Pedro Branco + Pedro Branco / Noel Taylor + Jasper Stadhouders + Luís Lopes Guillotine
Fumo nos olhos e lâmina ao pescoço
Guitarras em foco para os lados da Parede, no concelho de Cascais, com propostas bem diferentes entre si. Ouviu-se a melodia de “Smoke Gets in Your Eyes” quando nada a fazia esperar e lembrou-se a máquina da Revolução Francesa que deu origem à expressão “vão rolar cabeças”…
Não há guitarristas mais diferentes do que Pedro Branco e Jasper Stadhouders, e se parece que o que um Luís Lopes faz com a seis-cordas anda ali pelo meio, assim sublinhando que ambas essas figuras da música dos nossos dias pertencem ao mesmo espectro musical, até Lopes pouco tem que ver com Branco e, inclusive, com Stadhouders, apesar de com este partilhar a sensibilidade punk. Coloquemos a questão de outro modo: o papel da guitarra eléctrica na área da música que apontamos como “jazz” ou como “improvisação” pode ser tão multiforme quanto quiser quem nela se posiciona. Nos passados dias 23 e 28 de Junho estes três dedilhadores passaram pela SMUP e o que nos deram a ouvir foi tão dissemelhante quanto a distância que vai de uma interpretação de “Smoke Gets in Your Eyes”, dos Platters (por Pedro Branco, assim nos recordando as origens negras do rock ‘n’ roll, um parente do jazz que muitos jazzistas entendem como a ovelha negra da família originada pelos blues), a uma representação do que pode a violência humana, no caso com justificação política positivista, de elevação da humanidade (os Guillotine de Luís Lopes, cujo nome se inspira na Revolução Francesa).
Dentro desta diversidade um outro factor se evidenciou: a dramatização dos concertos, com destaque para o solo de Jasper Stadhouders. Desde que o jazz vingou como expressão popular, com posterior reforço por parte do rock e do hip-hop, a própria imagem de um músico tem importância simbólica, e isso é tão verdade com David Bowie e Kendrick Lamar como com Sun Ra e Thelonious Monk. O guitarrista dos Spinifex de Tobias Klein e dos Shelter de Ken Vandermark calçava meias de cor distinta, como que acrescentando uma imagem à própria displicência formal (que não de execução, esta obviamente virtuosística) do que tocava. E no entanto, as cores de cada meia eram as da camisa que vestia, porque essa era uma displicência estudada e propositada, uma “mise en scéne”, um apontamento teatral – tendo a sua própria guitarra escavacada como adereço. As tatuagens de Lopes e as calças curtas, adaptadas da moda feminina (mais o pormenor cenográfico do ursinho de peluche sobre o "amp"), de Branco tinham igual consequência, mas trazendo à cena outros significados. No primeiro caso dando a ver (tornando visual, entenda-se) a postura “badass” do projecto apresentado, no segundo evidenciando uma ideia de suavização da masculinidade tornada música.
Branco avisou logo no início que, depois da barulhenta actuação no Sabotage, em Lisboa, da noite anterior com os Eels Slap, iria fazer um concerto calmo. Assim foi, ainda que relativamente. Não usou muita distorção nem “feedbacks”, e pouco também da electrónica orquestral que tinha ao dispor, mas o constante ligar e desligar dos pedais de efeitos serviu-lhe para uma agitada fragmentação das linhas que ia construindo. A música era suave, sim, mas de uma forma algo nervosa. Entre a abstracção e um jazz mais explícito, mas totalmente improvisado, aproximou-se a pouco e pouco do tema dos Platters acima indicado, até o assumir por inteiro e, depois, o desconstruir, num dos melhores momentos da noite. Algo se sobrepôs ao menor volume e a uma dedicação mais detalhística – e mais guitarrística, porque sem grandes processamentos – dos sons: o jogo que desenvolveu entre melodia e textura. Talvez por influência do outro solo que antecedeu o seu, do clarinetista britânico Noel Taylor, conhecido pela sua perspectiva melódica da livre-improvisação, o Branco que se ouviu nesta ocasião não esteve longe do das suas colaborações sob o signo da pop com João Hasselberg. O duo final com Taylor em clarinete baixo regeu-se, precisamente, por esse factor, e decorreu como se ambos já trabalhassem juntos há muito tempo (tinham acabado de se conhecer).
Melodia não houve, de todo, na prestação de Jasper Stadhouders. Foi com o ruído, o da electricidade, que este lidou, desconsiderando na sua organização dos materiais não só esse parâmetro das convenções musicais como a harmonia e o ritmo. Tudo colava, tudo fazia sentido, tudo parecia composto, mas Stadhouders estava apostado em fazer com que os pêlos da nuca se nos arrepiassem. Sem, como é seu hábito, recorrer a uma pedaleira, mas também raramente se aproximando dos botões do amplificador, o que nos ofereceu foi um labor de dedos, plectro e objectos vários. Na maior parte da sua intervenção – que antecedeu a dos Guillotine – esteve virado de costas para o público, com a guitarra a raspar o amplificador. Os sons eram animalescos, primitivos, áridos. Stadhouders atirou os óculos ao chão em determinada altura, pouco lhe importando se se partiam ou não. Com tal gesto, deu coreograficamente a entender que a única coisa importante era a música. O fim veio, igualmente, com a queda das peças de metal com que, feito “anti-guitar hero”, estava a massacrar o seu instrumento.
Se pensávamos que a sessão nos tinha dado tudo em termos de virulência e entrega, o pior (o melhor) veio a seguir. O início da performance dos Guillotine fez-se com um “drone” quase silencioso mantido por Luís Lopes com o violoncelista Valentin Ceccaldi e o baterista Andre Wildhagen. De repente, surgiu um “riff” de rock tocado com arco pelo híper-amplificado violoncelo, com a bateria a desmembrar-se devido à extrema agressividade da acção das baquetas sobre peles e pratos. O nível de impacto iria manter-se quase sempre assim até ao final, entre obsessivas repetições violoncelísticas de motivos, uma percussão que entrava por todos os lados na música e uma guitarra que serpenteava, totalmente solta, por aquela lava incandescente, abrasiva, espessa e negra de som. Era uma espécie de metal-prog tocado por músicos de jazz (com, numa dada altura, Lopes a tocar jazz de facto), com o cordofone tema deste texto a desfazer-se em cintilações, o violoncelo a funcionar simultaneamente como um órgão Hammond, um baixo e uma voz, e a bateria a interferir perigosamente com as batidas dos nossos corações. Quando a viagem chegou ao seu termo percebemos todos que tínhamos sido hipnotizados, tão invasiva, inebriante e compulsiva tinha sido a mesma.
Era para acontecer um “encore” com Stadhouders, mas já passava da meia-noite e um vizinho tinha chamado a polícia. Ao que parece, o segundo concerto dos estreantes Guillotine (o primeiro tinha sido na noite anterior, na Culturgest) ouviu-se no bairro inteiro, de tão alto, maciço e brutal que foi. A ida, no dia seguinte, para estúdio indica que vamos ter disco deste projecto, e ainda bem. Duas noites na Parede, portanto, uma com fumo nos olhos, a outra com uma lâmina a descer-nos sobre os pescoços: muito tem uma guitarra eléctrica que se lhe diga…