Telectu
A segunda vida de Belzebu
Vítor Rua e um antigo “compagnon de route” do duo que o primeiro manteve com Jorge Lima Barreto durante 20 anos, António Duarte, foram ao Maria Matos recriar o álbum histórico que fundou o chamado “minimalismo repetitivo”, anos antes de conotarmos os Telectu com a improvisação e de os ouvirmos a tocarem com músicos de jazz: “Belzebu”. A sala esgotou.
O concerto a que assistimos no passado dia 15 de Junho no Teatro Maria Matos começou em 1982 nos estúdios da Valentim de Carvalho. Na altura, Vítor Rua era líder dos GNR e a banda separava-se do pop-rock previsível de “Portugal na CEE”. Em contexto de experimentação, gravavam o seu primeiro LP – “Independança”. Numa sessão de improvisação surge o tema que iria marcar o disco, “Avarias”. Até este, as bandas eram maioritariamente versões nacionais de outras estrangeiras; “Avarias”, com quase 30 minutos (ocupava integralmente o lado B do LP), era tão provocante como o que se ouvia na música pop-rock internacional. O tema empanou os GNR, pois abriu uma caixa de Pandora: Rua queria explorar mais estes caminhos, enquanto o resto do grupo hesitava em abandonar a “Chiclete”.
Rua saiu dos GNR e formou os Telectu com Jorge Lima Barreto. O primeiro disco do novo projecto, “Ctu Telectu” (então em quarteto), deu continuidade à experiência de “Avarias”, com Toli (GNR) na bateria, Lima Barreto no sintetizador (o instrumento é uma peça fundamental em “Independança”, brilhantemente tocado por Miguel Megre) e um tal de “Dr. Puto” (?) na voz. Depois deste arranque, os Telectu abandonam o modelo pop-rock experimental e partem para uma música feita a dois – Rua/Barreto –, na qual a electrónica desempenha um papel fundamental. Lima Barreto introduz o tema “minimal repetitivo”, um neologismo que reconhece que o minimal (termo inglês) não tem de ser repetitivo e que a repetição (termo francês) não é necessariamente minimal. Surge então “Belzebu”, editado pela Cliché Música de Rui Pavão (que a seguir aos Telectu edita Raincoats, Material e Young Marble Giants). “Belzebu” (1983) é precursor. Introduz uma música intelectualizada e feita de ciclos de repetições na guitarra e arpejos no sintetizador.
Em 1983, Portugal ainda não estava na CEE, mas parecia. “Belzebu” era novo e diferente. Depois vieram outras incursões, marcadas pela improvisação e até pelo que os Telectu designaram por “jazz mimético”, por vezes com os préstimos de músicos como Carlos “Zíngaro”, Elliott Sharp, Jac Berrocal, Jean “Saheb” Sarbib, Chris Cutler, Sunny Murray, Eddie Prévost e Gerry Hemingway. Vinte anos após o primeiro disco, os Telectu separaram-se, deixando um legado de experimentalismo e muita gente influenciada pela sua música e pelo seu percurso. Jorge Lima Barreto morre alguns anos depois, a 9 de Julho de 2011. Ainda antes de haver Telectu, o jornalista António Duarte acompanhou o trabalho destes músicos e foi um dos mais próximos e duradouros amigos da “Imprensa Nacional” (como era conhecida a casa/estúdio Telectu). Também desde o início do grupo, António Duarte (“AD”) fez aquilo que na altura parecia um absurdo total: sempre que os Telectu queriam adquirir um novo equipamento, o “AD” comprava-lhes o obsoleto. Assim, quase por acaso, foi-se preservando muito do património sonoro dos Telectu, por meio dos sintetizadores, dos amplificadores e das guitarras que o grupo ia substituindo.
António Duarte toca teclados e produziu já vários discos, mantendo-se sempre ligado à música, e foi através do impulso dos Telectu que resolveu criar o seu próprio grupo nos anos 1980, os D.W.Art (presente nas colectâneas das gravações do Rock Rendez Vous). Tocou também algumas vezes com os Telectu, uma das últimas no café Pinguim. Foi assim, com naturalidade, que Vítor Rua convidou António Duarte com o propósito de reinterpretar os discos iniciais dos Telectu. Durante este primeiro período “minimal” o duo teve uma grande preocupação em definir com o máximo de rigor a música que tocava, notando-a e registando-a para posteriores execuções. Os novos Telectu surgem, assim, com o objectivo de interpretar esses temas iniciais, reconstruindo uma música que é hoje difícil de ouvir, pois ficou fechada numa edição em vinil rara de encontrar e num CD editado pela AnAnAnA, também uma peça de coleccionador.
Sentámo-nos, então, no Maria Matos para ouvir o “Belzebu”, tocado na íntegra (com a adição de uma banda-sonora de base, feita na altura e que sobreviveu em cassete, mas que nunca chegou a ser utilizada nos concertos por exigir soluções técnicas complicadas para a época). A plateia estava esgotada e foi pena ter havido tão poucos lugares. Rua e Duarte interpretaram o disco com rigor e com sentido histórico. António Duarte manteve-se fiel aos planos iniciais de repetição (que nem sempre eram respeitados por JLB). O som do Maria Matos foi dos melhores que alguma vez os Telectu tiveram ao vivo e a audição da electrónica fez-se com uma profundidade e uma dimensão grandiosas. Os instrumentos soaram magnificamente e, apesar do tempo, a guitarra Roland e o sintetizador Jupiter 6 funcionaram na perfeição. Para quem reouviu a música com esta definição sonora foi impressionante.
“Belzebu” merecia esta reincarnação e provou manter-se actual. Rua fez bem em não “modernizar” a peça ou os sons e também em não “actualizar” a música. O que foi feito é bom e merece sair da raridade a que foi confinada pelas poucas edições. A este propósito, convém salientar que muito rapidamente teremos uma reedição em vinil feita pela Holuzam (Flur), com a música remasterizada a partir das bobinas originais também por António Duarte e uma boa prensagem de vinil. Apesar de muitas vezes, quando olhamos para trás, percebermos o quanto o País era atrasado, é bom relembrar que sempre houve umas aldeias de gauleses que combateram o atavismo e que Portugal teve paridade com o que mais interessante se fazia na música experimental na Europa.