José Tavares / Ulrich Mitzlaff + Oker + Vilde & Inga + About Angels and Animals & Pedro Melo Alves
Animais e anjos
Diz-se que todo o ser humano tem um lado animal e um lado de anjo e isso ficou demonstrado de várias maneiras em cinco concertos decorridos em três dias na SMUP, com perspectivas diferentes de como improvisar. Foi do melhor que ali já se ouviu, com os About Angels and Animals (foto acima, com Pedro Melo Alves) a encontrarem, muito especialmente, um equilíbrio.
Cinco concertos em três dias entre o final de Setembro e o início de Outubro, quatro deles apenas com um pequeno intervalo a separá-los e demonstrando o mesmo número de vias possíveis no desempenho da prática comum, a improvisação. Primeiro tocou o duo – inédito – de José Tavares, guitarrista originário da Beira Interior, e Ulrich Mitzlaff, violoncelista alemão há muito residente em Portugal. Depois, uma “double bill”, apresentando dois projectos noruegueses, o minimalismo abstracto, mas muito rítmico, dos Oker, e a nova música de câmara de uma dupla feminina editada pela ECM, Vilde & Inga. Finalmente, um duplo “set” com os About Angels and Animals, ou seja, o duo alemão de Julius Gabriel (há um ano radicado no Porto, membro com Gonçalo Almeida e Gustavo Costa dos Ikizukuri) e Jan Klare, e depois estes com o baterista portuense Pedro Melo Alves, membro do The Rite of Trio e Prémio de Composição Bernardo Sassetti. Em conjunto, tocaram alguma da melhor música que já passou pelo sótão da SMUP, na Parede.
Comecemos este relato pela última sessão, a do passado dia 7 de Outubro. Em digressão por Portugal, os About Angels and Animals justificaram plenamente o seu nome. O “animalismo” saxofonístico a que se entregaram, com todos os aspectos de uma arte bruta no seu quase noise integralmente acústico, evidenciou a rara particularidade de tratar os sons com uma clareza e uma pureza de registo que fariam a inveja dos anjos. Os sobreagudos e os “overtones” de Jan Klare no saxofone baixo e de Julius Gabriel no barítono eram assombrosamente limpos, definindo o apreço do duo pelo factor timbre. E, por arrasto, também o seu gosto pelas manipulações da tonalidade, das mais convencionais a mergulhos no atonalismo ou no microtonalismo, passando por tão sensíveis quanto inteligentes utilizações cromáticas e de modos. Nos três longos improvisos da primeira parte da noite foi claro que existiam motivos, mas estes eram incorporados ao longo do fluxo musical, servindo não como “deixas” e sim como marcos de direcção. Regra geral, era a mudança de um instrumento (por exemplo, do saxofone alto para o baixo por parte de Klare, ou do barítono para o tenor no caso de Gabriel) que anunciava a derivação seguinte. Mais do que uma improvisação estruturada, era de uma improvisação organizada que se tratava, ou dito de outra forma, de uma organização composicional da improvisação.
Uma coisa ficou clara: o duo não se enquadra nas molduras do free jazz nem nas da chamada música improvisada. Longe dos clichés de ambas as tendências, o concerto funcionou como se se encontrassem algures, muito vagamente, certas coordenadas do saxofonismo erudito com as do rock pós-“L.A. Blues”, o tema dos Stooges de Iggy Pop em que Steve Mackay apresentou uma maneira punk – digamos assim, porque o tema antecedeu o estilo – de tocar sax. O invólucro mudou com o segundo “set”, já com a intervenção de Pedro Melo Alves como convidado, e porque, precisamente, a improvisação era integral – os músicos da Alemanha nunca tinham tocado antes com o português. Na actuação anterior a esta no nosso país o baterista convocado fora João Pais Filipe. Gabriel e Klare continuaram a atirar figuras melódicas para o sempre abrasivo caudal, mas logo se tornaram óbvias as implicações jazzísticas e da “improv” – pelo menos até Jan Klare introduzir um poderoso “riff” de rock, com um inspirado e divertidíssimo Alves a juntar-lhe elementos percussivos e a complicar a situação sem lhe retirar a força e a urgência. O resultado foi impressionante e entusiasmou a assistência.
A intervenção dos Oker a 4 de Outubro esteve nos antípodas, mas mantendo o factor da animalidade no seu etéreo fluxo-de-consciência. O volume e a intensidade da música tocada foram muito reduzidos na maior parte do concerto, e nos momentos em que mais se chegou perto do silêncio percebeu-se o quanto o público estava suspenso dos acontecimentos. Com Torstein Larsen num trompete devedor do tipo de léxicos de Axel Dorner, Peter Evans, Nate Wooley e Franz Hautzinger, Fredrik Rasten a tocar na guitarra de caixa algo que poderia surgir se Derek Bailey e John Fahey fossem a mesma pessoa, Adrian Myhr num baixo eléctrico diminutivo e Jan Gismervik num “kit” de bateria reduzido à tarola, ao bombo e a um prato de choques, mas sempre presente e essencial, o que ouvimos juntou materiais de vários géneros sem se fixar em nenhum na sua busca de algo que estivesse mais além. Só uma referência maior, desta vez (comparando com os vídeos do grupo que se encontram na Net e com o que têm em disco), se manteve intacta do início ao fim da prestação: a sustentação rítmica devia tudo ao “motorismo” obsessivo e encantatório da banda de krautrock Can.
Por palavras, só é possível definir os contornos desta performance: parecia uma combinação entre a tendência reducionista da livre-improvisação com aspectos da música contemporânea (em especial vindos das escritas de Lachenmann e Sciarrino, dada a – de novo – atenção às construções tímbricas e tonais), tendo de permeio elementos do rock, da folk nórdica e da música electroacústica (Larsen, Rasten e Gismervick utilizaram dispositivos electrónicos). Tudo isto em lentos e muito pausados desenvolvimentos, num quase estado de transe, o que se repetiria na intervenção seguinte pela violinista Vilde Alnaes e pela contrabaixista Inga Margrete. Também elas se focaram na conjugação de pequenos elementos, mas se era evidente (apesar de tudo) o ponto de partida “jazz” dos Oker, com Vilde & Inga não ficaram dúvidas quanto à proveniência clássica das duas improvisadoras. Com as premissas estabelecidas para uma formação de cordas de arco, o que ambas fizeram foi especialmente interessante, pois não lhes bastou criar um sucedâneo imediatista e orgânico do modelo camerístico. A maneira como, durante a actuação, Alnaes tocou duas ou três notas em simultâneo num instrumento monofónico como o violino foi um dos melhores momentos da longa noite. Mais uma vez voaram os anjos, e estes eram deveras humanos.
A 30 de Setembro, José Tavares associou a sua guitarra eléctrica ao violoncelo igualmente eléctrico de Ulrich Mitzlaff. Alguma coisa transpareceu das dedicações do primeiro à música antiga, em alaúde ou no árabe oud, bem como do segundo relativamente às suas passadas incursões pelo legado de Frank Zappa, mas muito sub-repticiamente, reflectindo-se nas lógicas expositivas e na importância dada ao som. O que esteve mais aparente foi a vontade de fugir ao óbvio do idioma (ou não-idioma, dependendo das perspectivas) improvisação – vendo mais esta como técnica, como processo, do que como estética – e de, apesar das opções instrumentais, não corresponder aos usos fabricados pelo rock. Infelizmente, e talvez porque pouco calor emanou do reduzido público presente, o concerto foi demasiado curto. Prolongou-se, no entanto, o suficiente para atestar da empatia deste outro dueto, de constituição recente mas derivando de colaborações anteriores em vários contextos, e para reencontrar esse estilista do tom que é Mitzlaff, um violoncelista que trata o seu instrumento como se fosse a sua própria voz, fazendo-o cantar.