Albert Cirera Cròniques + Going + Lucky Lupe + (un)stable + Acid Acid + Gibson / Faustino / Trilla
Vibradores e pedaleiras
Usos instrumentais alternativos, preparações e dispositivos electrónicos são muitas vezes a garantia de que algo de diferente se vai ouvir. Ou não, como igualmente se verificou na série de concertos a que a jazz.pt assistiu entre o fim de Outubro e o meio de Novembro e de que aqui dá conta (Albert Cirera na foto acima)…
Uma sequência de concertos na SMUP (Parede, concelho de Cascais), entre o final de Outubro e meados de Novembro, em que a improvisação foi, de alguma maneira, conjugada, resultou também numa série de utilizações instrumentais inconformistas, regra geral por meio de preparações (aplicação de objectos nos instrumentos) ou de dispositivos tecnológicos transformadores dos sinais sonoros. Com o quinteto Cròniques, Albert Cirera colocou em dado momento um vibrador clitoridiano dentro do saxofone tenor, e o mesmo fez (com dois) o baterista Vasco Trilla, no seu trio com Yedo Gibson e Hernâni Faustino, posicionando-os dentro de pequenos sinos. Giovanni Di Domenico, membro do quarteto Going, tinha uma série de pedais de efeitos de guitarra sobre o seu Fender Rhodes, fazendo com que raras vezes este soasse como tal.
David Ferreira, uma das metades do duo Lucky Lupe, tocou uma “doubleneck” que era parte baixo e parte guitarra, a partir dela gerindo e sobrepondo “loops”. Pedro Menezes, do projecto (un)stable, usou e abusou de um subwoofer, fazendo com que o edifício da Sociedade Musical União Paredense estremecesse com os graves que tirou de um dos dois “laptops” que tinha diante de si. Tiago Castro, com o alterego Acid Acid, abriu o seu concerto com a gravação de um mantra cantado da Índia, pelo meio também introduzindo um “sample” com tablas. Em dado momento, Gibson virou o seu saxofone soprano ao contrário, enquanto noutro encheu a boca de água para provocar um borbulhar sonoro no bocal. Para além destes exemplos, vimos e ouvimos Trilla a soprar por um tubo ligado à membrana de pele da tarola, para a fazer estremecer antes mesmo que a baqueta a ela chegasse, e dois elementos dos Cròniques ou prenderam molas nas cordas do contrabaixo (Alvaro Rosso) ou passaram o arco no espigão de suporte do violoncelo (Ulrich Mitzlaff).
Em todos estes casos, e noutros que foram surgindo ao longo destes seis concertos, o propósito de ultrapassar os limites físicos dos instrumentos, bem como os tipos de linguagem que lhes foram definidos, tornou-se uma constante. Por coincidência, mas também porque esta vai sendo uma prática comum nas músicas que recorrem à improvisação, seja a partir de composições e estruturas previamente estabelecidas ou dispensando-as totalmente. Foi este último o caso da prestação de Cirera a 26 de Outubro, juntando num inédito (e que não se repetirá, segundo o próprio saxofonista catalão) quinteto os músicos que com ele partilharam duos (falta mencionar o violinista Carlos “Zíngaro” e o saxofonista barítono Olle Vikstrom) numa série de quatro lançamentos pela “netlabel” Discordian Records genericamente intitulados como “Cròniques”. A música que se ouviu esteve algures entre a matriz da música de câmara, muito devido aos três cordofones associados, e uma indirecta referenciação no free jazz, neste caso graças aos dois saxes, mas sintetizou tudo aquilo que desejamos de uma música livremente improvisada: organicidade, “drive”, sentido de fluxo e cometimento. E só não foi totalmente experimental a nível das construções tímbricas e texturais porque havia fraseado e melodia, numa sempre feliz conjugação de contrastes que teve em “Zíngaro” a principal âncora.
Com os Going, grupo em que Di Domenico está envolvido com os sintetizadores de Pak Yan Lau e as baterias de Mathieu Calleja e do português João Lobo, tivemos na noite de 3 de Novembro uma abordagem jazzística das cruzadas heranças do krautrock e do rock psicadélico, com situações metronómicas que lembravam os Can e ambiências entre o introspectivo e o cósmico que nos remetiam para os Pink Floyd ou para os Soft Machine do início. Se foi impressionante seguir o que o músico italiano fazia com o piano eléctrico, não menos decisivos para a entusiástica reacção do público foram os jogos rítmicos estabelecidos entre os dois bateristas, com Lobo, especialmente, a surpreender quem já não lhe conhecia as enormes capacidades.
Menos bem estiveram os Lucky Lupe na abertura da “triple bill” de 11 de Novembro com o seu pós-rock compactado numa fórmula demasiado dependente do “looping”, com uma bateria, a de Tiago Salsinha, a revelar-se incapaz de se soltar dos seus espartilhos. Mais bem-sucedido foi o que nos apresentou o solo (un)stable no domínio da música electrónica pairante, se bem que denotando uma excessiva colagem ao modelo Fennesz. A música variou entre “drones” paisagísticos ultra-melancólicos e súbitos mergulhos noise, tendo agradado precisamente pelas idas de um extremo ao outro quando menos se esperava. Acid Acid propôs-nos, por sua vez, um bloco monolítico e impenetrável de som, sem dinâmicas e com uma saturação do espectro auditivo que não era propriamente propício para a viagem psicadélica intencionada. Com um aparato instrumental que combinava teclados e guitarra, foi de qualquer modo interessante verificar como, em muitas ocasiões, Castro centrou a sua atenção sobre as pedaleiras – por vezes, menos é mais, se é que a chusma de possibilidades das ditas pode ser considerado pouco em comparação.
A 16 de Novembro voltou-se a outro momento musical de excelência, com o trio Gibson / Faustino / Trilla, nova variante do duo mantido há uns anos pelo saxofonista brasileiro e pelo baterista luso-catalão. Se com este concerto a filiação no free jazz foi muito mais óbvia do que com os Cròniques, a adopção desse paradigma passou por desenvolvimentos particularmente extravagantes. Sobretudo os protagonizados por Yedo Gibson, indo de incríveis multifónicos com uso da técnica de respiração circular, mais próprios da música experimental ou de alguma música contemporânea do que do jazz, à mimetização pelo sax soprano de uma cuica a tocar um possesso samba. Motivos bem aproveitados pelo ribombar de energia do contrabaixo de Hernâni Faustino e para as sempre estranhas filigranas percussivas de Vasco Trilla. Quando a música, e em particular aquela que recorre à improvisação, é assim tão imprevisível, ficamos com as medidas cheias.