Blood Tree + Santos / Mortágua / Andrade / Franco
Guitarras: fundamento e zénite
O jazz mais fresco e mais indiferente às separações entre “mainstream” e “vanguarda” que hoje está a ser tocado entre nós apresentou-se na Parede em dois concertos. Os guitarristas Pedro Branco, Mário Delgado e André Santos funcionaram como o eixo das propostas realizadas, mas foi um saxofonista que tocou em ambos os grupos, Francisco Andrade. É como aqui vos contamos…
No intervalo de uma semana, dois concertos na paredense SMUP se sucederam com aspectos em comum que foram para além de ambos os grupos partilharem o saxofonista Francisco Andrade. Um deles incidiu sobre a relevância das guitarras na instrumentação escolhida, no primeiro caso, o dos Blood Tree - foto acima -, entregues a Pedro Branco (um novo valor em plena fase de afirmação) e a Mário Delgado (um veterano que continua a surpreender-nos) e no segundo, o do novo quarteto de André Santos com João Mortágua, o referido Andrade e Marco Franco, com o protagonismo a ir, naturalmente, para a guitarra do líder, fundamento e zénite do que se ouviu desta figura da jovem vaga de músicos que veio colocar tudo de pernas para o ar.
Outro e não menos importante aspecto definitório destes dois grupos é o facto de as coordenadas que colocam em prática ignorarem quaisquer clássicas distinções entre “mainstream” e “vanguarda”. Se em determinadas passagens ouvimo-los a equacionarem os contrastes entre tradição e experimentação, dando primazia a um ou ao outro dos termos, na maior parte dos casos o que nos chegava aos ouvidos partia da total ignorância dessas categorias, numa atitude não compartimental, sem preconceitos nem proibições de princípio.
Um ano depois de Francisco Andrade ter ido à Parede apresentar a versão original do seu grupo Blood Tree, na altura um trio com Delgado e o baterista João Lencastre, o regresso fez-se com um elemento extra, Pedro Branco, e uma escrita mais amadurecida e, simultaneamente, menos experimental, no sentido em que desta feita não se interpretaram partituras gráficas ou se disputaram jogos de improvisação (à memória vem o percurso então feito no interior de uma casa imaginária, com ocasionais encontros dos três, ou de dois deles, na mesma divisão).
O que não quer dizer que tenha sido uma actuação mais linear – se havia melodia (ou seja, opção pelo tonalismo) e ritmo (com pulsação e métrica, de resto importando alguns padrões do rock) tal como convencionalmente os definimos, já ao nível da harmonia se procurou algo bem menos ortodoxo. Os dois guitarristas tiveram uma grande parte da responsabilidade no que aconteceu neste plano, com um Branco mais paisagístico e orquestrador e Delgado atirando com malhas para o lume, estivesse este vivo ou brando. Um lume que Lencastre ia excelentemente graduando com a sua bateria, dando-lhe fogo ou acalmando-o.
O concerto começou intenso e foi diminuindo gradualmente de intensidade, privilegiando as situações de nuance e detalhe. O que significa que, se houve oportunidade para ouvir o lado ayleriano de Francisco Andrade, um dos saxofonistas que mais projecção de pulmões têm entre nós, o foco ficou na vertente lírica, e algo melancólica até, do músico madeirense. Sobretudo na peça final deste, derivada da linha melódica de uma velha caixa de música que calhou encontrar, segundo a explicação do próprio ao público.
Estruturas ainda mais formais, com exposição colectiva dos temas, improvisações individuais e regresso aos temas, serviram a André Santos para apresentar conteúdos que, novamente em comparação com os Blood Tree, também soaram mais “fora”. O saxofone alto de João Mortágua e o tenor de Francisco Andrade tocavam os “chorus” ora em uníssono, ora em contraponto, solavam alternadamente ou, por vezes, em conjunto. A guitarra de Santos furava por dentro para conquistar a dianteira, com um som “old school”, seco, semi-acústico e dedilhado, quase sempre sem efeitos, mas desenvolvendo um vocabulário e aplicando uma gramática em tudo contemporâneos e alinhados com as inovações do instrumento.
As melodias temáticas pareciam conter reminiscências das mornas cabo-verdianas e dos chorinhos brasileiros. Talvez por mediação assim fosse, mas no fim do concerto percebeu-se qual a verdadeira origem referencial daqueles fraseados tão marcadamente “cantabile”: vinham do cancioneiro popular da Madeira, região autónoma em que Santos nasceu, tal como Francisco Andrade. E percebeu-se porque, depois de ouvidos os saxes, a guitarra e a bateria (tocada por um Marco Franco sempre ao serviço do conjunto e sempre essencial para a coesão obtida) a tratarem a música, Santos disparou o registo da canção sem autoria nem época definidas que tinha sido adaptada: um gesto teatral que comoveu os presentes (não é vulgar tal humilde exposição das raízes) e explicou muito do que se ouvira. Decididamente, o jazz nacional vai por bom caminho…