Jazz em Agosto
Sem dogmas
Dez dias de festival com um total de 14 concertos e um igual número de perspectivas musicais quanto ao que é o jazz nos nossos dias: assim foi, entre os últimos dias de Julho e os primeiros de Agosto, mais uma edição do evento organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Balanço mais do que positivo, com os participantes portugueses a tocarem alguma da melhor música que se ouviu (na foto: Susana Santos Silva Life and Other Transient Storms).
O festival da Gulbenkian voltou a apresentar um cartaz ecléctico, expondo a larga amplitude estética que caracteriza o jazz do nosso tempo. Este ano confirmou-se igualmente que está encontrado o seu melhor modelo de funcionamento, depois de várias experiências diferentes: 10 dias seguidos de concertos, todos dentro da própria Fundação. Em Lisboa, em Agosto e com música que não é fácil, tem conseguido ter plateias generosas em todos os concertos, mesmo os que acontecem durante os dias úteis da semana. Os concertos com intervenção de músicos nacionais (Susana Santos Silva, Carlos “Zíngaro”, Eitr) provaram que os portugueses são já capazes de atrair tanta gente quanto outros equivalentes internacionais. Agora que mais um Jazz em Agosto está cumprido, fica a noção de que os muitos lugares ocupados são o reconhecimento da coerência de uma linha de programação que continua a arriscar em música variada e sem dogmas fronteiriços.
Perfeitos opostos
A edição de 2017 foi inaugurada com a actuação de uma das propostas mais atípicas da actualidade, Sélébéyone, liderada pelo saxofonista Steve Lehman. O grupo propõe uma fusão entre jazz contemporâneo e hip-hop – “flirt” arriscado que já foi tentado, com diferentes graus de sucesso, por gente como Herbie Hancock (“Rockit”), Miles Davis (o óptimo “Doo Bop”, frequentemente desvalorizado), Guru (“Jazzmatazz”), Madlib (“Shades of Blue”) ou, mais recentemente, Kamasi Washington e Kendrick Lamar. O projecto de Lehman, saxofonista e compositor consagrado, merece desde logo o aplauso pela ousadia. O líder convidou dois “rappers”, duas figuras distintas, antagónicas até: High Priest (dos Antipop Consortium, que participaram nas “Blue Series” da Thirsty Ear com Matthew Shipp) e Gascon Bandimic (estrela hip-hop do Senegal). Na música do grupo há uma natural base jazz, assente numa instrumentação sólida, com dois saxofones (Lehman e Maciek Lasserre), teclados (Carlos Homs), Chris Tordini (baixo eléctrico – no concerto, pois no álbum ouvimos o contrabaixo de Drew Gress) e Damion Reid (bateria).
Elemento fundamental no som da formação é o uso de “samples”, que se entrelaçam com a música tocada em tempo real. As vozes, como já se disse, funcionam como perfeitos opostos: High Priest vem da tradição do hip-hop americano e traz a sua voz grave, arrastada, debitando rimas em Inglês; o senegalês Bandimic canta no idioma Wolof (língua franca no Senegal), num registo mais agudo, mais rápido e festivo. O saxofone alto de Lehman destaca-se, não só a expor os temas com energia, como também a solar. Maciek Lasserre, co-compositor do projecto, tem um papel mais discreto no saxofone soprano, remetido a um papel secundário. O teclado de Carlos Homs assume um papel de relevo, sobretudo nas pinceladas atmosféricas dos temas mais lentos. A dupla rítmica, baixo elétrico e bateria, trabalha articuladamente a acentuar os ritmos hip-hop. O conceito é óptimo, dependendo o resultado da qualidade da execução.
Ao vivo, no anfiteatro ao ar livre, a música nem sempre resultou fluída. Por vezes, os blocos de intervenção hip-hop não se colavam com a base instrumental, nem com os momentos do sax alto de Lehman (breves, mas intensos). O grupo acabou por soar mais coeso no ultimo tema, “Bamba” (homenagem ao senegalês Amadou Bamba), com um ritmo mais pesado e todo o grupo envolvido – fluidez que se voltou a repetir no tema do “encore”, num excelente final. (N.C.)
Em tempo real
O segundo dia do Jazz em Agosto, sábado 29, abriu com a prestação a solo de Steve Lehman, que tocou na nave da Colecção Moderna ao final da tarde. Depois da sua intervenção com o grupo Sélébéyone na noite anterior, Lehman apresentou desta vez uma performance de saxofone alto e electrónica. O americano desenvolveu temas paisagísticos, explorando texturas electrónicas, processadas automaticamente, em tempo real, a partir do material desenvolvido pelo saxofone. Além da curiosidade formal, este concerto exibiu a imaginação do saxofonista. Contudo, na inevitável comparação com o solo de outro saxofonista no mesmo local - Frank Gratkowski no Jazz em Agosto 2016 – o trabalho de Lehman soou mais simples, em contraste com a fascinante exploração electroacústica de Gratkowski.
Na noite de sábado o anfiteatro acolheu o trio Sun of Goldfinger. O grupo reúne David Torn (guitarra eléctrica), Tim Berne (saxofone alto) e Ches Smith (bateria e electrónica). A guitarra de Torn viveu numa permanente exploração de efeitos electrónicos. O saxofone alimentava a chama com o sopro ziguezagueante de Berne, sempre incendiário. E a bateria de Smith contribuía para a combustão, combinando criatividade com marcação rítmica. Apesar da natureza pouco óbvia, e dos aparentes poucos pontos de contacto, a música resultou muito fluida, numa perfeita conexão instrumental. Sem notas de destaque a nível individual, a actuação valeu pelo permanente e apurado sentido colectivo. Combinação de rock abrasivo com free jazz enérgico, a música assentou numa massa sonora muito coerente, que mereceu a entusiástica adesão da assistência. (N.C.)
Ora um “groove”, ora um free
No final da tarde de domingo, dia 30, o auditório 2 do edifício principal da Fundação Calouste Gulbenkian acolheu aquele que terá sido o concerto mais desafiante de todo o festival. O francês Julien Desprez apresentou o seu espectáculo a solo “Acapulco Redux", composto por guitarra eléctrica (processada com efeitos electrónicos) e jogo de luz. À entrada, os espectadores foram avisados para o elevado volume do som e para a iluminação (luz estroboscópica), o que apimentou ainda mais a curiosidade. Desprez atacou a guitarra e abusou dos pedais de efeitos, criando ondas de choque e explosão. Directamente ligadas à música estavam as luzes – luz completamente acesa com som intenso, luz apagada com silêncio, iluminação oscilante nos momentos intermédios. A música atravessou diversas fases, desde ruído sujo até atmosferas quase ambientais. O momento foi breve (cerca de 30 minutos), mas intenso. Muita gente abandonou a sala, mas quem ficou guardará na memória uma fantástica experiencia sensorial, sónica e visual.
À noite actuou a Coax Orchestra, octeto oriundo de Paris, numa derivação do Collectif Coax. O líder do projecto é o baterista Yann Joussein, que conduz um grupo alargado através do cruzamento de géneros diferentes. Há uma frente de sopros (Antoine Viard no saxofone alto e Aymeric Avice no trompete, um duo de guitarras (o repetente Desprez e Simon Henocq), teclado (Romain Clerc-Renaud), harpa eléctrica (Rafaëlle Rinaudo) e baixo (Xuan Lindenmeyer). A banda trabalha com uma base muito estruturada de composição, que se vai abrindo à improvisação. Ora fermenta um “groove”, ora ataca um free sujo, quase noise. Houve até uma passagem em que se assistiu a uma sobreposição de dois temas, com o grupo dividido a interpretar duas composições em simultâneo. Um dos momentos mais memoráveis ocorreu quando se juntaram apenas o trio de teclado, baixo e bateria, num crescendo de tensão e energia. A Coax Orchestra mostrou uma música original, irrequieta e diversa, mas soou pouco coerente e perdida de direcção. (N.C.)
Noise psicadélico
No último dia de Julho, 31, segunda-feira, assistiu-se à dupla Peter Brötzmann / Heather Leigh. Brötzmann tem sido visita regular de Portugal e na Gulbenkian apresentou um dos concertos mais memoráveis da história do festival, quando liderou o seu Chicago Tentet em 2008. Neste seu projecto mais recente o veterano alemão actua em duo, juntando o seu saxofone à guitarra “pedal steel” de Leigh. Como sempre, e apesar dos seus 76 anos de idade, atacou o tenor no seu registo típico, enérgico, cuspindo fogo sem misericórdia. A “pedal steel” de Heather Leigh estava mergulhada em efeitos, daí resultando um som que por vezes se aproximava do noise bruto (num equilibrado confronto de forças com o sax), para em outras ocasiões assumir um carácter psicadélico. Brötzmann e Leigh trabalharam uma música sem rede, improvisada, mas procuravam frequentemente pontos de contacto. Os instantes de maior intensidade sónica eram pontuados por momentos de acalmia, nos quais se verificou particularmente a procura de um caminho comum. Brötzmann mantém a chama e a sua parceria com Leigh não desiludiu. (N.C.)
Uma estreita união
A trompetista Susana Santos Silva levou à Gulbenkian, no dia 1 de Agosto, o quinteto que gravou o disco “Life and Other Transient Storms”. O pianista original do grupo, o sueco Stan Sandell, não pôde actuar, tendo sido substituído pelo português Rodrigo Pinheiro (do Red Trio). O grupo completou-se com a saxofonista Lotte Anker, o contrabaixista Torbjörn Zetterberg e o baterista Jon Fält. Foi um fabuloso concerto de improvisação livre, uma lição de música fluída, com cada elemento a contribuir para o fluxo comum. Sem grandes notas de destaque individual (a não ser um inesquecível solo de contrabaixo), os cinco músicos exibiram sobretudo contenção e precisão em cada intervenção, salientando-se a vibrante dinâmica colectiva e a forma como o “tutti” trabalhava a música numa suave e permanente evolução. Ouviram-se momentos de notável enlace instrumental e até uníssonos quase milimétricos, numa estreita união musical. Este tipo de afirmação será sempre discutível, mas no final ficou no ar a ideia de que tínhamos assistido nessa noite ao melhor concerto de todo o festival. (N.C.)
Sem rede
Na noite de quarta-feira o festival da Gulbenkian acolheu a performance do Sudo Quartet, grupo que reúne quatro experientes improvisadores europeus. Ao português Carlos “Zíngaro” (violino) juntaram-se a francesa Joëlle Léandre (contrabaixo e, pontualmente, voz), o italiano Sebi Tramontana (trombone) e o alemão Paul Lovens (bateria). O quarteto apresentou quatro temas, os três primeiros com cerca de 15 minutos cada e um quarto mais breve, com cerca de 5 minutos. A música assentou na típica improvisação livre sem rede, praticada por quatro músicos virtuosos que, atentos ao colectivo, não abdicavam de impor as suas ideias individuais. Os quatro contributos convergiram num caminho comum e, se as ideias eram por vezes divergentes, a música foi facilmente encarrilando. A interacção, e consequente fluidez musical, melhorou particularmente na parte final do concerto, sobretudo nos dois últimos temas e no “encore”. Uma boa prestação, portanto. (N.C.)
Com carga
As colunas do anfiteatro ao ar livre da Gulbenkian têm uma vida tranquila e pouco esforçada, mas na quinta-feira, 3 de Agosto, à noite tiveram de trabalhar como condenadas. O técnico de som que acompanha os Starlite Motel puxou pelo volume e pelos graves (apesar de, no início, o saxofone ter desaparecido e haver um claro exagero na amplificação do baixo e do bombo da bateria, os problemas foram sendo corrigidos). Já assistimos na Gulbenkian a concertos de bandas que usam o rock como matriz e que pecaram por uma amplificação tímida e conservadora. Os Starlite pedem volume e volume tiveram. Os bancos de pedra do jardim voltaram a estar muito compostos, com um número de pessoas semelhante ao da noite de estreia, e o quarteto começou a debitar energia e pulsação. As estrelas do grupo são o organista Jamie Saft e o baixista Ingebrigt Håker Flaten, mas o baterista Gard Nilssen é uma peça angular indispensável, lendo extraordinariamente bem as improvisações e respondendo de forma superior.
O concerto começou com uma improvisação longa sem estrutura rítmica definida, que marcou uma posição e avisou desde logo o auditório que a noite iria ser exigente. Muito bem o grupo a responder ao andamento da improvisação, sempre com carga e ouvido atento às ideias que iam sendo introduzidas. O som alto, rockeiro, dificultava a vida ao saxofone, que geriu mal a aproximação ao microfone e foi por vezes engolido pelos instrumentos eléctricos. O rock é a matéria-prima do quarteto, abstractizado até ser apenas ritmo e intensidade e recomposto depois na improvisação com estruturas repetitivas. A mestiçagem do jazz com o rock não é nova, mas esta fórmula dos Starlite leva-a até um extremo muito interessante. O órgão Hammond cria uma personalidade sonora num contexto estilístico em que já tanta coisa foi experimentada. O final fez levantar o público, que aplaudiu entusiasticamente. O grupo respondeu com um “encore”, brilhantemente instalado por Jamie Saft na guitarra “lap slide”enquanto discretamente ia emergindo o tema “Lonely Woman” de Ornette Coleman. (G.F.)
Banda sonora
A sexta-feira tinha, como tem sido habitual nos últimos anos, dose dupla. Os concertos da tarde foram agendados para a sala 2 do edifício sede. No dia 4 tocou Pascal Niggenkemper, um franco-alemão a residir em Nova Iorque que conhecemos através das edições do grupo Baloni e do seu CD a solo. O contrabaixista tem um arsenal impressionante de objectos (metais, motores, grampos, campânulas, etc.) que traficam o som do contrabaixo. Contudo, o solo não encantou, tendo soado demasiado estruturado, com os processos a sucederem-se de acordo com uma ordem que parecia pré-estabelecida e cronometrada. Também a articulação entre os diferentes acontecimentos e dispositivos seguiu sem grande fluidez e interligação; pareceu demasiado programado, mas ouviu-se com prazer.
À noite, a música transferiu-se para o habitual anfiteatro a fim de ouvir The Fictive Five, do americano Larry Ochs. O quinteto agrupa músicos cimeiros como o trompetista Nate Wooley, os contrabaixistas Ken Filiano e Pascal Niggenkemer (que tinha tocado à tarde) e o baterista canadiano (a viver na América) Harry Eisenstadt. Uma bateria, dois contrabaixos, dois sopros. Ochs é mais conhecido como o fundador do quarteto de saxofones ROVA e a possibilidade de o ouvir noutro contexto é valiosa. A música parte de elementos escritos que introduzem as improvisações que o saxofonista vai conduzindo, sugerindo regras e instrumentações. Tocaram três temas com um adicional no “encore” e o concerto nunca se repetiu, mantendo-se num plano elevado de interesse.
Ochs, Wooley e Filiano foram os mais marcantes numa música que soa muitas vezes a um ROVA com bateria e contrabaixos, pois o jogo de uníssonos e improvisações estabelece-se como no quarteto de sopros. Ochs tem um som áspero no saxofone tenor que encaixa na perfeição com o trompete cristalino de Nate Wooley. O que se escutou foi apresentado como uma tentativa de criar a banda sonora para um filme imaginário e, de facto, teve diferentes ambientes e intensidades, resultando num excelente movimento paisagista. (G.F.)
Partilha permanente
O penúltimo dia, sábado, começou novamente à tarde no auditório 2. Foi aqui que assisti a alguns dos melhores concertos da história do Jazz em Agosto e por isso não dispenso a “tardiné”. Contudo, a política de gratuitidade dos bilhetes este espaço atrai um público para o qual a combinação Gulbenkian + borla é fatal, mas que não está de todo preparado para o jazz contemporâneo. A sala fica lotada, mas muita gente desiste a meio, causando natural ruído e desconforto a quem quer ouvir (os concertos neste local têm uma natureza sonora mais delicada, por norma). A programação do duo Eitr, formado por Pedro Sousa e Pedro Lopes, suscitou natural curiosidade, pois o seu disco de estreia saiu em 2013 e havia a vontade de lhe conhecer a evolução, mas o concerto acabou por não revelar novidades. Eitr foi bom, mas teria sido muito bom se não enfermasse de um dos males da música improvisada portuguesa: a dificuldade em finalizar os temas. Se em vez de uma hora o concerto do duo tivesse durado 40 minutos, teríamos saído com uma muito boa impressão, mas ouvir 20 minutos de elipses amarga os precedentes 2/3.
Pedro Lopes tem uma abordagem muito criativa aos gira-discos, alterando-os de diversas maneiras para a produção de sons texturais que mantêm uma base sonora interessante e em permanente renovação. É ele próprio, de certa forma, um produto do Jazz em Agosto, dado que despertou para esta música e para o trabalho com gira-discos com Otomo Yoshihide, um dos nomes já passados pelo festival. Pelo seu lado, Pedro Sousa usa o sopro contínuo e a repetição de séries minimais para manter um fluxo musical. A mistura resulta interessante, pois não há um solista e um acompanhante, mas sim uma partilha permanente em que ambos solam e estruturam ao mesmo tempo.
A noite fria de sábado oferecia o calor dos Human Feel, um quarteto formado em 1987. A qualidade dos quatro fundadores fez com que seguissem carreiras individuais, mas continuam a agrupar-se episodicamente para concertos e gravações do seu grupo inaugural. A banda tem um funcionamento definido com os dois saxofones a liderar, usando uníssonos, contrapontos ou polifonias, a guitarra a garantir o sustento harmónico e a bateria sempre muito presente e impositiva. Comecemos então pelo fim: Jim Black é um daqueles músicos que extremam os gostos: fortíssimo na bateria, quadrado, o seu encanto vem da capacidade de criar microrritmos dentro dos ritmos mais evidentes, como se tocasse em camadas. Usa magistralmente os pratos e toca com alegria, sem os excessos burlescos típicos dos bateristas mais autoritários. É complexo por entre bases simples. Kurt Rosenwinkel esteve bem a acompanhar, mas quando foi chamado a solar o seu cérebro ausentou-se e foi penoso assistir a tanta falta de interesse e verve. Os dois saxofones – Chris Speed e Andrew D’Angelo – tocaram lindamente, sem momentos notáveis, mas mantendo um bom entendimento nas articulações e nos solos. (G.F.)
The clue is in the title
Chegámos ao último dia do festival, 6 de Agosto, com Dave Douglas e a versão B do seu novo quarteto. Douglas é uma referência incontornável do trompete na actualidade. Este quarteto é constituído por três músicos novíssimos e banais, produções habituais das escolas americanas de alto rendimento, como se fossem atletas olímpicos. Um baixista básico (certamente com uma técnica superior), um baterista cumpridor (certamente com uma técnica superior) e um guitarrista suficiente (certamente com uma técnica superior) que, tal como o baterista, tende a usar electrónica gordurosa. O concerto soou a um estágio profissional do trio, em grande parte limitando-se a criar as sustentações para Douglas solar. E Douglas sola bem, é indiscutível (surpreender-nos-ia mesmo que interpretasse o “Parabéns a Você”), mas os seus acompanhantes criaram um ambiente de tal forma árido que o concerto perdeu o interesse. Tocaram sem brilho com alguns solos penosos (o do baixista poderá entrar para o “top” dos piores solos de sempre do Jazz em Agosto).
O fecho fez-se com casa cheia a aplaudir um concerto que não deixará memória. Se é saudável (e desejável, diria até) que a programação do festival nunca se fixe num modelo musical - e não o tem feito, sendo inclusive o festival português mais ecléctico e aberto –, é também importante garantir que todos os projectos apresentados tenham o nível de qualidade a que fomos habituados: alto. Como diriam os ingleses sobre este “High Risk”: «The clue is in the title.»
Finalizemos, dizendo que todas as edições do Jazz em Agosto têm episódios notáveis e a de 2017 não foi excepção. O primeiro deste ano foi o anunciado fecho do restaurante italiano “La Gondola”, onde a maior parte dos músicos e da organização e os fãs mais fiéis convivia depois dos concertos. Era um espaço demasiado bom para a Lisboa actual, virada para o serviço ao turista em “lounges”, “rooftops”, “balconies”, etc. Fechou no último dia do festival para ser demolida e dar lugar a um banco.
O segundo foi a da organização chamar a si a venda de discos, uma actividade para a qual a Fundação Calouste Gulbenkian não está claramente vocacionada (aliás, como acontece com os livros, e por isso a loja do CAM é concessionada). As “bancas de discos” são uma tradição dos festivais de jazz que servem de espaço de reunião e convívio antes e depois dos concertos. Não reconhecer esta especificidade do jazz é um erro e a banca de discos da Fundação provou ser uma má solução: Joëlle Léandre apelou a quem quisesse comprar os seus discos que a procurassem pessoalmente atrás do palco ou fora da Gulbenkian, os Starlite Motel trouxeram os discos para a frente do palco e venderam-nos aí pessoalmente e Chris Speed preferiu oferecê-los para não ter de regressar com eles na bagagem para os Estados Unidos. Certamente que terá havido motivos legais, de facturação e até institucionais para esta decisão, mas esperemos que a Gulbenkian reconheça esta especificidade do jazz e permita que voltemos a ter a tradicional banca, com gente que percebe do assunto e discos que importam. (G.F.)