O Jazz tem Voz!
Um sinal de esperança
Nasceu um novo festival em Lisboa e o facto de tal ter acontecido, no passado fim-de-semana, num contexto tão difícil como o presente foi um acto de resistência, reforçado pelo seu carácter solidário. O local escolhido foi o A Voz do Operário, um espaço a ter em conta futuramente. A jazz.pt esteve presente.
Numa época marcada pela pandemia, pelos cancelamentos de espectáculos e pela quase ausência de trabalho para músicos e técnicos, nasceu surpreendentemente um novo festival de jazz. O Jazz tem Voz! surgiu pela mão da produtora Clave na Mão, com o apoio do Fundo de Emergência Social da Câmara Municipal de Lisboa, tendo-se realizado entre os dias 9 e 11 de Outubro em Lisboa. O programa apresentou quatro concertos de músicos portugueses, com três deles no palco de A Voz do Operário (daí o nome do festival) e um num largo ao ar livre (e entrada livre), mais uma sessão didáctica (para o público infantil), uma exposição de cartazes históricos do Hot Clube de Portugal (a partir do livro “Jazz Posters” de João Fonseca), um "workshop" de ilustração de André Letria com alunos da escola de A Voz do Operário e uma angariação de fundos para a União Audiovisual, que tem apoiado artistas e técnicos em dificuldade.
Paredes e mais
O festival arrancou na noite de sexta-feira, dia 9, com a actuação do Bernardo Moreira Sexteto, que apresentou o projecto “Entre Paredes”. Em 2003, Moreira gravou o disco “Ao Paredes Confesso”, homenagem ao cancioneiro de Carlos Paredes com reinterpretações jazzísticas originais. “Entre Paredes” é uma recuperação e continuação dessa ideia, agora com músicos diferentes e uma abordagem mais alargada que, apesar de manter a referência em Paredes, presta uma homenagem lata à música portuguesa. Perante uma sala quase esgotada, o sexteto expôs a sua qualidade técnica, reflexo da qualidade individual de cada um dos intervenientes. Ao centro estava o contrabaixo do líder Moreira, com dois sopros na frente, Tomás Marques (saxofone, talento da novíssima geração) e João Moreira (trompete), apoiados por Mário Delgado (guitarra), Ricardo Dias (piano) e Joel Silva (bateria).
Além de Paredes, a “setlist” incluiu temas tradicionais e canções de Cristina Branco e Zeca Afonso. Um dos destaques foi o clássico “Verdes Anos”, numa versão despida apenas com trompete e piano que resultou verdadeiramente memorável. A interpretação de “A Morte Saiu à Rua” puxou pelo ritmo e o grupo mostrou-se exuberante. Além do contrabaixo de Bernardo Moreira, que exibiu versatilidade (ora pujante a marcar, ora sensível a desenhar melodias), os holofotes focaram, sobretudo, o trompete expressivo de Moreira e o saxofone vibrante de Tomás Marques, um jovem talento que se afirma cada vez mais. Apesar de nesta ocasião ter trabalhado num espaço reservado, o veterano Mário Delgado não escondeu a sua guitarra preciosa adornada com efeitos. Após um final muito aplaudido, a banda foi obrigada a regressar para um “encore”. Foi um arranque perfeito para o festival.
Estranhamente interessante
O segundo dia, sábado, abriu com uma conversa-debate, que reuniu três músicos - Beatriz Nunes, Gonçalo Marques e Demian Cabaud – com moderação de Sérgio Machado Letria, no A Voz do Operário. Seguiu-se um concerto ao ar livre, num espaço público e com entrada livre. O trio Quang Ny Lys fez a sua estreia ao vivo no Largo de Santa Marinha, na zona da Graça, em Lisboa, com todos os lugares sentados ocupados, muita gente em pé e até pessoas nas janelas de casa. Este grupo junta três nomes grandes do jazz português, dois deles vencedores do Prémio RTP/Festa do Jazz de Músico do Ano: Rita Maria (cantora) e João Mortágua (saxofonista) já foram galardoados. A eles junta-se Mané Fernandes, guitarrista do Porto que tem mostrado a sua originalidade ao leme de projectos como BounceLab e The Mantra of the pHat Lotus.
A premissa - adaptar “standards” do cancioneiro jazzístico - poderia soar banal, mas pelos músicos envolvidos desconfiávamos que o projecto iria surpreender. O grupo faz uma exploração de conhecidos temas da história do jazz de uma forma muito original. Servindo-se de diversos efeitos electrónicos, na voz, na guitarra e no saxofone, desenvolveu uma exploração atmosférica de clássicos como “I Get Along Without You Very Well” ou “You Go to My Head”. Estas velhas músicas ganham novas cores com a abordagem criativa do grupo, resultando estranhamente interessante.
O segundo dia de festival fechou com o grupo do saxofonista César Cardoso, que apresentou ao vivo o material do álbum “Dice of Tenors”, editado em 2020, que homenageia os tenores históricos. Estiveram em palco César Cardoso (saxofone tenor), José Soares (saxofone alto), Luís Cunha (trompete), Lars Arens (trombone), Jeffery Davis (vibrafone), Óscar Graça (piano), Demian Cabaud (contrabaixo) e Marcos Cavaleiro (bateria). Infelizmente, não tivemos oportunidade de assistir a esta actuação.
Excelente notícia
No domingo o festival arrancou de manhã, com a sessão O Jazz é Fixe!. Perante uma sala cheia de crianças e adultos acompanhantes, o trio constituído por Vânia Couto (voz e guitarra), Alvaro Rosso (contrabaixo) e João Mortágua (saxofone alto) serviu-se dos sons dos instrumentos para surpreender e cativar a atenção da pequenada, um público jovem, mas exigente. Para fechar, tocou no final de tarde de domingo o duo Songbird.
Este projecto, que junta Luís Figueiredo no piano e João Hasselberg no contrabaixo, explora conhecidas melodias populares de um modo despido, mas cativante, tendo conseguido conquistar de imediato os espectadores. A dupla confirmou os predicados anunciados pelos dois discos que já lançou (“Vol. I” e “Vol. II”): música delicada, com eixo na expressão e no sentimento. Foi uma boa despedida. O Jazz tem Voz! é, decididamente, uma excelente notícia: pela oportunidade de dar palco a músicos portugueses, pela luz de esperança que traz, pela vertente solidária. E também por ter aberto ao público as portas do A Voz do Operário, que mostrou ter boas condições para acolher mais eventos. Que venham mais edições.