Alberto Conde Iberian Roots Trio
Sassetti, cinco anos depois
O pianista galego Alberto Conde juntou a si os membros do Bernardo Sassetti Trio para prestar uma homenagem, na SMUP, ao músico desaparecido faz cinco anos. Foi uma bela maneira de celebrar o seu legado, e a jazz.pt esteve presente. No próximo ano, virá o disco.
É trivial reconhecer que, por mais rigorosas e profundas que sejam as investigações e análises levadas a cabo pelos musicólogos, historiadores de arte ou críticos literários que a sustentem, a construção de qualquer espécie de cânone artístico que aspire a um mínimo de generalidade jamais poderá ir além de uma aproximação. Independentemente dos critérios ou motivações que possam estar na base desse cânone e que podem ser as mais variadas e controversas, basta ter em conta a impossibilidade de se aceder a tudo o que de artisticamente relevante se criou numa determinada época para tal se tornar evidente. E se, para a maior parte das épocas passadas, essa impossibilidade advém do facto de muito se ter perdido no tempo, aquele que procurar, por exemplo, aproximar-se de algo que se pareça com um cânone do século XXI deparar-se-á com um cenário contrário, mas não menos difícil de enfrentar: uma aterradora massa de informação, verdadeiramente labiríntica. Não se afiguram, pois, tempos fáceis para o crítico, a quem se pedem muitas vezes distinções finas entre coisas “prima facie” muito semelhantes.
Bernardo Sassetti foi um dos mais inspirados e importantes músicos (de qualquer proveniência estilística ou geográfica) da primeira década do novo milénio e, desde o seu desaparecimento, têm-se ouvido com frequência comentários como «o tempo tratará de lhe fazer devida justiça». A verdade é que tal confiança no “tempo” não deixa de levantar determinados problemas. Podemos, neste sentido, dizer, por exemplo, que o tempo fez justiça a Schubert (admirado por pouco mais do que um grupo de amigos enquanto viveu e hoje incontornável), mas outros não terão tido a mesma sorte. Além disso, a massificação a que atrás aludia vem, no meu entender, complexificar ainda mais uma questão como esta. Se é evidente que essa “acção do tempo” corresponde a nada mais do que as acções de pessoas propriamente ditas, responsáveis pela preservação de certos legados, a conjuntura presente parece-me, a este respeito, exigir de nós uma urgência particular, sob pena de demasiadas figuras de indiscutível mérito acabarem, ainda que talvez não definitivamente perdidas, pelo menos soterradas pela referida massa (o que talvez até não seja muito diferente).
Aplausos são poucos, portanto, para aquilo que este ano, cinco volvidos desde que nos deixou, se tem vindo a fazer em prol da preservação da sua obra e memória (não para que Sassetti possa vir a ser conhecido de tudo e todos – é demasiado grande para isso –, mas para que, um pouco por toda a parte, pelo menos alguns o possam vir a conhecer e que tal padrão se mantenha). Depois do sucesso do Prémio de Composição seu homónimo promovido pela Associação Sons da Lusofonia, da renomeação do Jardim de Inverno do Teatro Municipal São Luiz para Sala Bernardo Sassetti ou da edição do seu primeiro livro de partituras (“Songbook Vol. I”) pelas mãos da fundação Casa Bernardo Sassetti e do MPMP, movimento patrimonial pela música portuguesa, chega agora a vez de uma bela e sentida homenagem por parte do pianista e compositor Alberto Conde, um dos principais músicos galegos: o Iberian Roots Trio, com Carlos Barretto e Alexandre Frazão (ambos membros da histórica formação que gravou discos como “Nocturno”, “Ascent” ou “Motion”) e cujo disco será lançado em 2018, também pela Clean Feed. O concerto de estreia do projecto, com programação de Rui Eduardo Paes (um dos principais obreiros desta iniciativa) e justamente dedicado ao repertório a figurar no disco, teve lugar no passado domingo (26 de Novembro), no salão da SMUP (Parede), com os assentos do público, que acorreu em peso, colocados em cima do próprio palco, proporcionando um ambiente intimista.
Concerto este que abriu com dois originais de Conde dedicados a Sassetti e com atenção a duas (ou mais) das suas principais facetas: o primeiro, “uma espécie de fado” (palavras do próprio Conde), marcado por um balanço algo latino e o segundo evocador do universo de Thelonious Monk, referência incontornável (e daí o título, “Monkssetti”) para o português que era, aliás, um dos seus mais brilhantes intérpretes contemporâneos, ambos introduzidos por diferentes ambientes de exploração tímbrica, não muito longe daquilo que já acontecia no próprio Bernardo Sassetti Trio, com Conde repetindo uma nota grave com a corda abafada, complementando-a com alguns acordes no registo médio, Frazão com uma abordagem mais textural e, como lhe vem sendo habitual, Barretto excelente recorrendo ao arco. De notar que o salão, local dos concertos com piano, ainda se encontra em fase de remodelações tendo em vista melhorias acústicas (o que atesta bem a aposta que se tem verificado na SMUP ao nível da música) e a verdade é que, embora se ouvissem os três instrumentos, havia uma certa tendência para que a bateria engolisse um pouco os restantes.
Seguiu-se um belíssimo arranjo para trio (da autoria do próprio Sassetti e incluído no álbum “Nocturno”, de 2002) de uma peça da suite “Musica Callada” de Federico Mompou, compositor catalão cujo repertório pianístico impactou decisivamente a construção do universo sassettiano, sobretudo na sua dimensão mais erudita e introspectiva (esta admiração por Mompou levou Sassetti a uma intensa dedicação a este mesmo repertório e, inclusive, a apresentá-lo, também, em recitais de música escrita). Neste arranjo, é o arco do contrabaixo que introduz a melodia, havendo, depois, lugar para um solo do pianista, de intenso lirismo, sobre a harmonia do tema e uma subsequente improvisação colectiva, até, finalmente, este ser reexposto pelo piano.
Depois de mais um original de Conde, este com um ostinato algo sassettiano, foi a vez de dois temas (e que temas!) do homenageado: nada menos do que “O Sonho dos Outros” e “Reflexos”, emblemática sequência de “Nocturno”, esse marco na história do trio de piano jazz. Longe de um virtuosismo pirotécnico, tais temas, de um requinte assinalável, não deixam de se revelar exigentes (difícil não é tocar as notas escritas, mas fazê-las soar ao nível que o seu autor atingia, com a pureza cristalina do seu som e a dificilmente excedível leveza do seu tempo) e diga-se que o estado do piano disponível, já centenário e que terá mesmo enfrentado uma pequena peripécia nessa mesma tarde, não facilitou a tarefa do pianista. Foi justamente aquando da interpretação de “O Sonho dos Outros”, em toda a sua depuração e intimismo, que se tornaram mais evidentes certos problemas na mecânica do instrumento (mais ou menos contornáveis noutros contextos), com Conde a denotar uma ligeira tensão. Problemas que também não terão ajudado à execução de “Reflexos”, a cujo tema terá faltado um pouco mais de fluidez, além de clareza no destacamento da textura de harpejos que subjaz à melodia. A verdade é que, fora isso, o pianista saiu-se muito bem noutras passagens nada óbvias e fez plena justiça à versão original na secção de improvisação colectiva, recriando as atmosferas cinemáticas que a música de Sassetti proporciona, que se segue ao longo solo do contrabaixo, com Barretto a confirmar-se talvez como o músico em melhor plano neste final de tarde.
O concerto terminaria com mais um par de composições do músico galego, bons exemplos de como este compreendeu e se identifica com a coexistência orgânica da tradição jazzística e de um lirismo de pendor erudito que marca boa parte da obra do português e, por fim, para uma versão em trio do bem conhecido “Noite”, da banda sonora do filme “Alice”, de Marco Martins. Procurando uma interpretação mais pessoal do que em “Reflexos” (no qual optara por se manter mais próximo do disco), Conde soltou-se, depois, naquele que terá sido um dos seus melhores e mais fluidos solos da noite, levando a uma significativa subida de intensidade por parte da secção rítmica. Enfaticamente aplaudidos, os músicos regressaram ainda para um “encore”: o “standard” “How Deep is the Ocean”, tocado de forma expansiva e bem-humorada, com a bagagem jazzística de Conde a vir ao de cima e um solo de bateria de Alexandre Frazão a fazer vibrar o público, sempre caloroso, a assinalar um final em ambiente quase festivo.
Resta agora aguardar pelo lançamento do disco e pela consolidação do projecto (esperam-se mais apresentações ao vivo), que é ao mesmo tempo mais um feliz episódio na carreira de Alberto Conde e uma bela maneira de celebrar um legado tão rico como o de Bernardo Sassetti.