Festival Porta-Jazz
Contra ventos e marés
Com as contrariedades próprias do período pandémico em que ainda vivemos e a chuva a não ajudar, o evento maior da Associação Porta-Jazz conseguiu promover um fim-de-semana com o melhor jazz que se pratica no Porto. Eis aqui o relato do que aconteceu.
A Associação Porta-Jazz tem desenvolvido um trabalho absolutamente meritório, imparável e inigualável na promoção do jazz no Porto: programando concertos e promovendo edições discográficas, um trabalho que anualmente culmina na realização de um festival, que chegou este ano à sua 11.ª edição. A concretização desta não foi fácil e esteve mesmo em sério risco: as medidas de prevenção da pandemia levaram a que os planos sofressem consecutivas alterações e só na segunda-feira, poucos dias antes do arranque a 23 de Julho, ficou definitivamente fechado o programa e assente a localização dos concertos. O festival realizou-se ao ar livre, nos jardins do Palácio de Cristal, com concertos distribuídos entre um palco improvisado no Lago dos Cavalinhos (para os concertos da manhã e da tarde) e na Concha Acústica, uma espécie de coreto (para os concertos da noite).
Os concertos eram gratuitos, sendo apenas necessário o levantamento do bilhete. Contudo, surgia outro entrave: a entrada no recinto só era possível com apresentação de certificado digital válido ou teste negativo – e a organização disponibilizou uma tenda onde era possível fazer testes gratuitos na hora. Foram muitos os que aceitaram fazer o teste e apareceram para mostrar o seu apoio à cultura e à música ao vivo. Em razão da obrigatoriedade dos testes, na primeira noite verificou-se um grande atraso na entrada do público, e muita gente só conseguiu sentar-se no seu lugar quando o primeiro concerto já ia a meio.
Todos os concertos arrancaram exactamente à hora marcada, sem atrasos, sem desculpas, sem tolerâncias. Com tempos bem definidos, cada grupo actuou dentro da sua janela horária e nenhum ultrapassou os 50 minutos de actuação (máximo).
23 Julho | Sexta-feira
O festival iniciou-se com dois concertos na noite de sexta-feira, dia 23. Hery Paz, Javier Moreno e Marcos Cavaleiro subiram ao palco da Concha Acústica para apresentar a sua música, num projecto a que chamaram Vessel Trio e que em breve apresentará o disco “Responde Tu”. Paz é um saxofonista natural de Cuba, Javier Moreno é um contrabaixista oriundo de Madrid e Marcos Cavaleiro um dos mais requisitados bateristas da cena jazz nacional, dividindo-se entre inúmeros projectos e colaborações (só neste festival actuou três vezes). Neste trio não há instrumento harmónico, mas o grupo rapidamente mostrou que não precisava de um: com o saxofone enérgico de Paz a conduzir, o trio embarcou em explorações abertas, evidenciando uma excelente articulação e muito diálogo. No saxofone, Paz revelou ser um fiel seguidor de dois deuses do instrumento: John Coltrane pela chama e Gato Barbieri pela alma latina que por vezes ganhava destaque. O contrabaixo de Moreno e a bateria de Cavaleiro entrelaçavam-se, no acompanhamento rítmico e na propulsão, mas não só. Todos disparavam ideias e alternavam-se os momentos de liderança (destaque para um notável solo de Moreno). Foi uma excelente entrada no festival, com música de fogo que terá conquistado os adeptos do “free” aceso.
Como segunda proposta da noite, actuou o Coreto Porta-Jazz. O grupo tem funcionado como “laboratório” para compositores e neste concerto apresentou em estreia quatro composições novas, da autoria de quatro músicos: Catarina Sá Ribeiro, Nuno Trocado, João Grilo e João Mortágua. Ao palco subiram João Pedro Brandão (saxofone alto e flauta), José Pedro Coelho (saxofones tenor e soprano), Hugo Ciríaco (saxofone tenor), Rui Teixeira (saxofone barítono e clarinete baixo), Ricardo Formoso (trompete e fliscórnio), Susana Santos Silva (trompete), Daniel Dias (trombone), Andreia Santos (trombone), AP (guitarra), Hugo Raro (piano), José Carlos Barbosa (contrabaixo) e José Marrucho (bateria). O espectáculo arrancou com a peça da autoria de Sá Ribeiro, juntando-se em palco a cantora Rita Maria (uma novidade para o Coreto, que não tem por hábito chamar outros músicos). Cada composição tinha características diferentes, mas em comum todas partilhavam uma certa ideia de escrita para “big band” contemporânea, não se ficando pelos elementos jazzísticos clássicos e apresentando ideias frescas: a também pianista Catarina Sá Ribeiro partiu da utilização da voz como elemento diferenciador, aliada à dinâmica instrumental do grupo; Nuno Trocado, guitarrista, que além do jazz tem também trabalhado na composição de música electroacústica, apresentou um estrutura interessante e desafiante; João Grilo jogou em terreno experimental, apresentando a peça mais subversiva e criativa, incluindo muita electrónica e sons pré-gravados e obrigando os músicos à utilização de técnicas extensivas; e João Mortágua, num contexto de jazz “mainstream” contemporâneo, puxou pela pujança do grupo, particularmente nos sopros – talvez a peça mais marcante e aplaudida. O primeiro dia encerrou desta forma, com o público a despedir-se satisfeito.
24 Julho | Sábado
Para o segundo dia de festival foram agendados três blocos de concertos duplos: às 11h00, às 17h00 e às 20h30. O bloco matinal abriu com o Filipe Teixeira Trio, a apresentar o material do seu álbum “TAO”. O contrabaixista portuense lidera um grupo em que tem a companhia de João Mortágua (saxofone alto) e Acácio Salero (bateria), tendo já editado dois discos: “Páginas” (2015) e o acima referido (2019). Mortágua não pôde actuar, mas foi substituído por Rui Teixeira (também sax alto). Desde logo, Teixeira exibiu o som preciso do contrabaixo, cada nota a fazer-se ouvir com clareza. Ao contrário de outros músicos, que assinam os temas mas ficam na sombra enquanto intérpretes, Teixeira está sempre no centro da música: o contrabaixo não faz apenas a marcação rítmica, rouba espaço a solar e assume o foco (até o volume estava um pouco subido, evidenciando ainda mais o seu instrumento). Salero e Teixeira foram parceiros fiáveis na construção de uma música que surpreendeu muito pela positiva.
Seguiu-se uma proposta mais atípica, o projecto Vazio e o Octaedro, formação que resultou de um residência liderada por Josué Santos e Gianni Narduzzi, dois jovens músicos, que propõem uma fusão entre jazz e música clássica. Já muito se fez com esse tipo de abordagem com a Third Stream e os trabalhos de Oliver Nelson, por exemplo, mas é sempre possível explorar estes universos e as suas inúmeras possibilidades. Assim, à base rítmica (Gianni Narduzzi no contrabaixo e João Cardita na bateria) juntaram-se três saxofones (Josué Santos, Hristo Goleminov e Afonso Silva) e acrescentaram-se quatro cordas: dois violinos (Alice Abreu e Beatriz Rola), uma viola (Rita Proença) e um violoncelo (Manuela Ferrão). Este grupo, constituído por músicos muito jovens, tratou de trabalhar arranjos originais para composições inéditas, que não raras vezes evocavam referências cinemáticas. Embora a prestação tenha oscilado de nível, entre momentos de maior interligação e outros de desfasamento, foi globalmente positiva e contou com momentos de grande fulgor colectivo. Saliente-se e saúde-se, sobretudo, a vontade de inovar, arriscar e cruzar geografias. Algum do futuro do nosso jazz passará certamente por aqui.
No mesmo palco, no Lago dos Cavalinhos, o bloco da tarde abriu com a actuação do Ensemble Robalo / Porta-Jazz. A Robalo é uma editora nascida da iniciativa dos músicos Gonçalo Marques e Demian Cabaud, que tem ainda promovido a organização de concertos e organizado o seu próprio festival (a mais recente edição aconteceu na semana passada, em Lisboa). A Robalo levou ao Porto um grupo constituído por músicos, amigos e colaboradores habituais: Marques no trompete, Cabaud no contrabaixo, João Carreiro na guitarra, Hugo Caldeira no trombone e João Lopes Pereira na bateria. Juntaram-se ainda Joana Raquel (jovem cantora portuense, que voltaria a actuar no dia seguinte) e Masa Kamaguchi (contrabaixista de origem japonesa residente nos Estados Unidos). A inusitada formação interpretou composições originais com qualidade, embora por vezes se sentisse que precisava de mais entrosamento. Particularmente interessante foi o tema final: sobre uma construção instrumental turbulenta em fundo, a cantora Joana Raquel leu um texto em registo “spoken word”. A presença desta banda lisboeta no festival portuense veio lembrar a importância de ligar as cenas (e os músicos) jazz do Porto e de Lisboa, que sempre estiveram historicamente afastadas, mas começam agora a querer ultrapassar os 300 km de distância - outros exemplos são as presenças do Coreto Porta-Jazz no Jazz 2020 da Gulbenkian ou do Trama no Navio de João Pedro Brandão no Jazz em Agosto 2021.
O bloco da tarde fechou com o quarteto de Nuno Campos. Em 2011 estreou-se com o disco “My Debut For The Ones Close To Me”, edição do importante selo catalão Fresh Sound New Talent, acompanhado por Marco Mezquida e Ramon Prats. No ano da pandemia chegou o segundo disco, agora via Carimbo Porta-Jazz: “TaCatarinaTen”. Ao vivo, Campos explorou o som sólido do seu contrabaixo e um conjunto de composições bem urdidas, acompanhado em palco por José Pedro Coelho no sax tenor, Miguel Meirinhos no piano e Ricardo Coelho na bateria. Brilhou sobretudo o saxofonista, sublinhando a qualidade das composições.
Os concertos da noite de sábado, na Concha Acústica, serviram de montra a dois músicos particularmente jovens: o baterista Miguel Rodrigues, a apresentar o disco “Empa”, e o saxofonista Hristo Goleminov com um projecto inédito. Rodrigues venceu a 1ª “open call” Cena Jovem Jazz.pt e daí resultou este disco gravado em trio, acompanhado por José Diogo Martins (piano) e Demian Cabaud (contrabaixo). Se era ele quem assinava os temas, não foi o foco das atenções: ao vivo, o piano frenético de Martins roubou todo o protagonismo, lançando torrentes de notas em catadupa, irrequieto. Cabaud fez uma ligação estável com a bateria de Rodrigues, que também se mostrou competente a solar. Para o final ficou reservada uma peça algo distinta, “Entre o Esplendor da Luz Perpétua”, em toada lenta evocativa de uma certa religiosidade – contrabaixo com arco, piano tranquilo, percussão espectral.
A segunda noite fechou com o jovem saxofonista Hristo Goleminov, que respondeu a uma encomenda do festival. De ascendência búlgara e família com ligações à música, Goleminov nasceu no Porto em 1997, viveu a maior parte da sua vida em Espinho, estudou na ESMAE e está agora na Holanda. Espectador assíduo do festival desde miúdo (nas palavras de João Pedro Brandão, um dos rostos da Porta-Jazz), passou agora para o palco, apresentando um projecto original: um jazz assente em estruturas de música barroca. A acompanhá-lo em palco estiveram o saxofonista português José Soares e três músicos de Amesterdão: o guitarrista Siebren Smink, o contrabaixista Omer Govreen e o baterista Ilia Rayskin. A proposta foi interessante e a execução competente. Tecnicamente, Goleminov é uma boa surpresa, e se Soares não surpreende, é porque já é um dos grandes valores do jazz nacional. Os restantes corresponderam com o que deles se esperava, com destaque para o belo som da guitarra de Smink, que pecou apenas por estar escondida e abafada. Ficamos agora a aguardar novidades de Goleminov, novas ideias e projectos: o futuro está do seu lado.
25 Julho | Domingo
Previsto para acontecer às 11h00, o primeiro bloco de concertos de domingo acabou por ser adiado por causa da chuva, mas acabou por acontecer às 15h00. Mesmo com a alteração de última hora, a mensagem passou e o público (algum) compareceu. O pianista Hugo Raro subiu ao palco com o seu quarteto, levando na bagagem o disco “Connecting the Dots”, lançado no ano passado. A acompanhar Raro estavam três figuras de peso do jazz portuense: João Mortágua no saxofone alto, José Carlos Barbosa no contrabaixo e Marcos Cavaleiro na bateria - os mesmos parceiros da gravação. O pianista lidera a formação e assina todos os temas mas não exige os holofotes, ficando-se pela rectaguarda: o primeiro destaque vai para o saxofone de Mortágua e o segundo para a dinâmica de grupo. Mortágua aplicou a sua agilidade às composições, sem exibicionismos, e a música pontuou-se pelo equilíbrio.
Seguiu-se o “Canto das Sereias” de Yudit Vidal. Contrabaixista, cantora e compositora, Vidal levou ao festival um projecto musical que parte das lendas de sereias para reflectir sobre a condição da mulher e a desigualdade de género. Juntaram-se as cantoras Teresinha Sarmento e Joana Raquel (que já tinha actuado com o Ensemble Robalo), a pianista Catarina Rodrigues e o baterista Gonçalo Ribeiro. O jazz é apenas uma das várias ferramentas de que esta música se serve, indo beber a diferentes mundos – amplitude tal que por vezes leva a desequilíbrios. Além da polivalência da líder, de salientar o sentido rítmico de Ribeiro e a versatilidade da voz de Joana Raquel – nome a ter em atenção nos próximos tempos.
O palco passou depois para João Martins. Com Gabriel Neves (saxofone) e Jorge Loura (guitarra barítono), Martins forma os Troll’s Toy, trio aveirense que acabou de editar “Eksterordinare”, onde o rock e o jazz flirtam sem vergonha. Em nome próprio, ao leme de um quarteto, Martins publicou “Hundred Milliseconds” (via Porta-Jazz), uma outra forma de explorar este cruzamento de mundos. No Palácio de Cristal fez-se acompanhar de Gabriel Neves, Fábio Almeida (saxofones) e Nuno Trocado (guitarra). Os instrumentos dialogam, interlaçam-se e atropelam-se, numa música que está em permanente desafio, sempre a surpreender o ouvinte.
MAZAM é um acrónimo para os nomes dos quatro elementos do grupo que tocou a seguir: Mortágua-AZevedo-Ângelo-Mário. João Mortágua (saxofones), Carlos Azevedo (piano), Miguel Ângelo (contrabaixo) e Mário Costa (bateria) formam este “supergrupo” do jazz nacional e editaram pelo Carimbo Porta-Jazz o seu disco “Land”. Sem Costa, o lugar na bateria foi ocupado por Diogo Alexandre – um dos mais activos talentos da nova geração. Os quatro instrumentistas exibiram a sua habitual categoria, aplicando a sua qualidade técnica ao serviço dos temas, trabalhando com uma notável fluidez, abrindo a escrita à improvisação e articulando-se em excelentes dinâmicas. Sem surpresa, este concerto dos MAZAM foi uma das grandes actuações do festival.
Para terminar, a Concha Acústica acolheu na noite de domingo os dois concertos finais, com os projectos de João Pedro Brandão e André B. Silva. Um dos grandes dinamizadores da Porta-Jazz, também líder do Coreto, o primeiro editou em Novembro do ano passado o álbum “Trama no Navio”. A Orquestra Jazz de Matosinhos tinha desafiado alguns compositores a escrever música original para o filme “O Couraçado Potemkine” e a Brandão foi atribuída a segunda parte, “Drama no Navio”. O saxofonista reaproveitou as partituras, adaptou a música para quarteto e reuniu um grupo: a seu lado (saxofones alto e soprano, flauta), juntaram-se Ricardo Moreira (piano e órgão Hammond), Hugo Carvalhais (contrabaixo) e Marcos Cavaleiro (bateria). Nos jardins do Palácio de Cristal o grupo interpretou ao vivo o material do disco, uma viagem de cerca de 40 minutos, sem interrupções, em que a música vai evoluindo de forma permanente. A música cresceu e atravessou diferentes ambientes, entre momentos solo e colectivos. No sax alto, Brandão exibiu a sua fluência discursiva, Carvalhais mostrou-se excelente no contrabaixo (nunca é demais recordar os seus discos como líder) e Marcos Cavaleiro mais uma vez confirmou a sua eficácia. A maior surpresa foi o pianista, Ricardo Moreira, de quem não conhecíamos obra anterior. Atacando o piano - e, pontualmente, também o órgão -, Moreira pontuou o tempo, aplicando as medidas certas, incrementando a intensidade e mexendo nas brasas para o lume ir crescendo, sempre certeiro. Nos momentos de maior fogo Brandão chegou mesmo a tocar os saxofones alto e soprano em simultâneo (lembrando Roland Kirk) – e música ao vivo também é isto, é espectáculo. Foi um jazz aceso, jazz vivo, jazz que queima. Este foi, sem pingo de dúvida, o melhor concerto de todo o festival.
O guitarrista André B. Silva começou por se mostrar como membro do vertiginoso The Rite of Trio. No ano passado ofertou-nos o ambicioso “The Guit Kune Do”, reunindo cinco (!) guitarristas, além de baixo e bateria: o próprio, AP, Eurico Costa, Francisco Rua e Miguel Moreira nas guitarras, João Próspero no baixo e Diogo Silva na bateria. A apresentação seguiu a matriz do disco, apenas com uma alteração: em vez de Moreira subiu ao palco o guitarrista galego Virxilio da Silva. A actuação abriu com a muralha sónica das cinco guitarras em simultâneo, mostrando que estávamos num universo pouco comum para um festival de jazz. Entre as composições originais de Silva e os arranjos (e pozinhos de Daft Punk?), o septeto explorou uma música original que tem prazer em provocar o ouvinte.
Encerrou desta forma o festival, um evento que conseguiu, apesar de todas as dificuldades e contrariedades, mostrar que a música resiste, que deve ser apreciada ao vivo e que deve ser valorizada. Por todo este esforço, a Porta-Jazz merece o nosso aplauso.