Jazz 2020
Teremos sempre jazz
Ainda a braços com a insidiosa pandemia de covid-19, o jazz ao vivo voltou à Fundação Calouste Gulbenkian. Em dois fins-de-semana, o colaborativo Jazz 2020 ofereceu-nos, em Lisboa, oito concertos de projetos esteticamente diversos. De máscara e cumprindo o distanciamento físico, a jazz.pt esteve lá e relata o que viu e ouviu.
Lentamente, o jazz lá vai desconfinando. Quatro meses e meio depois de o SARS-CoV-2 ter virado do avesso as várias dimensões das nossas vidas – nomeadamente a da fruição cultural no espaço público (como bem aqui lembrou Gonçalo Falcão, para nós, que gostamos de música tocada ao vivo, «os concertos são um bem de primeira necessidade») –, a situação parece querer voltar aos carris, através da adoção de um conjunto de atitudes e regras (que algum perseveram em descumprir), a um novo “normal”, cujos contornos ainda estão envoltos em incerteza. Parafraseando a canção, foi o fim do mundo como o conhecíamos.
Os músicos – que têm nos ajuntamentos um dos pilares de subsistência – foram das classes profissionais mais afetadas pela pandemia. Perante a impossibilidade de realização da 37.ª edição do Jazz em Agosto, a Fundação Calouste Gulbenkian – em parceria com o Jazz ao Centro Clube (casa-mãe da jazz.pt) e a Associação Porta-Jazz, organizações sedeadas, respetivamente, em Coimbra e no Porto – organizaram o Jazz 2020, evento que focou atenções exclusivamente em músicos e formações nacionais, postura que se saudaria em qualquer circunstância, mais ainda quando se conhecem as dificuldades que os músicos nacionais estão a viver, privados quer de oportunidades para evoluir musicalmente quer de uma fonte essencial de rendimento. O Jazz 2020 constituiu-se, assim, como um relevante ensejo para apoiar as mais de seis dezenas de músicos e as equipas técnicas envolvidas na produção do festival.
No plano organizativo, a Gulbenkian não deixou os seus créditos por mãos alheias, mesmo no domínio dos rigores sanitários hodiernos: bilhetes controlados por leitura digital do código de barras (sem toque), Anfiteatro ao Ar Livre setorizado e com acessos específicos, lugares ocupados com dois de intervalo (estes assinalados por faixas vermelhas), higienização das mãos, público mascarado, assistentes também de máscara e viseira. Tudo a postos, como manda a civilidade e o respeito nos tempos excecionais que estamos a viver.
Coreto
Dividido por dois fins-de-semana, o Jazz 2020 arrancou na sexta-feira, 31 de julho, com o Coreto, formação incontornável do jazz nacional na última década (o soberbo “Aljamia”, disco de estreia, é de 2012). Agregando algum do escol jazzístico portuense – que gravita em torno da Associação Porta-Jazz –, a formação interpreta, sobretudo, as composições do saxofonista e flautista João Pedro Brandão, que ao rigor composicional alia a urgência da improvisação e o gosto pelo cruzar de fronteiras, numa abordagem avessa a catalogações.
As raízes profundas da sonoridade da formação assentam no acervo jazzístico, com enfoque nas orquestras de bebop (embora se descortinem, aqui e ali, alguns ecos da era do swing, até num certo modo “ellingtoniano” de dirigir), a que se juntam elementos da música erudita contemporânea e da livre improvisação. Brandão, já o sabíamos, é particularmente hábil na gestão judiciosa de harmonias, texturas e timbres, concedendo significativo espaço de manobra criativa aos restantes instrumentistas (note-se que todos solaram).
Embora centrada no mais recente disco da formação – “Analog”, de 2017 –, a prestação iniciou-se com a atmosfera aveludada de “Raiz” (composição da autoria do guitarrista AP, faixa inaugural do também muito recomendável “Mergulho”, de 2014), que contou com um belo solo do trompetista Ricardo Formoso. Seguiu-se a esdrúxula serenidade de “Sob Escuta”, pontuada por uníssonos poderosos de que emanaram ótimos solos do saxofonista José Pedro Coelho e da trompetista Susana Santos Silva. De “Radio” perdurou na memória o dueto entre o piano do cada vez mais relevante Hugo Raro e o trombone de Andreia Santos (atenção a ela).
A estrutura intrincada de “SOS”, dividida naquilo que parecem ser microsecções, é marcada pela guitarra de AP, que simula o pedido de socorro em código morse. José Carlos Barbosa solou gravemente com arco e Rui Teixeira voltou a mostrar por que razão é, há muito (pelo menos para estes ouvidos), o melhor saxofonista barítono português. “Transistor” teve um solo de travo “vintage” cortesia do saxofonista Hugo Ciríaco. O vibrante “Curto Circuito”, assente numa base rítmica devedora do drum’n’bass, deu-nos um flamejante solo do trombonista Daniel Dias. Para o final ficou reservada uma peça em estreia, “Born into Nature” (se bem captei), de pendor multidirecional, que deixou água na boca para um próximo disco. Como disse João Pedro Brandão, ficou provado que «há jazz antes, durante e depois da pandemia». (AB)
Susana Santos Silva Impermanence
Na noite de sábado (1 de agosto) foi a vez de se apresentar o quinteto Impermanence, liderado por Susana Santos Silva. A formação, que desde há muito nos aguça os sentidos, apresentou o seu mais recente registo, “The Ocean Inside a Stone” (com chancela da Carimbo Porta-Jazz e já apontado aos píncaros das listas dos melhores do ano), cuja abordagem constitui uma guinada no rumo estético que reconhecíamos vinha a ser prosseguido pelo grupo.
O universo idiossincrático e esteticamente amplo da trompetista e compositora – natural do Porto e a residir atualmente em Estocolmo – espraia-se por vários projetos, sendo aqui desenvolvido pelos cinco músicos em estreita articulação e denodada criatividade, desafiando normas e cruzando diferentes territórios sonoros, do jazz mais avançado ao rock, passando pelas sonoridades do mundo e por outros de incerta geografia. O resultado é um caleidoscópio sonoro inclassificável que tanto nos transporta para atmosferas planantes como injeta alta voltagem, mormente por via do baixo elétrico processado (por vezes no limite da saturação) do sueco Torbjörn Zetterberg, exímio na criação das linhas hipnóticas que servem de pedra angular para desenvolvimentos ulteriores. O grupo trabalha texturas e harmonias conjugando com apuro os planos coletivo e individual. Da massa sonora, ora compacta ora mais rarefeita, emergem fragmentos melódicos, por vezes encantatórios.
Os sopros da líder e do saxofonista e flautista João Pedro Brandão (se na véspera o escutáramos sobretudo como estratego, neste concerto foi o seu lado de notável instrumentista e improvisador que sobressaiu) estão em permanente interação (até quando dialogam com o silêncio), ora aproximando-se em apertados uníssonos, ora afastando-se em jogos contrapontísticos. Hugo Raro desdobrou-se entre o piano (evocando, a espaços, a tradição do jazz) e os sintetizadores, ficando na lembrança a passagem valsante em que emulou o som de um velho realejo (Zetterberg secundou na voz e Brandão na flauta “piccolo”). Marcos Cavaleiro é um baterista versátil e eficaz, tanto nos momentos ritmicamente poderosos como naqueles em que explora uma vertente mais detalhística. Um grande concerto de uma formação que não para de nos surpreender. (AB)
Angélica V. Salvi + The Selva
O serão dominical (2 de agosto) foi mais ventoso e trouxe dose dupla. Na primeira parte, a harpista espanhola Angélica Salvi – há vários anos radicada na cidade do Porto e com múltiplas colaborações com músicos portugueses – reforçou, aqui em solitário formato, a forma exemplar como expande as possibilidades orgânicas do instrumento inventado no século XVIII (a variante com pedais) por Celestin Hochbrücker, acoplando-o a dispositivos eletrónicos para criar um universo sonoro muito particular.
Como se a harpa fosse um prolongamento natural do seu corpo, a autora de “Phantone”, belo disco a solo editado no ano passado, explorou diferentes paisagens sonoras invariavelmente delicadas, com sobriedade e bom gosto. Ofereceu-nos música de uma tal beleza que qualquer adjetivação a relativizaria. Arrisco, porém. A breve, mas eloquente, apresentação de Salvi foi um verdadeiro bálsamo para a mente, um raio de luz a brilhar num mundo que escurece a cada dia que passa.
Antecâmara ideal para o derradeiro concerto do primeiro fim de semana do Jazz 2020, com The Selva, trio de configuração instrumental inusitada e difícil (dois cordofones mais bateria) e responsável por dois notáveis registos, “The Selva” (2017) – o preferido do autor destas linhas – e “Canícula Rosa” (2019). O contrabaixista Gonçalo Almeida, o violoncelista Ricardo Jacinto e o baterista Nuno Morão convocaram-nos para uma jornada por diferentes tempos (da música do renascimento ao minimalismo sujo num estalar de dedos) e geografias (os sons das partes sul e oriental da bacia do Mediterrâneo), através da utilização de diferentes técnicas (pizzicato, com arco, acessórios diversos, processamentos eletrónicos) que alargam e afastam (no caso contrabaixo vs. violoncelo) os perímetros sónicos convencionais dos respetivos instrumentos.
The Selva serviram-nos a sua música de contornos camerísticos saudavelmente desconstruídos e reequilibrados, com elementos que vão coalescendo e se desagregando, prenhe de pormenores e súbitas mudanças de direção. Houve certamente motivos burilados de forma mais interessante do que outros, certas ideias pareciam reclamar por diferentes desenvolvimentos (por vezes ficou no ar uma certa noção de suspensão ou mesmo de incompletude), mas no cômputo global o resultado foi claramente positivo. (AB)
Daniel Bernardes Trio & Drumming GP
No primeiro dia do segundo fim-de-semana do Jazz 2020 subiu ao palco o trio de Daniel Bernardes, acolitado pelo quarteto Drumming GP. Quer isto dizer que ao trio de piano, contrabaixo e bateria se juntaram uma marimba, dois vibrafones e um glockenspiel. O concerto tocou “Liturgy of the Birds – in Memoriam Olivier Messiaen”, editado no final de 2019 pela Clean Feed, mais um tema inédito, composto propositadamente para o festival. O disco de Bernardes é uma obra magnífica que usa o piano para a criação de padrões que sincronizam e entram em fase com os ritmos da percussão. Esta, por seu turno, soa a uma das melhores bandas de Frank Zappa, quando tinha Ruth Underwood na marimba, no xilofone e também no glockenspiel: a conjugação dos graves de madeira com os metálicos é uma ligação que Bernardes agora recupera, usando-a de outro modo, mas que soa magnificamente à banda de “Zappa In New York”.
Apesar de a música assentar em padrões rítmicos ela oferece-nos muito mais, com melodias inteligentes e um trabalho minucioso de construção rítmica. O trio de Daniel Bernardes conta com o excelente contrabaixo de António Quintino e o grande Mário Costa na bateria. Os padrões rítmicos em permanente mutação e a beleza da escrita fazem da audição deste grupo algo de especial. Foi este, para mim, o ponto mais alto deste jazz em Agosto. Importante não deixar de referir a segurança do quarteto Drumming, indispensável para que esta música soe a perfeição. (GF)
João Lencastre Parallel Realities
Com o sábado vieram João Lencastre e os seus pares. O concerto começou intenso e desfocado, mostrando fome de palco e uma voracidade adolescente por parte dos músicos. Demasiado cheio, e demasiado intenso, o grupo de “Parallel Realities” (disco de 2019) arrancou com uma afirmação sonora: a de querer estar ali. Depois do primeiro tema, totalmente improvisado ou preso apenas a instruções gerais, a música prosseguiu em situações mais pré-controladas ou definidas. A formação de piano, contrabaixo ou baixo eléctrico com eletrónica, guitarra elétrica, saxofone tenor e bateria mostrou ter inúmeros argumentos para manter o concerto vivo e interessante.
Foi um prazer focarmo-nos no piano de Rodrigo Pinheiro ou nos baixos de João Hasselberg. A guitarra de Pedro Branco, a princípio demasiado baixa, acabou por ficar excessivamente alta, acompanhando o crescendo cinético do músico. Albert Cirera, o saxofonista catalão que conseguiu chegar a Lisboa, não deixou notas marcantes e João Lencastre, que organiza e coordena o grupo, tocou bem e acabou por conseguir manter – com Pinheiro – uma estrutura lógica que agarrou a música dispersa dos outros três concertantes. (GF)
Lantana + João Mortágua Dentro da Janela
Chegou o último dia do festival deste ano com dois concertos. O primeiro com um sexteto feminino e o segundo com um quinteto masculino. No grupo inicial predominam as cordas, com dois violoncelos e um violino, a que se soma voz, electrónica e trompete. Pareceu-nos estar a ouvir um prelúdio para uma música que não será tocada. O concerto foi curto, aproximadamente 40 minutos, o tempo ideal para que aquela música se sustentasse. Os violoncelos de Helena Espvall e de Joana Guerra foram os que mais contribuíram para a música do colectivo. O trompete de Anna Piosik produz um contraste interessante e foi o elemento com um processo de improvisação mais consistente, parando para ouvir e intervindo pontualmente com ideias adequadas. O grupo soa a um "work-in-progess" num espaço sonoro em expansão, produzindo uma música enigmática e pesarosa, numa estranha forma de música ambiental.
A sessão era de dose dupla e logo após a saída de palco das Lantana, montaram-se os instrumentos para a banda de João Mortágua. O saxofonista portuense resolveu fazer um concerto completo, ignorando que os espectadores já carregavam com 40 minutos de música. Tecnicamente muito ágil e completo, Mortágua escreve música que parte de ideias simples, quase canções populares, e trabalha-as construindo pequenos satélites que orbitam em torno daqueles centros. Ficamos com temas que são simultaneamente simples e complexos e que estão muito bem trabalhados para serem distribuídos pelo quinteto. A guitarra eléctrica de Miguel Moreira é o elemento que mais se distingue, actuando como um “joker” no som mais tradicional do grupo, usando abundantemente os efeitos da pedaleira e acrescentando sonoridades inopinadas. Foi pena não se ter gerido o tempo com cuidado, pois passadas duas horas sentados no almofadado cimento do anfiteatro, a noite começou a soar a cansaço.
Nota final: não é fácil, neste contexto pandémico, fazer crítica a concertos. Não que não tenha havido momentos fracos, exageros, falhas e, por vezes, improvisação pobre ou demasiado evidente. Mas seis meses depois “disto tudo”, poder ouvir música ao vivo parece uma dádiva. A crítica parece ser mais própria para outros tempos. (GF)