Mark Dresser / Simon Nabatov + Zimmerlin / Stoffner / Meier & Cirera
Dois concertos memoráveis
Dois dos mais importantes músicos de jazz do planeta, um norte-americano e o outro russo, passaram pela SMUP para um concerto que deixou o público extasiado. Antes esteve um trio suíço, mais o seu convidado catalão, para outra actuação memorável que não deixou nada de fora, justificando o adjectivo “livre” dado à improvisação sem pautas. O ano musical da Parede vai bem encaminhado…
Devido a uma pausa na série Combat Jazz (que será retomada a 7 de Maio próximo, no restaurante situado no mesmo edifício, o Sociedade, com os nórdicos Ballrogg), a programação de jazz e música improvisada da SMUP, na Parede, esteve uns meses sem a participação de agrupamentos de fora do País. A normalidade voltou com uma actuação do trio suíço Zimmerlin / Stoffner / Meier mais o convidado catalão Albert Cirera no já mítico sótão daquele espaço, a 31 de Março, e depois, a 22 de Abril, com dois gigantes da música criativa, o norte-americano Mark Dresser e o russo Simon Nabatov, estes a lotarem o palco da sala principal.
Comecemos pelos últimos. Foram muitos os que tiveram de ficar de pé, encostando-se à parede do fundo, ou que se sentaram no chão do corredor aberto entre as cadeiras. Não cabia mais ninguém. Os nomes de Mark Dresser e Simon Nabatov são bem conhecidos do público amante do jazz (a portuguesa Clean Feed editou-lhes em 2015 o álbum “Projections” e o contrabaixista já esteve no nosso país algumas vezes, a derradeira das quais no Porto, com luminárias como Fred Frith, Zeena Parkins e William Winant), com os presentes a aperceberem-se da importância deste concerto, o único que o duo fez em Portugal. Que foi também o primeiro por cá, se a memória não falha a este ouvidor, da parte de Nabatov. Os dois músicos encontravam-se de férias por Lisboa (Dresser passou antes pela Invicta, onde também tocou, a solo, no Yoga Sobre o Porto) e quiseram retomar o projecto, aproveitando o acaso do encontro em terras portuguesas.
Em registo de improvisação integral, sem combinações prévias, o que se ouviu durante hora e meia – pelo meio com dois solos, um do contrabaixista e o outro do pianista – deixou a assistência rendida. Dresser multiplicou-se em ideias, indo de um jazz mais convencional, na elegante bissectriz das heranças deixadas por Oscar Pettiford e Paul Chambers, a uma exploração quase concretista do seu instrumento, ora acompanhando, ora tomando a dianteira, de mão nuas ou usando o arco e oportunas preparações, com o som de madeira que lhe é característico sugerindo a edificação de esculturas com simples estacas e tábuas, uma peça de baixo aproveitada para subir mais alto, nesse processo nunca perdendo o equilíbrio. Foi rítmico, foi harmónico, foi melódico e o contrário de tudo isso também: por vezes, satisfez-se com um meticuloso, pequenino, escavar de texturas. De cada vez que Nabatov anunciava uma trovoada com a mão esquerda, com objectos a saltarem sobre as cordas do interior do piano, tinha a direita a contrastar-lhe notas suaves, quase sussurradas. Houve alturas em que lembrou Scriabin e toda a escola russa dos compositores para piano, como Prokofiev, Rachmaninov ou Mussorgsky, mas misturando essa carga com algo que nos remetia para Erroll Garner ou Art Tatum, enraizando conceitos “vanguardistas” na história remota do piano jazz e clássico. Mas não só: andou às voltas com um motivo brasileiro que pareceu retirado a António Carlos Jobim, só porque veio a propósito.
Foi um concerto magistral, o melhor a que assistimos no ano em curso, e tanto pelos momentos de pura beleza como pela constante surpresa que esta dupla de improvisadores sabe proporcionar, metendo-se por carreiros não só imprevisíveis como improváveis. É impossível descrever fielmente o que aconteceu, mais do que nunca dando razão à frase, atribuída a Frank Zappa, de que «escrever sobre música é o mesmo que dançar sobre arquitectura». O certo é que, nesta ocasião, estava em causa algo mais do que a música: estava a amizade que une os dois intervenientes, felizes por o acaso lhes ter cruzado novamente os caminhos, estava o prazer de criar música só porque sim, sem a pressão de cumprir com uma obrigação profissional, e estava também a descontracção de um passeio por um país de que gostam muito particularmente.
A sala esteve também cheia – embora menos – para ouvir o trio de Alfred Zimmerlin, Flo Stoffner e David Meier com Albert Cirera. Parte da audiência tinha assistido ao concerto na SMUP, no ano passado, do grupo de jazzcore Schnellertollermeier, ao qual Meier também pertence, e um outro número de pessoas ouvira Stoffner no Hot Clube, igualmente em 2016, com Rudi Mahall e Paul Lovens, sob a designação de Mein Freund der Baum. Houve a curiosidade de saber o que esta outra fórmula traria de diferente, e de facto trouxe. Neste projecto não há os “riffs” de rock que caracterizam os Schnellertollermeier, se bem que o geral abstraccionismo por vezes resvalasse para aí. Do mesmo modo, o factor jazz é menos explícito, prevalecendo a abordagem livre da música improvisada e algumas adopções da música contemporânea. Estas, sobretudo, por via de Zimmerlin, um conhecido compositor de obras de câmara quando não está na estrada a tocar o seu violoncelo.
Além da qualidade das execuções individuais, do entrosamento de grupo e da facilidade com que Cirera entrou nas intrigas, o grande interesse desta prestação foi a de se ter lidado com os elementos idiomáticos envolvidos, bem mais implícitos do que explícitos, sem os seus aspectos formais, as cascas. Poucas vezes a chamada improvisação livre se dispõe a utilizar materiais como o fraseado melódico (com os saxofones de Albert Cirera a destacarem-se neste domínio), a pulsação rítmica (o baterista David Meier e o guitarrista Flo Stoffner) ou a harmonia de tradição erudita (Zimmerlin) como esta formação o faz. No cumprimento do próprio adjectivo “livre”, pois nada está excluído à partida, que é o que igualmente distingue Mark Dresser e Simon Nabatov. O entusiástico aplauso final disse tudo sobre a aceitação. Teve início da melhor maneira o cartaz internacional da SMUP para 2017.