Festival Porta-Jazz
Motivos para comemorar
O festival da Associação Porta-Jazz cumpriu 10 anos de existência com uma edição que primou pela superior qualidade das propostas e por uma extraordinária adesão do público do Porto. Passada uma década da sua fundação, o esforço dos músicos de jazz da Invicta traduziu-se em excelente música e no interesse da população local. Motivos para comemorar, sem dúvida.
O Festival Porta-Jazz comemorou o seu 10º aniversário – e uma década de existência da Porta-Jazz – com uma edição realizada nos passados dias 7, 8 e 9 de Fevereiro que fez o pleno aos níveis da qualidade musical em cartaz e do número de público que respondeu ao chamamento da associação portuense de músicos de jazz, esgotando, ou perto disso, os vários espaços providenciados pelo Rivoli, designadamente os grande e pequeno auditórios, o palco, o subpalco e o café daquele teatro do Porto. A jazz.pt esteve presente e este é o testemunho de um esforço organizativo que reflectiu da melhor maneira o excepcional momento que o jazz da Invicta está a viver, com sentido de colectivo e de colaboração.
Expectativas cumpridas
Especial curiosidade suscitavam os projectos em estreia, designadamente os Pulse de Ricardo Coelho com o baixista brasileiro Frederico Heliodoro como convidado especial, o novo repertório (o do álbum “The Ocean Inside a Stone”, apresentado na ocasião) dos Impermanence de Susana Santos Silva, o regresso aos palcos de Hugo Carvalhais com outra novidade, “Ascetica”, e a música que o galego Ricardo Formoso iria gravar nos dias seguintes com um grupo que incluía Seamus Blake e Albert Bover, de nome “Implosão”. Pois comecemos este relato por eles…
Membro dos The Mantra of the pHat Lotus de Mané Fernandes, nos Pulse o vibrafonista (também tocando marimba) Ricardo Coelho tinha desta vez o guitarrista (e vocalista num par de temas) como “sideman”, coincidindo a música dos dois grupos numa semelhante adesão ao “groove”. No caso do quinteto que tocou a 8 de Fevereiro a matriz escolhida passou por revitalizar a herança do melhor que ficou do jazz de fusão da década de 1970, em composições por vezes especialmente intrincadas e que deram largo espaço para a improvisação. Sobretudo com os, notáveis, solos de Coelho, mas também evidenciando os contributos de todos os demais intervenientes, o teclista José Diogo Martins, os já referidos Fernandes e Heliodoro e o baterista (fundamental para a energia comunicada à assistência) Diogo Alexandre. Se a receita estava estabelecida, o grau de frescura desta leitura muito actual tirou-lhe qualquer indício de revivalismo.
No mesmo dia, actuaram uns Impermanence bem diferentes do que já lhes conhecíamos. Em termos de sonoridade, com Torbjorn Zetterberg a tocar um baixo eléctrico sujo de efeitos e processamentos, e com o pianista Hugo Raro a focar-se, sobretudo, no sintetizador, mas igualmente dos materiais propostos. Ouvimos um avant-jazz tintado de rock, com magníficos solos de trompete por Susana Santos Silva e de saxofone alto e flauta por João Pedro Brandão, num alinhamento que por vezes resvalou para o noise e que, pelo meio, em altíssimo contraste, incluiu uma valsa sustentada por uma melodia em que os teclados mimetizaram os típicos timbres de um realejo. Num tempo em que todas as inovações pareciam já ter sido realizadas, eis que o grupo da trompetista hoje residente na Suécia soube reinventar-se e oferecer-nos algo de inesperado.
A inclusão de um órgão, pelas mãos de Ricardo Moreira, no instrumentário do sexteto de Hugo Carvalhais, bem como o “featuring” de Liudas Mockunas, faziam esperar que “Ascetica” fosse simplesmente a continuação do que ouvimos em “Grand Valis” e nas prestações ao vivo do contrabaixista do Porto que contaram com o saxofonista lituano, mas assim não aconteceu no começo da noite de 9 de Fevereiro. Nesta debutante série de composições de Carvalhais foi explorada a intersecção dos três saxofones tenor em presença, o de Mockunas, de Fábio Almeida e de Gabriel Neves, entre uníssonos e contramelodias, em algumas circunstâncias sob a forma de triplos solos simultâneos, ou de dois tenores com o clarinete e o saxofone soprano de Mockunas a sobrevoar ou a furar o que faziam. E se o trabalho dos sopros entrava pelos domínios da música contemporânea, a bateria de João Martins opôs-lhe uma curiosa pulsação rock.
Bem mais dentro da caixa, explorando os motivos e as metodologias do bop, esteve a prestação do grupo transnacional (Seamus Blake é canadiano, Albert Bover é catalão, Demian Cabaud é argentino e até Marcos Cavaleiro, o único português, nasceu na Suíça) de Ricardo Formoso. Centrado no fliscórnio, o trompetista de A Coruna e seus parceiros não se limitaram, também no dia 9, a uma adopção passiva do modelo musical em causa: tocaram-no com uma autenticidade e um vigor que fez com que as alusões históricas às parelhas trompete / saxofone tenor se diluíssem nos instantes de audição que se foram brilhantemente sucedendo. Blake esteve particularmente bem nos equilíbrios que operou entre expressão e contenção, sem uma nota a mais ou a menos.
Interrogações com resposta
O programa do 10º Festival Porta-Jazz apresentava ainda alguns concertos que deixavam interrogações sobre o que proporcionariam as parcerias com o Bezau Beatz Festival, da Áustria, e a AMR, uma associação da Suíça, representadas pelo duo de Jim Hart e Alfred Vogel, a combinação de Thomas Florin e Benoît Gautier com João Guimarães e Acácio Salero numa residência de vários dias com apresentação final e ainda o concerto agendado dos Blechbaragge. Vamos por partes…
O vibrafonista inglês Jim Hart e o baterista austríaco Alfred Vogel, este com anteriores passagens por Portugal, contribuíram com o seu “Come Rain Come Shine” no final do serão de dia 7, mas não foram muito felizes no propósito. A ideia era ter uma improvisação contínua que se fosse alimentando por motivos temáticos, mas se a estratégia visava um foco na performance conjunta, na prática a opção resultou derivativa, com os dois músicos – muito obviamente bons, como ficou evidente nos superlativos momentos que também aconteceram – a perderem-se frequentemente pelos meandros da teia que iam construindo. Quando se trata de improviso, é algo que pode acontecer, sem desvalor para os músicos.
Sólida, a 9, foi a mostra do que se criou na Residencial AMR / Porta-Jazz, com um jazz muito lírico e introspectivo em que ficaram patentes a veia poética do pianista Thomas Florin e do contrabaixista Benoît Gautier, beneficiando da clara empatia que os dois foram formando ao longo dos anos, e os vínculos estilísticos com João Guimarães, saxofonista conhecido por desenvolver as suas ideias sonoras com parcimónia e medida. E se Salero era, em tempos idos, tido como um baterista de mão pesada, neste contexto primou pela nuance, num labor de dinâmicas que muito agradou. Foi um concerto especialmente elegante, sem nunca se render ao fácil, ilustrando as virtudes colaborativas dos nossos músicos com os de outras paragens.
Surpreendente – e um dos pontos mais altos de todo o festival – foi a intervenção, ainda a 9 de Fevereiro, dos Blechbaragge de Alfred Vogel com Andreas Bogger no saxofone tenor e no clarinete e Joe Bar na tuba. Com fundamentação na sonoridade-tipo de New Orleans, muito graças aos instrumentos envolvidos, o trio incorporou o folclore da Áustria (um dos temas foi mesmo cantado), seguiu pelo free jazz, alternou “groove” com passagens mais pausadas e entusiasmou o público presente com a sua originalidade e as boas energias que dele emanavam. Em destaque esteve Bar, que por meio de técnicas extensivas fez com que a tuba parecesse estar ligada a pedais de efeitos.
Revisão editorial
Para além das inclusões nomeadas, o grosso do cartaz fez-se com os grupos que tiveram edições recentes na Carimbo Porta-Jazz – a exemplo dos HVIT de João Grilo, do A Incerteza do Trio Certo, do Pedro Neves Trio (“Murmuration”), de João Mortágua “Dentro da Janela”, dos MAU de Miguel Ângelo (“Utopia”) e do Jeffery Davis Quinteto (“For Mad People Only”) –, com o ensemble Coreto Porta-Jazz a fazer uma revisão de peças editadas na sua discografia e a junção do trompetista norte-americano Peter Evans com a Orquestra Jazz de Matosinhos a repor uma anterior parceria.
O espectáculo “HVIT” ocorreu a 7, com honras de abertura, como na sua estreia no âmbito do Guimarães Jazz, com o vídeo de Miguel C. Tavares e os mesmos elementos, José Soares, Christian Meaas Svendsen e Simon Olderskorg Albertsen, ambos da Noruega. Imersiva, onírica e baseada em repetições de figuras rítmicas ou melódicas, mas com maior relevância para a harmonia, a música de João Grilo é um bom exemplo dos cruzamentos que o jazz vai tendo com a música erudita. No dia seguinte, o pianista e compositor teve ocasião para explicar aos interessados os processos utilizados para a obra, no concerto comentado Falar de Ouvido. Ainda no dia 7, o Coreto tornou a mostrar, com os seus 12 integrantes habituais (apenas com o contrabaixista José Carlos Barbosa a dar lugar a Torbjorn Zetterberg na peça de autoria deste) as razões por que é hoje uma das mais importantes “big bands” do País. Esclarecedoramente, o concerto teve o nome de “Celebration”.
A 8, AP, Diogo Dinis e Miguel Sampaio confirmaram o valor gravado em disco do A Incerteza do Trio Certo, com a guitarra do seu mentor a justificar tudo o que lhe tem dado fama enquanto um dos maiores responsáveis do mais gratificante jazz eléctrico que por cá se vai praticando. No mesmo dia, Pedro Neves, com o apoio de Miguel Ângelo e Leandro Leonet, deu uma refinada lição do que pode ser hoje o formato trio de piano jazz, naquele que terá sido o mais “português” (porque transparecendo a nossa particular musicalidade) dos concertos agendados. Ainda na maratona de 8 de Fevereiro, João Mortágua, José Pedro Coelho, Miguel Moreira, José Carlos Barbosa e José Marrucho, ou seja, a trupe de “Dentro da Janela”, assinaram 45 minutos de fogosidade controlada, com intrigantes osmoses dos dois saxofones, uma impactante bateria e Moreira a tirar sons da guitarra que não sabíamos serem possíveis.
Na gorda oferta do Festival Porta-Jazz para dia 8, Peter Evans e a Orquestra Jazz de Matosinhos (re)conciliaram maravilhosamente a exploração e a experimentação com as convenções orquestrais do jazz, derrubando as distinções entre “vanguarda” e “mainstream”. A 9, a “Utopia” de Miguel Ângelo com Miguel Moreira e Pedro Melo Alves a substituir Mário Costa (o baterista do CD) redundou em outro dos melhores concertos do evento, com Melo Alves a dar maior energia rock ao trio e Moreira a dar o melhor de si, com os pés tão ágeis a ligar e desligar pedais quanto os dedos a multiplicar acordes. Logo depois, o quinteto de Jeffery Davis, José Soares, Óscar Marcelino da Graça, Nelson Cascais e Marcos Cavaleiro foram um portento de performatividade descontraída, com vibrantes solos de vibrafone do canadiano radicado no Porto e um fantástico José Soares a ir para os sobreagudos no seu sax alto.
A festa portuense do jazz terminou no dia 9 com uma demonstração do futuro que se está a preparar agora na capital do Norte, com os jovens Hugo Caldeira, Rui Catarino, Rafael Santos e Gonçalo Ribeiro, um nada usual quarteto com trombone, duas guitarras (uma delas dobrando em clarinete) e bateria formado por estudantes da ESMAE e por isso designado por ESMAE Jazz Ensemble. Pepitas em bruto, em vias de brilharem. Daqui por 10 anos de certeza que os encontraremos na 20ª edição do Festival Porta-Jazz…