de 3 anos de distanciamento musical. Como qualquer coisa nova sem manual de instruções, necessita de ajustes para encontrar a fórmula certa que equilibre várias aspirações. Fomos ouvir e ver, vamos a despacho.
O Festival do Barreiro toca no parque da cidade, um local muito agradável e com todas as condições para receber barreirenses e visitantes (fácil chegar e parcar o carro). Contudo tem uma série de mal-entendidos que, todos juntos, dificultam muito a vida ao espetador. Os concertos, de entrada livre, decorrem num anfiteatro natural no cimo do qual se instalam várias carrinhas de comes e bebes. Nocturno, veraneante, o evento convida a um passeio musical ao jardim. Isto levanta quatro questões a resolver:
1. jazz como música de fundo: o público passeia, conversa, bebe, convive e está no concerto como quem está numa esplanada. Mudei várias vezes de lugar à procura de um spot conversas-free e não consegui. Vi (e tive que ouvir) pessoas que passaram o concerto inteiro de costas para o palco na conversa com amgos.
2. erros de casting: um festival para gente que quer dar à língua não é problemático nem é necessariamente mau, se o programador contratar música que funcione naquele contexto. Ora o que foi feito foi precisamente o contrário: grupos de câmara, música detalhada, violinos, num anfiteatro-bar ao ar livre. Apesar da escolha dos grupos poder ser motivadora para uma visita – em abstrato – é a pior para aquele local e aquele contexto.
3. jazz como pretexto: é muito agradável ir a um concerto, poder fumar um cigarro francês e beber um copo na relva. Poderia até ser evangelizador e convidar novos públicos. Mas feito desta forma parece-me que junta o inútil ao desagradável: não cria públicos porque não vão lá ouvir (nem ouvem) e incomodam quem o quer fazer. O barulho da zona de comes&bebes é imenso, o barulho dos amigos a conversar na relva é permanente, o desconforto é grande, e a música (o jazz neste caso, mas o problema é geral) é percecionada como fundo, uma coisa que não é bem para ouvir, mas para estar ali, “calminha” enquanto se conversa e bebe um gin. Feito desta forma e com esta programação o Jazz no Parque é percepcionado como música de fundo e um pretexto para o negócio da restauração.
4. jazz como desafio lombar: é muito desconfortável assistir a duas horas e meias de concerto (dois concertos por noite), sentado na terra (húmida devido ao atraso na chegada do Verão), sem encosto e sem amortecimento. O Jazz no parque exige ouvintes com prática meditativa ou praticantes de ioga; os outros vão ficar doridos.
DIA 1, Sexta-feira
A inauguração fez-se com dois grupos importantes. Primeiro uma estreia, o trio de Lucian Ban, John Surman e Mat Maneri. Só o nome de John Surman seria suficiente para a viagem, mas este trio prometia.
Propõem-se jazzar as folk songs de Bartók, mais particularmente as da Transilvânia (o título original dado por Bartok foi “danças folclóricas Romenas da Hungria e mais tarde mudou-o dada a movimentação das fronteiras). Bela Barók nasceu na atual Roménia (então território Húngaro) em 1881. A partir de 1905 dedicou-se a recolher e catalogar a música folclórica do seu país. O disco foi editado pela Sunnyside em 2020.
O pianista Lucian Ban, que também cresceu na Transilvania e que, como Bartok, acabou para viajar para Nova Iorque, apresentou as canções e procurou estabelecer uma relação entre o recente período pandémico que vivemos e o destes temas; pareceu um pouco forçado (recorde-se que a “gripe espanhola” começou em 1918 e que estas canções foram escritas em 1915 e orquestradas em 1917). Quanto ao isolamento e as pandemias – a bula é a mesma desde a Idade Média.
Apesar da minha enorme admiração por Surman e o prazer de ouvir o sim do seu clarinete baixo -e até da beleza do som deste trio – a música soa sempre parecida, constante e regular. No ambiente do parque rapidamente se diluiu e deixou instalar a modorra. Música bonita mas apática, pouco emotiva. Pareceu haver pouco espaço para a improvisação ou esta foi tão balizada pela estrutura das canções que passou despercebida.
Depois de um curto intervalo subiu ao mesmo palco o novo quarteto de Marc Copland, com Mark Feldman, Felix Henkelhausen e Fabrice Moreau. Marc Copland é um pianista pensativo, que abre espaços e consegue dar-nos múltiplas perpetivas sobre cada tema. Começaram com um clássico do mestre rumbero Mongo Santamaria. Foi um “Afro Blue” muito diferente que acrescenta uma visão às inúmeras versões feitas depois da que popularizou o tema por John Coltrane. Ouvimos “Spring Song” de John Abercrombie, um tema de Feldman e outro Copland. O encore trouxe um “Greensleeves” lento muito bonito. O contrabaixo de Felix Henkelhausen e a bateria de Fabrice Moreau estiveram, mas não deixaram marcas. Pareceu ser uma secção rítmica funcional.
*(a designação "moderna vila industrial e operária" aparece na sequência da construção do caminho de ferro, iniciado em 1854 e do processo histórico que desencadeou, que transformou uma vila de pescadores e moleiros numa cidade industrial)
Voltamos para o segundo dia, sábado, para os dois concertos da noite. À tarde tinham tocado o coletivo escola de jazz do Barreiro e o quarteto de Miguel Ângelo que foi apresentar a “Dança dos Desastrados”, o terceiro disco do contrabaixista do Norte.
À noite o palco abriu com Julia Hülsmann Quartet e uma formação clássica de piano, sax, baixo e bateria. A pianista gravou com este trio desde 2008 (Marc Muellbauer no contrabaixo e Heinrich Köbberling na bateria) e aumentou o grupo para quarteto com o saxofone tenor de Uli Kempendorff há 10 anos. Ouvimos por isso uma banda rodada e com uma música agradável, simples, melódica e bem tocada. Mais uma vez o som de palco estava tímido e as conversas floresceram.
Só no final do concerto parece ter havido um ajuste do volume para que fosse mais claro, pelo menos para os espectadores que estavam na relva e mais próximo do palco. A pianista não trouxe novidades e esta música pouco expressiva não viveu da melhor maneira naquele contexto. De qualquer modo ouviram-se com prazer as boas canções da compositora de Bona, em especial os dois temas que fecharam o concerto por serem mais rápidos e intensos. O concerto assentou especialmente sobre o último disco “Not far from here”, editado em 2019 pela ECM.
A noite fechou com o trio do guitarrista Kurt Rosenwinkel. Com a eletrificação da guitarra veio um som mais alto e melhores condições de audição.
Rosenwinkel tem um fraseado quase matemático, muito seguro e claro. Usa um som muito trabalhado com um delay irregular e muito processamento. Muito bom o solo de bateria de Gregory Hutchinson (parceiro do guitarrista desde os anos 90) e o contrabaixista Dario Deidda também marcou pela positiva.
Composições facilmente cantáveis, sem irregularidades marcantes. A música ouviu-se agradavelmente e conseguimos admirar o virtuosismo na guitarra - que não é usado para favorecer a criatividade e a diferença mas sim para manter o pé a bater.
O Festival do Barreiro não parou por aqui e o Domingo não descansou. À tarde tocou a Academia de Jazz "os franceses" e o César Cardoso Ensemble. À noite foi a vez do Mário Costa trazer uma nova versão do Oxy Patina, desta feita com Cuong Vu no trompete a somar ao trio.
O festival de jazz do Barreiro parece ser uma aposta creswcente em relação à edição inaugural e faz-nos querer aguradar pela edição seguinte.