SeixalJazz
Seixal e aquecimento local
Com um cartaz mais equilibrado e coerente do que vinha sendo hábito, o festival da “outra banda” trouxe até nós música de muita qualidade, num mês de Outubro que mais parecia de Agosto. O melhor que se ouviu veio de uma formação portuguesa, Slow is Possible, algo difícil de imaginar ainda não há muitos anos, e igualmente gratificante foi verificar como Lee Konitz fez das fraquezas próprias de ter 90 anos uma força.
O SeixalJazz trouxe – e bem – a novidade do fim dos concertos divididos em duas partes, mas manteve – e bem – a música portuguesa programada sem preconceitos. O festival assumiu este ano uma personalidade mais coerente nas propostas musicais, abandonando a dissimetria dos anos anteriores. Ficámos com uma programação mais coerente e com saudades de algumas propostas originais que o festival já deu. Este ano o Seixal soou como o Guimarães Jazz.
O Yang do Yin
A primeira noite propôs o jazz matemático de Wolfgang Muthspiel, que veio em quinteto. O guitarrista tem uma escrita complexa, sem nunca ser desnecessariamente intrincada. O seu grupo tem um funcionamento curioso: as frases musicais emaranhadas de Muthspiel são desmontadas por Ralph Alessi, que resume as ideias e toca apenas o mínimo para que elas sejam percebidas. É uma peça-chave da banda, criando uma zona de respiração e um equilíbrio entre a guitarra e a secção rítmica. O trompete é, assim, o “yang” do “yin” da guitarra que transforma barroco em minimal e foi o que deu mais prazer ouvir na noite inaugural. Em grande plano estiveram também Jon Cowherd no piano, Scott Colley no contrabaixo e Eric Harland na bateria.
Fake não fake
A segunda noite programou o Slow is Possible, sexteto (português-apesar-do-nome) que toca desde 2014. O grupo tem agora menos um instrumento do que o que gravou o primeiro disco, com a saída do clarinetista: guitarra eléctrica, violoncelo, bateria, contrabaixo, piano e saxofone compõem a instrumentação actual. Os Slow is Possible são um dos grupos mais interessantes da cena nacional: digo-o consciente da riqueza e da diversidade da música que hoje é produzida pelos músicos nacionais. Mantém uma liberdade criativa e uma procura musical muito própria, que radica naquilo que nos anos 90 do século passado se chamava de “fake jazz”, mas que de “fake” nunca teve nada: antes toca um jazz que integra várias referências sem preocupações classificativas ou filiativas.
As composições são longas, muito bem imaginadas, com vários movimentos dentro de cada tema e várias melodias dentro de cada melodia. João Clemente é hoje um dos melhores guitarristas do jazz europeu, com um som próprio, uma técnica segura e uma exploração de efeitos e de electrónica de um bom gosto excepcional. Não está preso a ideias feitas e procura caminhos novos e interessantes para enquadrar a guitarra no som colectivo. Nuno Santos Dias no piano e André Pontífice no violoncelo (que toca com uma expressividade contagiante) estiveram também em grande destaque. Numa época de faúlhas incendiárias destrutivas, foi bom ouvirmos um concerto em que elas constroem em vez de arrasar. Foi o melhor concerto da edição deste ano, com novidade, alegria e intensidade, numa práxis de festivais e públicos atraídos por “nomes grandes”. Felizmente não é o caso do Seixal.
Sem chispa
A primeira semana encerrou com o Michaël Attias Quartet, um bom concerto do saxofonista israelita a viver nos Estados Unidos. Conhecemos bem a sua música, que tem sido documentada pela editora da Parede, a Clean Feed. Attias é uma peça importante do “puzzle” nova-iorquino actual e o seu concerto apresentou música de enorme qualidade, com os músicos num diálogo aberto e franco. Ainda assim, ainda que tivéssemos ouvido com prazer grandes músicos a tocarem excepcionalmente bem, faltou o calor que um quarteto pode impor e que a noite anterior tinha relembrado, acabando por soar sem chispa. John Herbert e Nasheet Waits estiveram em bom plano e alimentaram a conversa jazzística com interesse.
Bom embasamento
Regressámos ao Seixal na quinta-feira seguinte para ouvir o quinteto de João Barradas e a casa encheu-se para o (quase – é de Porto Alto, em Samora Correia) filho da terra. Barradas é um virtuoso do acordeão e tem vindo a construir uma careira que importa apoiar. O instrumento é ainda um som estranho no jazz (ou profundamente incrustado em Piazzolla,) mas esta é uma música que tem sabido integrar sons estranhos e Barradas aposta nessa abertura. Ouvimos em grande parte temas do novo disco “Directions”, lançado em Janeiro passado, e abrindo precisamente como no CD, com o acordeão a dobrar as vozes de Wayne Shorter e Joe Lovano numa entrevista (um processo usado por Hermeto Pascoal e Frank Zappa) e evoluiu para alguns do temas gravados. Muito bom o quarteto que o acompanhou, com André Fernandes em altíssimo nível e o piano de João Paulo Esteves da Silva a não tocar sempre, uma qualidade rara. O momento da noite foi o solo de Barradas no acordeão MIDI, imitando o som de um piano eléctrico Fender Rhodes.
Acreditamos que o trabalho de Barradas evoluirá para níveis de interesse ainda maiores, pois o acordeonista mostra já uma vontade de sair dos processos tradicionalistas e procurar uma lógica autónoma para a sua música. Se conseguirá lá chegar ou não é, obviamente, uma incógnita, mas o caminho está lançado e com bom embasamento.
Guernicas umas atrás das outras
Apesar do risco que a conjugação destas duas palavras implica – violinista + francês –, a programação ficou a ganhar com a coragem de convidar o quarteto de Dominique Pifarély para vir tocar na sexta-feira. Para o apreciar tivemos de nos abstrair do facto de o violinista não ter agradecido as palmas do público (eu desisti de as dar, mas o resto da sala não se importou com a soberba de um “obrigado” no início e outro no final) e de ter tocado com a teatralização de quem está a sacar Guernicas, umas atrás das outras, das cordas do violino. Ignoradas estas questões laterais, a música ouviu-se sem enfado e correu como se esperava: longos solos do líder com Bruno Chevillon, no contrabaixo, e François Merville, na bateria, a prepararem a cama onde o violino se deitava. Bons solos e grande grupo, tocando com emoção. Excelente o trabalho de ambos os acompanhantes de Piferély, e em particular a surpresa de ouvir Merville, um baterista discreto mas notável.
Lúcido e divertido
Lee Konitz tem sido uma visita regular a Portugal e desde 2003 já o ouvimos quatro vezes: no CCB em 2003, em Cascais em 2010, em Guimarães em 2014 e agora no Seixal. Nesta ocasião ficou quase sempre sentado em palco e, como habitualmente, tocou em quarteto. Era, inclusive, suposto que fosse com os mesmos músicos que foram a Guimarães, mas algum imprevisto afastou Dan Tepfer e em seu lugar voou Florian Weber para Portugal. E o concerto ficou a ganhar! Já sabíamos que o piano nesta fase da carreira do Konitz não é uma ancila: é o centro da acção. Como é evidente, Konitz, com 90 anos acabados de fazer, já não consegue soprar um concerto inteiro nem entregar a intensidade do passado; mesmo assim, toca lindamente, transformando as limitações físicas em delicadeza e síntese.
Weber esteve espantosamente bem, desmontando com entusiasmo os “standards” que Konitz propôs, entusiasmado com um material que, já tendo sido tocado milhares de vezes, pode ainda conter ângulos inusitados. Tem sido esta a estratégia do histórico saxofonista, o de dar voz ao piano, limitando-se a tocar o que consegue e tocando bem, cantando os solos quando soprar no saxofone se torna demasiado exigente. Foi um muito bom concerto com um Lee Konitz lúcido e divertido.
Verão de Outubro
É ainda importante referir que voltaram este ano os concertos no antigo refeitório da Mundet, agora um bar muito agradável e com uma acústica convincente. Tem ainda uma varanda com vista privilegiada sobre o Tejo, ideal para estes novos verões em Outubro, patrocinados pelo aquecimento global. Tocaram três trios: o primeiro foi o de Ricardo Toscano com Nelson Cascais e Nemanja Delic. Encaixou perfeitamente naquela sala e naquele ambiente, com um repertório bem escolhido, grande som e muita intensidade. A Mundet foi o Hot Clube do Seixal por uns dias.
No primeiro dia do segundo fim-de-semana tocou Volúpia das Cinzas, o grupo liderado por Gabriel Ferrandini, com Hernâni Faustino no contrabaixo e Pedro Sousa no saxofone tenor. Nos dois últimos dias ouvimos o The Rite of Trio, vindo do Porto, com André Silva na guitarra eléctrica, Filipe Louro no contrabaixo e Pedro Melo Alves na bateria. Excelente, a música deste trio (português-apesar-do-nome) que procura um caminho diferente, entre o rock e o jazz.