Motion Trio Orchestra + Orchestra Elastique
Perdidos e achados
Entre o fim de uma temporada de concertos e o início de outra, duas falsas orquestras foram à Parede e arriscaram. Uma quase se perdia e a outra muito lutou para encontrar o seu caminho, curiosamente a primeira porque se soltou da referência idiomática que a supunha e a segunda porque achou noutra a cola de que precisava. A jazz.pt conta como foi…
Duas falsas “orquestras” foram tocar à SMUP, a primeira no fecho da temporada de 2016/17, a 7 de Julho, e a outra iniciando no dia 1 de Setembro a leva de concertos agendada por aquele espaço da Parede para o que resta deste ano e continuando até ao Verão do próximo. Entre elas um único denominador comum: a improvisação. Tanto no que esta tem de mais característico, porque tornando um conjunto de personalidades num só organismo (aconteceu em ambos os casos, com resultados ocasionalmente brilhantes), como pelas fragilidades que também a caracterizam, designadamente o risco de se perder o caminho (o que, infelizmente, se verificou nas duas prestações, e na mesma medida).
Antes da pausa de férias da Sociedade Musical União Paredense tocou a Motion Trio Orchestra, ou seja, o Motion Trio de Rodrigo Amado com Miguel Mira e Gabriel Ferrandini, mais os contributos de Luís Vicente no trompete, Luís Lopes em guitarra eléctrica, Rodrigo Pinheiro ao piano, Hernâni Faustino no contrabaixo e David Maranha na percussão. O saxofonista convidou para o efeito músicos com quem trabalha noutros contextos que não o Motion Trio. Vicente veio do seu quarteto com João Lencastre e Hugo Antunes (ou João Hasselberg). Com Lopes trabalha no Humanization 4tet. Pinheiro foi por diversas vezes o convidado especial dos concertos dos Motion. Faustino transitou do seu Wire Quartet, outro grupo em que também Ferrandini milita, juntamente com Manuel Mota. Maranha é o mentor do David Maranha Ensemble, que Amado integra. Estes vínculos terão garantido ao músico uma identificação com o seu modo muito particular de estar na música, mas assim não aconteceu…
O Motion Trio tem uma particularidade: usa as estratégias da livre-improvisação numa fórmula assumidamente idiomática que assenta a sua matriz no hard bop e no free jazz. A força do projecto e o seu interesse estão neste factor. Se Rodrigo Amado pensou que a Motion Trio Orchestra iria ampliar estas características, o propósito não foi bem-sucedido. O octeto conduziu os procedimentos para o domínio da música improvisada, malgrado os habituais fraseios melódicos do líder e os reforços jazzísticos de Luís Vicente, nesse processo descaracterizando os conceitos que gerem o Motion Trio e que definem a própria musicalidade de Amado. Embora muito do que se tocou tenha sido de qualidade superior, depressa se abriu um fosso entre a entrega ao jazz e a rendição ao abstraccionismo da “improv”, com evidentes consequências: não poucas vezes se passou por situações de desnorte, com desagregações da homogeneidade do grupo e impasses direccionais, com a improvisação a girar em círculos para encontrar a ponta do novelo e resolver-se. Quando tal se verificava, era regra geral uma deixa do cada vez mais surpreendente Rodrigo Pinheiro que permitia as retomas de sentido.
A nova temporada da SMUP abriu com a Orchestra Elastique, formação transnacional com um número variável de intervenientes, todos eles com residência em Londres. Nesta vinda ao concelho de Cascais não estiveram envolvidos o trompete de Antoine Gilleron, a electrónica de Nahum Mantra nem a bateria de Tristan Shorr. Segundo os princípios do ensemble, bastavam as presenças do harpista e percussionista holandês Joris Beets, do guitarrista francês Philippe Lenzini e do português Bruno Humberto (sintetizadores, harmónio indiano, walkie-talkies, etc.) para se tratar de um concerto Elastique – seria preferível, no entanto, a participação de um baterista, e o convite foi feito a André Calvário, membro da vários agrupamentos do colectivo A Besta, como A-nimal, Cardíaco e Projéctil, que têm a particularidade de associar uma pulsão punk ao “jamming” do psicadelismo, numa visão igualmente idiomática (a par do jazz de Rodrigo Amado) da improvisação.
A escolha de Calvário enquadrava-se com as orientações da Orchestra Elastique, praticante de uma música improvisada emoldurada pelas repetições de motivos do minimalismo norte-americano e pelo estaticismo rítmico do krautrock. Nesta ocasião, só quando Beet utilizava a harpa como um baixo, com “locked grooves”, se reconheceram essas coordenadas, pois preferiu as situações em que o seu instrumento evocou tanto a folk céltica como a música mandinga para kora. Lenzini decidiu-se por uma abordagem “kosmische”, ora em volteios pelo ar ora em voo picado, e Humberto desempenhou o papel do músico electrónico experimental, se bem que votado ao comentário e ao enchimento. Em termos individuais estiveram muito bem, mas o todo teimava em não colar, deixando-nos a impressão de que, afinal, uma Orchestra Elastique reduzida a três não funcionava. Acabou por ser André Calvário a juntar todas as peças, por meio da introdução de “beats” que deram rumo ao que parecia estar prestes a desabar.
Por comentários posteriores de Lenzini, esta terá sido a actuação no historial do grupo mais obviamente rock, com o idioma a salvar os problemas encontrados no curso de uma improvisação que estava mais preocupada em fazer tudo ao mesmo tempo do que em encontrar uma finalidade. É verdade que a música ficava mais pobre quando os “riffs” se tornavam no eixo dos acontecimentos, mas pelo menos era nessas alturas que a mesma surgia mais coesa e coerente. A luta que se estava a travar decorreu ainda do facto de se ter optado por uma performance longa, sem paragens. A curta duração da peça final estabeleceu o contraste: foi então que a música se desenvolveu naturalmente e com uma solidez que mereceu o aplauso do público…