João Almeida + César Burago + Catarata
Sobreviventes
Três concertos numa mesma sessão, dois deles a solo, permitiram-nos averiguar que a música criativa nacional está de muito boa saúde, apesar do silêncio de meses pelo qual passou e das contingências que vivemos. No meio do encanto fica a sensação de que, apesar de tudo, sobrevivemos.
Não há máscara pretensamente antipandémica que tolhe a criatividade. Uma das coisas que mais têm agradado na retoma dos concertos após o confinamento ditado pelo estado de emergência tem sido esta: os meses de paragem a que fomos obrigados não colocaram em causa as boas ideias e as boas práticas musicais que já corriam pelo nosso país. Assim ficou evidente na sessão tripla que a Nariz Entupido levou à SMUP no passado dia 10 de Outubro, com um cartaz que incluía solos de João Almeida e César Burago e a prestação de um trio que vinha chamando as atenções antes de as salas de espectáculos serem encerradas, Catarata. A data teve um extra que é de assinalar: uma instalação do colectivo artístico Siroco, que juntou novas camadas de pano e de cor aos cortinados do palco. Fez todo o sentido, sabendo que os próprios elementos dos Catarata, André Tasso, Bruno Humberto e João Ferro Martins, são igualmente artistas plásticos.
Os concertos tiveram início com a actuação de João Almeida, munido do seu habitual trompete e de um novo instrumento, um “pocket trumpet” semelhante aos de Joe McPhee e Sei Miguel. A circunstância ainda mais acentuou as referências do jovem músico no veterano do jazz criativo português, sem que em nenhuma ocasião procurasse seguir as suas pisadas. E se em muitas ocasiões Almeida explorou as mesmas técnicas extensivas que distinguiram Peter Evans, de quem é aluno, a música que ouvimos seguiu por outros caminhos. A actuação a sós, nesta ocasião como no recentemente editado “Solo Sessions”, possibilitou que acompanhássemos ao pormenor a forma como este improvisador pensa e sente o seu discurso: estava tudo exposto, a nu, sem artifícios. Os fraseados de João Almeida alternaram entre o abrupto corte da linearidade expositiva, para benefício das dinâmicas, e a repetição de motivos, numa articulação engenhosa e desafiante para os ouvidos. Do mesmo modo, foi saltando da tonalidade, e até da melodia convencional, para a produção de ruído, identificando este como o prolongamento do próprio processo respiratório. Nada estava excluído e até por isso a sua intervenção foi notável.
Seguiu-se César Burago, percussionista que conhecemos da sua longa colaboração com o já mencionado Sei Miguel, numa coincidência que poderá não ter sido acidental na cabeça do programador e mentor da Nariz Entupido, João Castro. Podemos dizer sem exageros que Burago é um cientista do ritmo e das mais pequenas propriedades dos já por si pequenos instrumentos que utiliza. A sua arte advém de um minucioso estudo de possibilidades e o que fez na SMUP decorreu sempre do detalhe e da nuance, cada diminuto pormenor importando tanto quanto o conjunto das peças que interpretou, notadas em – também eles – pequenos cartões. E se a máxima concentração do público era invocada, não facilitando, a capacidade comunicativa do músico, que ia falando com as pessoas presentes, muito ajudou no processo. Foi surpreendente – ainda não tínhamos ouvido César Burago neste formato – e foi especialmente bom o que aconteceu.
Os Catarata fecharam a sessão sem defraudarem as expectativas por eles mesmos criadas quando ainda não ouvíamos música ao vivo de máscara. Numa abordagem encantatória e até hipnótica, mas sem incorrer na vulgata da música electrónica ou electroacústica por “drones” que vai sendo a dominante, este trio de guitarra, sintetizadores e demais gadgeteria (leitor / gravador de cassetes, rádio, objectos sopráveis e processáveis, bombo e outras percussões) transportou-nos numa viagem que tinha tanto de planante quanto de terráquea, integrando o “beat” pelo lado menos óbvio e um onirismo que escapava à cartilha da psicadelia hoje tão na moda. O que fizeram tinha grão e dimensão humana, era orgânico, palpável, cada mescla de sons coincidindo inteiramente com o que os víamos fazer. No final, o grupo chamou João Almeida e César Burago para uma improvisação conjunta e esta foi como que a cereja no topo do bolo. Nunca estas personagens da nossa cena dita “experimental” tinham tocado juntos, mas a empatia e o entrosamento conseguidos ficarão, decerto, na memória dos presentes.