Novos contornos, novas matizes
Chegado à sua 10.ª edição, o festival Amadora Jazz levou aos Recreios da Amadora concertos de Bill Frisell Trio, Craig Taborn, Tcheka & Mário Laginha e trio Beatriz Nunes / Paula Sousa / Mário Franco; o programa incluiu ainda atuações do Diogo Alexandre e Tomás Marques Trio no Auditório de Alfornelos e da GeraJazz no Cineteatro D. João V. Com um programa diversificado, o festival mostrou diferentes possibilidades de explorar o jazz.
Presença habitual nos palcos portugueses, Bill Frisell foi o nome de peso escolhido para, no dia 4 de maio, dar início à 10.ª edição do Amadora Jazz. Veio acompanhado pelo contrabaixista Tony Scherr e pelo baterista Kenny Wollesen, a dupla rítmica do quarteto Sexmob de Steven Bernstein (na última visita, ocorrida em julho de 2021, fora acompanhado por Thomas Morgan no contrabaixo e Rudy Royston na bateria, dois músicos de características completamente diferentes). O guitarrista é figura querida dos jazzófilos nacionais (incluindo os muitos músicos, de diferentes gerações e instrumentos, naturalmente vários guitarristas, que marcaram presença), o que explica a sala ter esgotado com alguns dias de antecedência. Frisell ao centro, ligeiramente recuado, com Scherr à sua direita e Wollesen, sentado de lado para o público, à sua esquerda. Os primeiros dedilhados cristalinos de Frisell logo certificaram de que estávamos no local certo à hora certa. Uma engrenagem tripartida lubrificada por olhares e sorrisos cúmplices. Sendo certo que a música de Frisell se aproxima amiúde de domínios auditivamente confortáveis (não tenho qualquer partis pris relativamente a melodias redondas), o certo é que a limpidez do seu fraseado, a sobriedade com que subverte melodias ou relê peças suas ou alheias – acrescentando ou retirando notas – continua inatacável. O virtuosismo consequente e a pureza do seu som permanecem intocados, tal como a eficácia no uso dos pedais; na construção das melodias, nas acentuações mais bluesy ou mesmo nas passagens mais elétricas. Wollesen é um baterista soberbo, todos o sabemos, tratando peles e címbalos com precisão de relojoeiro, com baquetas e vassouras que trocou constantemente; Scherr, exímio ouvinte, foi muito mais que mero suporte, assumindo um papel fundamental na geometria sonora, fiel entre guitarrista e baterista (tanto em pizzicato como quando, a espaços, recorreu ao arco). Para encore, Frisell deixou a sua leitura muito pessoal de “In My Life”, dos Beatles, conservando a melodia central, mas acrescentando vários pontos a este conto. A música de Frisell cai facilmente no goto do público e na Amadora não foi exceção, aplaudindo entusiasticamente no final. (AB)
Os Recreios da Amadora voltaram a registar uma boa casa na segunda noite do Amadora Jazz, quinta-feira, 5 de maio, para receber o pianista norte-americano Craig Taborn, que trouxe na bagagem o seu mais recente álbum, o notabilíssimo “Shadow Plays”, editado pela ECM no ano passado. Taborn é um músico verdadeiramente inovador e mostrou-nos um pouco da abordagem que tem vindo a burilar, meticulosamente, ao longo das últimas três décadas. No recital amadorense ficou patente o labor oficinal com que trabalha cada nota, cada inflexão, a forma como insufla de elegância e vitalidade cada linha melódica, cada teia harmónica, cada pulsação rítmica. Tudo isto, e mais, fazem dele um dos nomes mais relevantes do jazz do nosso tempo. O músico originário de Minneapolis transporta consigo todo um corpo de trabalho, ao mesmo tempo multirreferencial (que parece beber tanto na faceta mais pastoral de Keith Jarrett como nos abalos tectónicos de elevada intensidade provocados por Cecil Taylor) e muito pessoal, que a cada momento adquire novos contornos, novas matizes, nunca permitindo que se instale uma sensação de conforto. O pianismo mercurial de Taborn faz-se tanto de demoradas ruminações exploratórias (“Bird Templars”), momentos vulcânicos ou passagens de vincado lirismo, com súbitas mudanças de direção, que deixam os sentidos num estimulante alerta. Nada na sua música é previsível; tudo tem um propósito, nada é supérfluo ou despiciendo. Taborn está, aos 52 anos de idade, num pico de forma (fenomenal mão esquerda!) e quem lá esteve testemunhou-o num ambiente de particular intimidade; a maturidade melódica, harmónica e rítmica que alcançou jamais se verte em manobras facilitistas ou de arredondamento do seu som. Tudo é, a cada instante, processado, indagado, perscrutado, dissecado. O resultado foi um concerto soberbo que perdurará na memória. Sim, Taborn é um músico genial. (AB)
Na noite de sexta-feira os Recreios da Amadora acolheram a atuação de Tcheka e Mário Laginha. Pela terceira noite seguida de festival, a sala estava novamente cheia, sendo muito poucos os lugares vazios. Com o belíssimo disco “Jangada” acabado de editar, Laginha rexplorou aqui um registo diferente daquele a que estamos habituados. Neste encontro musical, é Tcheka quem fornece as bases, as composições originais, alimentadas com voz e guitarra; Laginha entra para trabalhar a interpretação, mas a força da sua personalidade faz a música transbordar, e o pianista acrescenta novas cores e dimensões, transformando a música em algo também seu. Tcheka começa por apresentar as suas composições originais, melodias que conquistam, ancoradas na voz e guitarra. A sua voz tem uma grande amplitude de registos e, mesmo dentro de cada tema, oscila entre um canto brusco e a suavidade. A guitarra, que Tcheka domina com mestria, fornece a estrutura de cada tema, ritmo e melodia. Entra então o piano de Mário Laginha: além de fazer o acompanhamento, o piano vai revelando a sua personalidade, fazendo acentuações, fixando-se em determinado elemento e repetindo-o, acrescentando ideias, levando a música em novas direções. Por vezes o piano acelera e Laginha lança-se em torrentes vertiginosas de notas, momentos de assombrosa musicalidade. Mas mais do que destaques individuais, importa reforçar que esta música reflete a união de esforços de dois músicos, um pianista português consagrado e um talento natural de Cabo Verde, numa união irrepreensível. O público ficou rendido à proposta. (NC)
No sábado, 7 de maio, ao final da tarde, com concorrência de peso de um SL Benfica - FC Porto à mesma hora, subiu ao palco do Auditório de Alfornelos (acolhedor teatro que habitualmente acolhe a companhia Passagem de Nível) um trio constituído por dois jovens músicos que são já muito mais do que promessas – o saxofonista alto Tomás Marques e o baterista Diogo Alexandre – e um nome inescapável do jazz nacional das últimas duas décadas, o contrabaixista Nelson Cascais. A singularidade desta formação torna difícil explicar o facto de a sala ter estado apenas a cerca de metade da sua lotação. As seis peças que constituíram o programa foram distribuídas equitativamente, com cada músico a assinar duas. A função iniciou-se com “Sombra”, saída da pena do saxofonista, que logo demonstrou ao que o trio vinha, com o fraseado ágil de Marques bem articulado com o contrabaixo sólido e sempre interventivo de Cascais e a bateria de Alexandre riquíssima em detalhes, quer nas passagens mais intensas quer naqueloutras mais tranquilas. Seguiu-se a serenidade inquieta de “Yretsym”, outra peça do saxofonista, com solo de Cascais e o baterista exemplar a criar texturas. “Everbody Needs A Fish Bowl”, da autoria de Nelson Cascais, foi introduzida pelo contrabaixo, que lança uma melodia paulatinamente transformada num swing musculado (com solo soberbo de Cascais). A caleidoscópica “Experiment”, composição de Diogo Alexandre, conta com um diálogo flamejante entre saxofone e bateria, a que se junta o cordofone para acrescentar densidade. De repente tudo parece acalmar e Marques desenha uma bela melodia, quase uma canção de embalar, que conduz a peça para uma evolução em crescendo. Notável foi a leitura a três da delicadíssima arquitetura de “Pipe Tree”, peça que empresta o título ao disco de estreia do Diogo Alexandre Bock Ensemble. Para encerrar, a atmosfera torturada de “The Night is Darkening Round Me”, composição que abre “Remembrance: The Poetry of Emily Brontë”, o magnífico registo de 2021 de Nelson Cascais; contrabaixo e bateria tecem apertado tricot que, com a chegada do Marques, adquire um interessante travo camerístico. Na ocasião, parte do poema da britânica foi declamado em simultâneo por Marques e Cascais, na ausência da voz de Cláudio Alves, que marca sobremaneira a versão em disco. Fica a expetativa para que desta atuação possa resultar algo mais num futuro próximo. Alea jacta est. (AB)
Na última noite de festival, sábado, 7 de maio, o Amadora Jazz acolheu a atuação do trio Beatriz Nunes / Paula Sousa / Mário Franco – grupo que tinha atuado na semana anterior no Festival Theia no Centro Cultural Malaposta. Na bagagem o grupo trazia o disco “À Espera do Futuro”, gravado com o contrabaixista André Rosinha, aqui substituído por Mário Franco – que acabou por ser uma escolha natural, por ter já trabalhado com Paula Sousa, no disco “Cine Qua Non” e por integra um outro grupo com o formato (invulgar) de voz/piano/contrabaixo, os Círculo, com Rita Maria e Luís Figueiredo. Desta vez, ao contrário das três noites anteriores, a sala não encheu, com o público a preencher apenas cerca de 1/3 da sala. A sequência inicial do concerto imitou a entrada do disco: “Navegante” e “Quantas horas”. Desde logo a interpretação ao vivo revela uma enorme fidelidade ao registo gravado. Destaque natural é a voz de Beatriz Nunes: um canto cuidado, detalhado, numa interpretação que tem também uma vertente performativa. No piano, Paula Sousa explora com precisão as composições, acrescentando-lhes liberdade. No contrabaixo, Mário Franco cumpriu a função, integrando-se com naturalidade, a interpretar, improvisar e dialogar. O trio foi abordando os temas do disco: “Girassol”, “Olho de pato”, “A minha avó tinha uma coisa” (com a voz de Beatriz a brilhar, a cantar sem palavras), “Golpe de sorte”, “À Espera do Futuro” – sempre refletindo a gravação, sem desvios. Para fechar a atuação ficou reservada a canção “Primeiros sintomas”, que contou com uma introdução a solo do contrabaixo de Franco. O público pediu e o trio regressou ainda para um encore. Nesse momento o grupo foi buscar uma música fora do disco: “Encontros não imediatos”, composição de Paula Sousa, que Beatriz Nunes apresentou como “um standard do jazz português”, que “deveria estar guardado no Louvre”. Foi uma despedida feliz, na quarta e última noite de concertos do festival. (NC)
O programa do festival fechou de vez com a atuação da GeraJazz no Cineteatro D. João V, na tarde de domingo (16h). A GeraJazz é um “sub-produto” da Orquestra Geração, um projeto especificamente dedicado ao jazz, com o objetivo de promover o desenvolvimento social através da música. Com direção de Eduardo Lála, a big band apresentou-se no palco reunindo um grupo de jovens e três músicos mais experientes (também eles professores no projeto): Mateja Dolsak (saxofone tenor), Daniel Neto (guitarra) e Nuno Tavares (piano). A orquestra interpretou clássicos, dando espaço aos jovens músicos para brilhar: nem todos estarão ao mesmo nível, mas alguns revelaram boas qualidades; numa atuação com altos e baixos, a orquestra mostrou a sua pujança particularmente nos momentos coletivos. Juntaram-se em ainda palco duas jovens cantoras: Catarina Amorim e Juvânia Gomes. Interpretando dois temas popularizados por Nina Simone, “Feeling Good” e “Work Song”, Juvânia destacou-se, a mostrar muita segurança e personalidade. Para encerrar a atuação oficial, a banda atacou “Let the goo times roll”, com duas vozes. O público exigiu encore e o grupo voltou com “Pick Up the Pieces” (da Average White Band), tema cheio de groove, com o baixista no centro. Quando se esperava que abandonassem o palco, os músicos tocaram de surpresa um último tema, em registo informal, quase “marching band” - um final festivo. Se a vertente social deste projeto é inestimável, o resultado musical é muito satisfatório. Esperamos agora que estes jovens músicos continuem a evoluir e que daqui a alguns anos os possamos continuar a ver nos palcos nacionais. (NC)