New Orleans Jazz & Heritage Festival
Regresso ao berço
Fomos até ao berço do jazz. O New Orleans Jazz & Heritage Festival acontece entre 29 de abril e 8 de maio e, mesmo só termos assistido aos dois primeiros dias de festival, ficámos a conhecer o seu ambiente mágico e a música riquíssima.
Só podia ter nascido ali... e porque nascemos todos nesse local é algo revelado no preciso momento em que sentimos o calor, a humidade e a dor de Nova Orleães. Algo de leve e frágil de quem apaziguou a sua força da emigração numa redentora saudade imune mas bem temperada de ocupações coloniais, tempestades tropicais, crenças milenares e inevitáveis fusões e descobrimentos. De tão volátil, efémera e abundante mistura, houve a necessidade de a preservar, e foi com enorme entusiasmo que presenciei os dois primeiros dias da 52.º edição do New Orleans Jazz & Heritage Festival, que reúne treze palcos que criam pontes e saciam todos os estilos musicais, ao longo de dois fins de semana arrebatadores.
A experiência no festival começou ao cirandar na zona nobre intitulada Heritage Square, composta por tendas de gospel, blues e jazz, com capacidade para mil pessoas cada - espaços bem arejados, com borrifadores de água no teto, separadas por stands de artesanato com exuberantes pinturas e esculturas, bebidas como tradicionais daiquiris, panóplias de iced teas e cocktails, milkshakes de cerveja e uma maravilhosa gastronomia... a culinária daria para muitos outros artigos, tal a miscelânea, mas aponto somente o divinal crawfish monica (camarão num molho de cebola, alho, especiarias crioulas, vinho e manteiga) e um softshell crab poboy, caranguejo sazonal frito e picante no pão... delicioso!
O melhor de tudo seria mesmo a música. Os concertos, genuínos e sinceros transportam-nos para uma essência única de quem vive e vibra com jazz. Foi o caso de Arturo Sandoval, cubano amável e descontraído que aflorou com o seu quinteto um característico latin jazz, alternando entre o seu soberbo som de trompete e canto temas de Elvis (“Blue Suede Shoes”), Charlie Chaplin (“Smile”) ou Charlie Parker (“Ornithology”). E despeciu-se do palco com um discurso vigoroso a reclamar mais espaço prime time na televisão para o jazz nos Estados Unidos, isto antes de ser silenciado abruptamente por estar a exceder o tempo previsto.
Outra atuação marcante foi a do The John Mahoney Big Band featuring Brian Blade, um portento local de bom gosto, formação robusta liderada por um (mais um nestas terras de metais...) trombonista, que tocou temas como "Antecipating Colorado" ou um original absoluto "Minor Madness", em que a simbiose dos naipes rítmicos e sopro colocaram a audiência em transe, muito por culpa do baterista Brian Blade, seguro, ágil e assertivo, em particular nos mirabolantes e brilhantes solos.
Um concerto que merece referência é o Astral Project, um quarteto pioneiro de Nova Orleães, fundado em 1978, que me agarrou do primeiro ao último segundo, com um som claro, entrosado, com um contrabaixista - James Singleton - que aparecia em todos os momentos em excelência, seja no contracanto, no ritmo, nos solos, simplesmente impressionante! Outra nota para Delfeayo Marsalis & Uptown Jazz Orchestra (foto acima), que com requinte e simplicidade encerrou o segundo dia da tenda, fazendo uma pequena arruada no meio do público que rejubilou com a proximidade e afinidade dos temas.
E ainda o futuro: vi combos, ensembles e escolas que muito prometem evoluir, como os Trumpet Mafia onde vinte desinibidos jovens trompetistas rivalizam, discutem, apoiam e desfrutam a excelência deste instrumento nesta terra única.
Assim aconteceram dois dias de verdadeira festa, onde toda a gente comentava o que tinha visto, propondo o próximo concerto de acordo com o teu percurso, grau de deslumbramento e simpatia. Gostava ainda de referir os constantes corsos, de ainda me pedirem o bilhete de identidade para comprar cerveja, das bandas de metais que silenciariam qualquer fanfarra europeia ou ainda de uma banda ucraniana convidada... mas fica para uma próxima oportunidade. Resta-me sonhar que o festival continua, depois de pandemias e guerras, mantendo um património único vivo.