Jazz ao Centro – Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra
E não é que aconteceu mesmo?
Poderia não ter acontecido, dado o período difícil que vivemos, mas a Luso-French Extravaganza cumpriu-se mesmo em Coimbra, no passado fim-de-semana, e os resultados – múltiplos nas características e nas tendências do jazz de hoje – foram entusiasmantes. A jazz.pt sentou-se na primeira fila.
Quando tudo fazia crer que a primeira semana do Jazz ao Centro não iria acontecer, dada a vinda de França da comitiva do Tricollectif e as dificuldades que poderia haver com as viagens em plena segunda vaga do Covid-19, o programa da série Luso-French Extravaganza teve mesmo lugar no passado fim-de-semana. Foram oito os concertos partilhados entre os 10 músicos daquela associação sediada em Orleães e os seis que representaram a cena portuguesa. Adrien Chennebault, Florien Satche, Gabriel Lemaire, Guillaume Aknine, Quentin Biardeau, Robin Mercier e Valentin Ceccaldi deslocaram-se de carrinha até Coimbra e Roberto Negro e Théo Ceccaldi voaram desde Itália, onde tinham tocado na noite anterior. Do lado português estavam presentes os conimbricenses João Camões e Marcelo dos Reis e, idos de Lisboa, Alvaro Rosso (uruguaio de nascimento, mas residente em Portugal há muitos anos), Luís Lopes, Luís Vicente e Mariana Dionísio (lamentavelmente a única mulher incluída). Apenas quatro das actuações eram de projectos já firmados, designadamente dos Montevago de Roberto Negro e Théo Ceccaldi, dos Lent, dos regressados Chamber 4 (já não tocavam há alguns anos) e do solo de Luís Vicente em apresentação do álbum “Maré”. Os demais foram grupos “ad-hoc” formados para a circunstância e que ora se atiraram a improvisações integrais, ora utilizando apenas uns esquissos de estrutura.
Tudo isto sempre seguindo as regras de distanciamento entre cadeiras, lotações máximas predefinidas e máscaras colocadas, com fiscalização constante e, diga-se mesmo, algo excessiva – parecendo até que da parte das autoridades havia a desconfiança de que as coisas não iriam correr bem. O balanço a fazer é mais do que positivo, com a divertida particularidade de algumas actuações musicais terem muito rapidamente afugentado quem ali estava para verificar se nos portávamos correctamente. O jazz criativo do século XXI não é, decididamente, para gostos sanitários.
Luís Lopes / Alvaro Rosso / Adrien Chennebault
O concerto de abertura do festival, e do ciclo franco-português que este incluiu, decorreu no jardim do Colégio da Graça na sexta-feira 23. O anoitecer estava frio e a humidade do ar entrava nos ossos de quem se sentou nas cadeiras espalhadas sobre a relva. O ambiente vivido condicionou a música tocada pelo inédito trio de guitarra, contrabaixo e bateria constituído por Luís Lopes, Alvaro Rosso e Adrien Chennebault que, apesar das boas prestações individuais (mais do que das colectivas, já que o instrumento solista e a secção rítmica pouco conseguiram entrosar-se), nunca levantou voo. E reflectiu-se nas reacções do público, que não aplaudia nas pausas entre peças e essa circunstância confundiu e afectou claramente os músicos – quando na improvisação não existe empatia entre os ditos e a assistência, mesmo que por motivos extramusicais (como terá sido o caso), é a própria música que se ressente disso. Terá sido este, entre todos, o concerto que mais decorreu dentro dos cânones do jazz livre, ainda que estivessem bem patentes alguns elementos de rock e blues, sobretudo da parte de Lopes. Os solos deste foram impecáveis, mas pareceram sempre deslocados das tramas providenciadas pelo contrabaixista e pelo baterista. Estes sim, estiveram em todos os momentos bem colados, parecendo inclusive que não era a primeira vez que Rosso e Chennebault tocavam juntos. Não foi o melhor arranque para a prometida Extravaganza, mas mais por culpa de S. Pedro do que dos envolvidos.
Roberto Negro / Théo Ceccaldi “Montevago”
Mais adiante na noite de dia 23, na antiga igreja do Convento de São Francisco, decorreu a melhor actuação desta primeira metade dos Encontros Internacionais de Jazz de Coimbra. Roberto Negro e Théo Ceccaldi são, sem sombra de dúvida, os grandes trunfos da nova geração do jazz gaulês, e o que fizeram entusiasmou o público que, desta vez, não se coibiu de demonstrar a sua aprovação. Na génese do projecto Montevago está a releitura das músicas de dança tradicionais de várias partes do mundo, mas o que os ouvimos fazer ultrapassou muito esse âmbito. Se os uníssonos eram comuns na exposição dos temas, o foco da música foi para as sincronias criadas, mesmo quando em contraponto, com métricas cumpridas a dois com um grau de exigência e dificuldade que assombrava e que implicava que os dois intervenientes estivessem constantemente de olhos pregados um no outro. Com fluxos a mudarem repentinamente de direcção, sem quaisquer falhas, e inícios e fins milimetricamente ajustados, tornou-se impossível discernir o que estava composto e o que era improvisado. Complexa na urdidura, mas bastante directa na comunicabilidade, a música apresentada foi de um nível de excelência a que não vai sendo habitual chegar-se.
Lent
No Salão Brazil, logo a seguir, estavam os Lent à nossa espera, um grupo francês com influências do prog e do metal e importações de jazz, versão free/pós-bop. Uma surpresa nos estava reservada: o declamador de serviço, Robin Mercier (não eram poucas as semelhanças com o nosso Adolfo Luxúria Canibal), disse os textos num Português quase impecável na gramática e na pronúncia – isto porque o mesmo, como ficámos a saber, viveu em Portugal alguns anos. No ADN do grupo está a ideia de tocar rock muito lentamente, mas se tal por vezes aconteceu quando a música se colocava atrás da palavra, os “riffs” que surgiam de permeio eram explosivos e galopantes. Assentes na força motórica garantida pelo baixo do habitualmente violoncelista Valentin Ceccaldi e pela bateria de Florien Satche, a guitarra eléctrica de Guillaume Aknine parecia por vezes um sintetizador ou um órgão, desconcertando-nos, e o saxofone tenor de Gabriel Lemaire furava a nuvem de som com estridências de faca que lembravam por vezes alguém como Albert Ayler ou, mais recentemente, John Dikeman. Foi o extremo oposto do camerismo anteriormente escutado, mais uma vez recordando-nos que uma característica da trupe Tricollectif é a transfiguração musical. Apetecia levantarmo-nos das cadeiras e pularmos, até porque a polícia do Covid já tinha fugido de mãos nos ouvidos, mas o juízo imperou.
Luís Vicente
O cartaz do sábado seguinte, dia 24, começou ao fim da tarde com um solo de Luís Vicente no Museu Machado de Castro. O trompetista de Lisboa iniciou a sua performance com um jogo manipulativo da reverberação natural do espaço, brincando com as duplicidades criadas entre uma sonoridade algo barroca ou renascentista e as características intrínsecas daquele que é um dos instrumentos chave das bandas de marcha desde o dixieland. Depressa decidiu, no entanto, ignorar essa condicionante acústico-arquitectónica para explorar outras ambivalências e colocá-las em concordância estratégica: por um lado entregando-se ao fraseio típico do jazz e por outro pesquisando os borborigmos texturais do reducionismo, como que numa reconciliação das abordagens de Don Cherry e de Axel Dorner, em alternâncias e conjugações de processos. Resultado: a prestação de Vicente foi um dos pontos altos da Luso-French Extravaganza, e precisamente no sentido implícito de fantasiação por via musical. Nesse aspecto, chegou mesmo a ir mais longe do que a música que está gravada no CD “Maré”.
Chamber 4
Já fazia anos que ansiávamos por um concerto dos Chamber 4 de Marcelo dos Reis, Luís Vicente e dos irmãos Théo e Valentin Ceccaldi, quarteto interrompido devido aos muitos afazeres destes dois últimos na cena do Hexágono. O regresso ao palco do grupo fez-se da melhor maneira igualmente a 24 de Outubro, no privilegiado espaço da igreja do Convento de São Francisco. O cenário não podia ser mais sugestivo do que poderia acontecer, com o gigantesco monólito do fundo iluminado a verde com a parede atrás em amarelo, quase parecendo a capa de “Birds of Fire”, da Mahavishnu Orchestra, e depois mudando para rosa com envolvimento vermelho. A longa improvisação desenvolvida só não era atmosférica porque tinha um carácter imersivo, com uma contenção de volume e de quantidade de notas e um cunho de música de câmara que foram de uma beleza assaz especial. Os Ceccaldi construíram o esqueleto das construções com o violino e o violoncelo, mergulhando resolutamente na tradição clássica, enquanto dos Reis ia introduzindo elementos que tinham mais que ver com a folk guitarrística do que com qualquer outra linhagem e Vicente interveio como um herdeiro de Kenny Wheeler na fase em que este convivia com John Stevens e Evan Parker. No fim, o trompetista comentou que quase não tinha tocado e essa foi a abordagem também de todos os restantes: cada um entendeu a sua participação como uma parcialidade, com o todo a funcionar pela multiplicação (mais do que por uma simples soma) de todas as quatro partes.
TriCoimbra 7
Porque referir todos os nomes deste septeto que fechou a noite de 24 no Salão Brazil era tudo menos prático, deu-se-lhe um nome: TriCoimbra 7. Roberto Negro, João Camões, Gabriel Lemaire, Quentin Biardeau, Mariana Dionísio, Alvaro Rosso e Adrien Chennebault foram os interlocutores e se poderíamos temer que a performance consequente resvalasse para o “tudo ao monte e fé em Deus” de alguma má improvisação que por aí se faz, dentro e fora de portas, aquilo a que assistimos foi bem diferente, entendendo-se até que terá havido algum planeamento prévio. Primeiro entraram os saxofones, a voz e a viola, depois estes retiraram-se para dar a vez ao piano, ao contrabaixo e à bateria, e se na sequência todos se juntaram foi para iniciar uma metodologia de entradas e saídas de intervenientes, muitas vezes reduzindo-se a quase “big band” a trios, duos e até solos absolutos. Com tanta mistura de timbres e tão grande poder decibélico, a prestação foi inesperadamente comedida, preferindo-se uma suavidade de expressão que só muito episodicamente subiu de intensidade. Houve lugar tanto para a individualidade e para as pequenas interacções como para o colectivo, com espaços e nenhuns atropelos de ego, o que só por si é louvável, seja no aspecto da musicalidade conseguida como no político e social, dimensão essa que muitas vezes é hoje esquecida numa prática musical que parece ignorar as suas premissas (e objectivos) originais. Sim, esteve ali, diante de nós, o esboço de uma sociedade alternativa, de pessoas livres e iguais.
Mariana Dionísio / João Camões / Guillaume Aknine
O primeiro concerto da tarde de domingo, 25, foi outro dos mais entusiasmantes. No amplo espaço do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, entre enormes esculturas de José Pedro Croft, actuou outra formação antes inexistente, a que reuniu a cantora Mariana Dionísio com a viola de João Camões e a guitarra – desta feita acústica – de Guillaume Aknine. Uma constipação reduzira a amplitude de agudos e graves de Dionísio, mas esta tem um manancial de recursos vocais que lhe permitiu ultrapassar essa limitação. Tanto assim que o seu contributo foi notável: está aqui alguém a quem devemos prestar toda a atenção. Por influência, decerto, do espaço envolvente, a actuação esteve muito perto dos ambientes da música sacra, ainda que nunca de forma demasiado óbvia. A beleza atingida chegou a ser comovente, tão esmagadora nos efeitos auditivos quanto minimalista na entrega dos elementos que a iam criando. À saída alguém questionou a jazzidade do que se ouvira, mas o certo é que a música tocada tinha o “drive” e o tipo de entrega que o jazz foi emprestando ao longo do tempo a outras músicas. E foi, muito explicitamente, improvisado na íntegra, em nenhum ponto do tranquilo fluir dos acontecimentos coincidindo com qualquer cartilha em vigor quanto aos modos de improvisar. Há caminhos que ainda podem ser desbravados e este foi um especialíssimo exemplo.
Roulette Baguete
Duas guitarras com respectivas pedaleiras, um saxofone e uma bateria, envolvendo Luís Lopes, Marcelo dos Reis, Quentin Biardeau e Florien Satche no palco do Salão Brazil, a concluir a primeira parte dos Encontros. O nome da banda foi decidido minutos antes de os quatro subirem à mesma, Roulette Baguette, até porque havia um factor de necessidade: o concerto foi gravado em multipistas, com a possibilidade de ser editado em disco. A designação coincide em tudo com a extrema irreverência musical de que demos conta: refere-se ao acto da masturbação, mas com referência no pão que os franceses tanto apreciam e – helás – não encontraram nas pastelarias de Coimbra. De masturbatória é que a música nada teve: fomos assaltados por um punk-metal-noise-jazz de uma densidade e pujança implacáveis, mas que era tanto uma manifestação de júbilo quanto de raiva e não obliterava o pormenor. Neste particular, foi interessante observar como Marcelo dos Reis ia introduzindo materiais mais pausados e discretos nas intrigas, com um sentido de oportunidade e de contrariação que era mesmo o que faltava para o jorro de som ganhar outras implicações. Terminada a Luso-French Extravaganza, falta assistir no próximo fim-de-semana aos “gigs” dos Simorgh de João Lobo com Norberto Lobo e Soet Kempeneer, aos Oxy Patina de Mário Costa com Benoît Delbecq e Bruno Chevillon, à parceria de Burnt Friedmann com João Pais Filipe e aos novíssimos Quang Ny Lis de Rita Maria (mais uma só mulher no meio de tantos homens, ai ai) com João Mortágua e Mané Fernandes.