Acht Brücken – Musik für Köln
Arrojado e arrebatador
O festival Acht Brücken leva música à cidade alemã de Colónia, com foco na música contemporânea. Com uma programação ousada, apresenta concertos em formatos inesperados e não esquece o jazz. Fomos conhecer o festival.
A Renânia do Norte-Vestefália (Nordrhein-Westfalen ou NRW) é o estado mais populoso da Alemanha e inclui cidades como Düsseldorf, Dortmund, Bona, Leverkusen e Colónia. O Secretariado cultural da NRW é uma entidade intermunicipal que promove a cultura e organiza regularmente programas de visitas internacionais. Depois de já termos ido conhecer o festival de jazz de Moers em 2016, fomos agora convidados a conhecer o festival Acht Brücken, que se realiza em Colónia.
O festival Acht Brücken – Musik für Köln (“Oito pontes – Música para Colónia”) apresenta durante dois fins-de-semana um programa vasto e variado, com principal foco na música contemporânea, mas que se alarga a outros géneros e inclui também espaço para o jazz. O festival tem como palco principal a Kölner Philharmonie (Filarmónica de Colónia), mas espalha a sua programação por um total de dezoito espaços diferentes. A cidade tem sete pontes, a oitava é a ponte metafórica promovida pelo festival, criando novas ligações. Com o mote “Música Memória Amnésia”, a edição 2022 arrancou no dia 29 de abril.
O festival tinha previsto um momento zero, um arranque antecipado, a 11 de abril, com a apresentação ao vivo de “E2-E4” (1981) de Manuel Gottsching, obra pioneira (e genial) da eletrónica – o evento teve de ser cancelado porque Gottsching ficou infetado com covid. Foi a 29 de abril que a programação arrancou mesmo e em força – e estivemos lá para ver. O primeiro grande evento teve lugar na sala da Filarmónica, com a grandiosa Orquestra Sinfónica WRD (foto acima) a interpretar obras de duas compositoras, Sofia Gubaidulina (1931) e Liza Lim (1966), esta última com uma peça inédita em estreia. Entre as composições de Gubaidulina e Lim, a orquestra – com direção de Cristian Măcelaru – mostrou a sua enorme precisão e fulgor na interpretação. A compositora Liza Lim esteve presente.
Ao segundo dia fomos assistir à interpretação das composições finalistas do concurso promovido pelo festival, um concurso aberto a jovens compositores. Os pianistas Paulo Álvares e Claudia Chan interpretaram com atenção as obras selecionadas, que incluíam dois pianos e eletrónica, e revelavam criatividade e boas ideias – uma delas inspirada na peça “I am sitting in a room” de Alvin Lucier. Seguidamente, no auditório da WDR o compositor Marcus Schmickler apresentou a peça “Schreber Songs: Don't Wake Up Daddy”. Na interpretação estavam o Ensemble Ruhr, o coro Kölner Vokalsolisten, Daniel Gloger (contratenor e piano) e o próprio Schmickler na eletrónica. Destacou-se a excelente utilização das vozes do coro e também o contraste provocado pela eletrónica.
Para fechar a noite de sábado, estava programado para a sala Stadthalle Köln-Mülheim o arrojado programa “Simpósio: oito momentos de inebriamento”: 5 horas (!) seguidas de concertos. Para conforto dos espectadores, no espaço foram distribuídos colchões e almofadas e foram programados quatro momentos de pausa, em que era servida comida e vinho. No palco estava a orquestra de câmara austríaca Klangforum Wien, com direção de Baldur Brönnimann (que foi maestro titular da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música até 2020). O longo programa incluiu peças de Gustav Mahler, Matthias Krüger, Mirela Ivičević, Clara Iannotta, Tristan Murail, Alberto Posadas, Morton Feldman e Terry Riley. Tendo um outro concerto a começar noutro espaço, acabámos por não fruir da experiência completa, e abandonámos no final da primeira hora (só assistimos às peças de Mahler e Krüger), mas deu para perceber e sentir o espírito do evento: a música contemporânea não tem de ser demasiado séria, pode ser descontraída e desafiar o espectador, apresentando-se em formatos inesperados e até promover o inebriamento (desta vez o vinho também estava incluído).
No domingo, de volta à Filarmónica, assistimos ao Ensemble Musikfrabrik (grupo de Colónia) com direção de Yorgios Ziavras, em dose dupla. Primeiro, às 20h00, a interpretar obras de três compositores: Malika Kishino, Robert HP Platz e Peter Eötvös. De seguida, às 21h30, os mesmos Musikfrabrik e Ziavras juntaram-se em palco com o Trio Ruído Vermelho, para interpretar uma composição da autoria de Luís Antunes Pena. Pena (n. 1973) é um compositor português, radicado em Colónia, que tem explorado a música eletrónica e integra o Trio Ruído Vermelho (com Francesco Dillon e Nuno Aroso). Nesta atuação apresentou em estreia uma obra comissariada pelo festival: “Memory: An Instruction Manual”. Manipulando a eletrónica, Pena ia provocando um zumbido elétrico controlado, ao qual o violoncelo de Dillon respondia e a percussão original de Aroso complementava. O som do trio era contrastado com a interpretação do ensemble, meticulosa, que trazia novas cores, resultado uma união sonora irrepreensível. A combinação de elementos, numa combinação de fluidez e surpresa, tornou esta uma das obras mais interessantes a que assistimos ao longo de todo o fim-de-semana de concertos.
Na segunda-feira, acordámos cedo para assistir a um concerto às 8h00 (!) da manhã. O espaço era uma igreja, a Igreja de São Pedro, com ar aparentemente austero, com paredes de cimento, quase vazias, mas onde encontramos três magníficas obras de arte: um quadro de Rubens (porque foi neste local que o pintor flamengo foi batizado), um quadro do celebrado pinto alemão Gerhard Richter e um altar/escultura de Eduardo Chillida (entretanto retirado da função, apenas com função decorativa, porque o Papa Bento XVI não gostou). Ficámos também a saber que a igreja acolhe arte e daí o espaço ter também a designação de Kunst-Station Sankt Peter (“Estação de arte de São Pedro”). No palco a pianista Hsin-Huei Huang interpretou uma peça de Morton Feldman: “For Bunita Marcus”. O relacionamento de Feldman e Marcus nasceu como professor e aluna, evoluiu para uma ligação amorosa e desenvolveram trabalho em parceria – mas nem tudo foram rosas e Marcus acusou Feldman de abusos e de lhe roubar ideias. A peça é marcada por candura, num típico registo minimalista, assente em alguns (poucos) elementos, que se vão repetindo, com pequenas alterações à medida que a peça vai evoluindo. Sempre na mesma cadência, sempre no mesmo registo, a peça exige uma enorme concentração da intérprete. A pianista tratou de interpretar a composição com atenção ao detalhe, um desafio com a duração de 1h20. Acompanhando a evolução subtil da música, íamos assistindo em simultâneo à entrada de luz matinal pelos vitrais da igreja; a certa altura, o inebriamento da peça alinhado com a entrada da luz criou um momento magnífico. Uma experiência arrebatadora, quase transcendental.
Estes foram alguns destaques do programa a que tivemos oportunidade de assistir, mas trata-se apenas de uma pequena amostra. Além dos já referidos, ao logo festival foram interpretadas obras de Leoš Janáček, György Ligeti, Johann Sebastian Bach e Charles Ives, além de muitos contemporâneos, com muitas composições comissariadas e em estreia mundial. E, para honras de encerramento, ficou reservado o inevitável Karlheinz Stockhausen – santo padroeiro da música contemporânea, que esteve sempre ligado à cidade de Colónia.
Além de incluir projetos jazzísticos no programa principal, o festival acrescenta sempre uma secção paralela designada “Lounge”, onde dá espaço a projetos jazzísticos (sobretudo de músicos locais), que se apresentam num bar de jazz da cidade, King Georg. Antes de mais, trata-se de um pequeno espaço, um tradicional bar de jazz, clássico, com poucos lugares sentados e muita gente em pé. Desde logo reparámos num pormenor significativo: o bar faz streaming online de todos os seus concertos, com alta qualidade de imagem e realização com qualidade televisiva. O mesmo streaming é transmitido nas TVs que estão no bar, fazendo assim também a imagem chegar aos espectadores que se encontram mais distantes do palco. Isto implica, além de um técnico de som sempre ativo durante o concerto, a presença de um cameraman e de um técnico exclusivamente dedicado à realização vídeo, para a transmissão em streaming. Seria impensável vermos o investimento numa equipa destas num bar de jazz português, mas este investimento na cultura é significativo da mentalidade alemã e da relevância que o país dá à cultura.
Foi então no bar King Georg que assistimos no dia 30 de abril à atuação do grupo The Human Element, que juntou em palco Johannes Ludwig (saxofone alto), Gero Schipmann (guitarra barítono) e Alexander Parzhuber (bateria). Na verdade, o projeto assenta num duo base, de Ludwig e Schipmann, e a formação vai variando consoante o momento; já exploraram diferentes formatos, gravaram um disco em trio (“Embrace”, em 2019, com outro baterista, Hannes Plattmeier) e nesta fase assume o formato trio, integrando o baterista Parzhuber. A banda arrancou a sua atuação numa toada emocional, com o saxofone de Johannes Ludwig desde logo em destaque, a puxar pelo sentimento. Em contraste, ao segundo tema o grupo atacou um ritmo acelerado e abrasivo, com a guitarra em distorção como destaque, endiabrada. Ao terceiro tema surge novo contraste, em balada; ao quarto tema o trio voltou a acelerar. O trio foi alternando entre diferentes registos ao longo de toda a atuação, exibindo a sua versatilidade. Todos tecnicamente desenvolvidos, os três músicos foram acrescentando ideias ao longo de toda atuação, articulando uma comunicação apurada. O saxofonista Ludwig servia-se adicionalmente de pedais de efeitos, para transformar o som do saxofone. O guitarrista, a solo, aproveitou parar mostrar uma certa veia de folk americana. E o baterista ia além da marcação rítmica. Acabou por ser uma boa surpresa, não apenas pelo contraste com a programação contemporânea que tínhamos ouvido até então, mas porque o trio apresentou uma música realmente criativa e fluída. O trio regressou para o encore, muito pedido pelo público, e para despedida o trio interpretou um tema etéreo, amansando as almas. No Dia Internacional do Jazz, tivemos oportunidade de descobrir este trio, bom exemplo da cena jazz local.
Um outro concerto com matriz jazz aconteceu na manhã de domingo, dia 1 de maio, na grandiosa sala da Filarmónica. Apesar da hora, o público compareceu, curioso com a atuação do quarteto Maasa. Liderado pelo libanês Rabih Lahoud (voz, composição), o grupo completa-se com Marcus Rust (trompete e fliscorne), Reentko Dirks (guitarra) e Demian Kappenstein (bateria e percussão). Começámos por perceber que se tratava de um encontro feliz, com o quarteto a conseguir rapidamente uma combinação equilibrada da tradição jazz com música libanesa. Apesar de o terreno do etho-jazz poder ser pantanoso, há casos em que o encontro de mundos funciona bem e faz a música evoluir positivamente (como também o recente trabalho da pianista Katerina L’dokova, que destacámos aqui). O projeto Masaa rapidamente conquistou o público: a voz lidera, a guitarra cria o tapete sonoro, a percussão dá estrutura; e o trompete surge por cima e sobressai. A voz (e presença) de Lahoud eram o destaque natural, mas a música brilhava particularmente com as intervenções do trompete de Rust. Também a percussão de Kappenstein se destacou, atenta e com bom gosto. As melodias apresentadas em palco combinam as tradições do Ocidente e Oriente, que resulta uma música original, por vezes desafiante. O público presente no grande (e belo) auditório da Filarmónica ficou convencido e aplaudiu com entusiasmo.
Na noite de segunda-feira, dia 2, regressámos ao King Georg, o bar de jazz, para assistir a mais um concerto de uma banda local, simplesmente chamada Jo. Parece que as bandas alemãs ligadas ao jazz não gostam de contrabaixos: nos três concertos a que assistimos, nenhuma das formações incluía o instrumento… Neste caso o quarteto conta com saxofone tenor, guitarra, piano e bateria. O grupo é liderado pelo baterista Jo Beyer (nascido em Essen, mas vive em Colónia), acompanhado por Sven Decker (saxofone tenor), Andreas Wahl (guitarra) e Felix Elsner (piano). Desde logo, o saxofonista parecia – estranhamente – o elemento mais desligado do coletivo. Musicalmente, era a bateria que assumia a liderança, com precisão. O piano e a guitarra mostravam-se presentes, também a alinhar em frequentes diálogos e uníssonos. O líder baterista era capaz de suster o rumo, ao mesmo tempo que ia introduzindo subtilmente elementos extra, sempre seguro e sempre com fluidez. A guitarra, apesar do som (a soar demasiado ao rock gorduroso dos 80’s), teve momentos particularmente interessantes, aproveitando bem as oportunidades para solar. Já o piano teve uma prestação eficaz, contribuindo para o coletivo, mas nem sempre brilhante. O saxofonista foi-se ligando o longo da atuação, mas continuou a parecer sempre o elemento mais afastado do resto do grupo. Apesar disso, destacou-se com intensidade nos momentos em que se soltou. A guitarra e o piano por vezes anulavam-se um ao outro, nos momentos de envolvimento coletivo – a massa sonora não permitia perceber o detalhe de cada som. Apesar de pontuais pormenores, a música fluiu e as melodias originais, composições da autoria do baterista, revelaram-se eficazes. O público apreciou e obrigou a banda a regressar para um encore. Foi este o nosso concerto de despedida do festival.
No âmbito do jazz, o programa do festival Acht Brücken incluiu ainda outros projetos marcadamente jazzísticos: Sun Ra Askestra, Django Bates (com uma curiosa, mas arriscada revisão dos The Beatles: “Saluting Sgt. Pepper”) e várias bandas na secção específica “Lounge”, dedicada ao jazz e músicas improvisadas: Mount Meander, Mengamo, Radius feat. David Rynkowski, Klaeng Jazzkollektiv Köln (com os nossos conhecidos Robert Landfermann e DJ Illvibe).
Em paralelo com os concertos, o programa incluiu visitas a instalações, encontros e conversas com responsáveis do festival e das instituições culturais associadas. Um dos momentos mais fascinantes foi a visita ao histórico estúdio de música eletrónica da WRD (“Studio für Elektronische Musik”), onde Stockhausen trabalhou e por onde passaram Pink Floyd, Can e Kraftwerk, e ver ao vivo aquela maquinaria analógica histórica dos anos 50 até aos 80 (e em bom estado).
Com esta miríade de concertos e experiências, ficámos a conhecer um festival que é um exemplo de arrojo na programação, num país que valoriza a cultura e, consequentemente, financia convenientemente os criadores e os projetos criativos. Talvez esteja na altura de começarmos a fazer o mesmo.