Pedro Sousa / Rodrigo Pinheiro / Gabriel Ferrandini + Clocks and Clouds
Teatro ao piano
Dois concertos recentes vieram confirmar aquela que será a principal característica do pianista Rodrigo Pinheiro (foto acima): a encenação e a dramatização das situações em que se encontre envolvido. O primeiro entusiasmou o público, o outro foi menos bem-sucedido…
Nos últimos anos, Rodrigo Pinheiro tornou-se num dos pianistas que em Portugal mais apetece ouvir, pelo alto nível de qualidade das suas apresentações públicas e porque em cada ocasião surge com ideias e soluções diferentes. No intervalo de algumas semanas, assim voltou a acontecer com as suas participações nos concertos que o seu trio com Pedro Sousa e Gabriel Ferrandini e os Clocks and Clouds deram na SMUP, a 16 de Fevereiro e a 9 de Março passados.
A relevância da contribuição de Pinheiro para o jazz e a livre-improvisação que por cá se praticam não está simplesmente nos seus solos ou no suporte harmónico e rítmico que dê a um grupo, mas em algo que o singulariza: a forma como encena a música, como dramatiza as situações, sublinhando o seu carácter emocional, e como faz com que os seus interlocutores brilhem, seja entregando-lhes motivos para desenvolvimento ou garantindo-lhes uma segura sustentação de base. Em contexto cooperativo, como “sideman” ou assumindo responsabilidades maiores, o efeito é o mesmo: ainda que não tenha necessariamente esse propósito, acaba por ser ele o arquitecto de uma boa parte das construções que vamos ouvindo, pelo menos na determinação das direcções que tomam. Mas claro que nem sempre essa função é bem-sucedida…
Tal característica ficou particularmente evidente na sua associação a Sousa e a Ferrandini. Repetições de acordes, harpejos e figuras em ostinato, mais do que estruturarem o que se estava a improvisar, deram-lhe palco e tratamento narrativo, fixando as cenas que se foram sucedendo, gerindo o movimento das luzes sobre os actores e regulando os abrires e fechares de panos. Foi notável, a prestação do grupo na Parede. Muito frequentemente com recurso a técnicas de respiração circular, Pedro Sousa foi particularmente objectivo nos seus muito cerrados fraseios, enquanto Gabriel Ferrandini se centrou em algo de que, até não há muito tempo, se esquecia: a manutenção de dinâmicas. E não só: neste concerto abriu-se a outros modos de intervenção que não são habitualmente os seus. Um longo, muito longo rufo na tarola fez com que o ar repercutisse os mais fascinantes multifónicos. Rodrigo Pinheiro há muito tinha parado de tocar, observando-o com um sorriso nos lábios.
Já a actuação dos Clocks and Clouds não conseguiu ser tão entusiasmante. A música foi agradável, sem dúvida, mas ficou-se por aquele bom que é inimigo do óptimo. E não porque Pinheiro se tivesse distanciado das estratégias aqui antes descritas. Terá sido menos fulgurante, mas tivemo-lo novamente a desempenhar os cargos de encenador, cenógrafo e desenhador de luzes, só que com resultados diminuídos em comparação. Podia assim não ter sido. Marco Franco escolheu para o concerto um registo minimalista, feito constantemente de pequenos sons, raspares, tilintares, e isso foi muito interessante. Pelo seu lado, Hernâni Faustino contrabaixou com uma solidez a toda a prova. Simplesmente, a necessidade de o grupo ir alimentando o caudal dos acontecimentos, acrescentando-lhe continuamente novos elementos, fez com que todos, e em especial Luís Vicente, o trompetista, fossem projectando notas a despropósito, e a despropósito porque na verdade desnecessárias e porque passando para os ouvidos da assistência a impressão de que se ia perdendo a noção das margens.
A elaboração de fluxos numa improvisação pode ser particularmente atractiva, mas tem este outro lado negativo, o exigir que se junte sempre algo mais, com o risco da gratuitidade e da derivação. Foi evidente que Pinheiro tentou não ir por aí e os melhores momentos da noite proporcionaram-se quando ele o conseguiu, mantendo o resto do quarteto consigo. A corrente criada foi, no entanto, mais forte e arrastou consigo esse tipo de controlo e de cola. Está na própria natureza da música improvisada: ou acontece magia, ou não…