Afonso Pais Trio
Só se vive duas vezes
O guitarrista Afonso Pais apresentou-se em trio no Hot Clube, ao lado de Bernardo Moreira e João Pereira. Levou um inesperado repertório, revisões jazzísticas de músicas do 007.
Foi também na sexta-feira, 25 de março. Depois d’A Graciosa seguimos para a Praça da Alegria, o guitarrista Afonso Pais apresentava-se em trio no Hot Clube, acompanhado com o contrabaixista Bernardo Moreira e o baterista João Pereira – pouco depois de ter estreado um outro projeto, Boglin, em duo com o saxofonista Tomás Marques. Com um disco ainda fresco, “O que já importa” (edição Trem Azul), lançado em meados do ano passado, e sem muita informação divulgada, tínhamos imaginado que o concerto do trio pudesse consistir em versões “redux” dos temas desse disco, com novos arranjos, despidos, para o formato trio. Afinal não, Pais surpreendeu e no palco do Hot apostou num repertório completamente diferente.
Pela formação – um trio de guitarra, contrabaixo e bateria – poderíamos assumir que se tratava de um regresso ao jazz mais puro e, também, de uma espécie de regresso ao passado. Foi neste mesmo formato que Pais teve a sua estreia discográfica, no disco “Terranova” (Clean Feed, 2004) – nesse álbum com a companhia de Carlos Barretto e Alexandre Frazão (a mesma dupla que formava o trio de Bernardo Sassetti que, de quem foi recentemente editada a gravação “Culturgest 2007”). Perante uma plateia muito bem composta (e sobretudo jovem), o concerto arrancou com uma melodia bem conhecida: “Nobody does it better”, popularizada na voz de Carly Simon, que faz parte da banda sonora do filme “The spy who loved me”. Afonso Pais anunciaria então que o grupo ia interpretar temas ligados a filmes da série James Bond.
Afinal tratava-se mesmo de um assumido regresso ao jazz-jazz. A guitarra, o contrabaixo e a bateria trataram de seguir as regras: exposição do tema, solo do líder, regresso ao tema, outros solos, embrulhar novamente com o tema. Poderia ser só simples revisão de matéria dada, mas tratando-se de três magníficos músicos, que navegam com absoluta segurança e se entregam com alma a cada detalhe da composição, a interpretação de cada tema ganhava sempre novas cores. Depois de “The spy who loved me”, seguiram-se “Goldfinger” (Shirley Bassey), “Live and let die” (Wings de Paul McCartney), “Thunderball” (Tom Jones) e “You only live twice” (Nancy Sinatra). No Hot relembrámos o virtuosismo de Afonso Pais, mestre guitarrista e magnífico improvisador, desdobrando o tema sempre sem perder o fio. Não que esse virtuosismo tenha ficado esquecido, mas no seu último disco, com um grupo mais alargado e arranjos mais sumptuosos, essa vertente tinha propositadamente ficado relegada para segundo plano. A precisão e agilidade do contrabaixo de Moreira (também com excelentes solos) e a versatilidade da bateria de Pereira completaram o trio.
Depois do intervalo o grupo regressou com a belíssima “We have all the time in the world”, popularizada por Louis Armstrong, que está no filme “On her majesty’s secret service”; do mesmo filme, seguiu-se a música do genérico, da autoria de John Barry; “Moonraker” (novamente Shirley Bassey), em registo balada, resultou numa das mais brilhantes interpretações da noite; seguiu-se o tema do genérico de “From Russia with love” (título particularmente irónico nestes tempos em que vivemos) e a atuação fechou com “Underneath the mango tree”, tema do filme “Dr. No”, com um inesperado jazz-calypso. Para o encore, que o guitarrista confessou não esperar e para o qual não tinha nenhum tema extra preparado, repetiu “We have all the time…”. Nem todos nos podemos dar ao luxo de dizer que temos todo o tempo do mundo, mas Afonso Pais, desdobrando-se nestes múltiplos projetos, parece tê-lo, parece viver várias vidas. A proposta deste novo trio está aprovadíssima, ficando só a precisar de mais rodagem.